quinta-feira, 24 de junho de 2010

A Modernidade Insustentável: as críticas do ambientalismo à sociedade contemporânea


Gustavo F. da Costa Lima
Doutorando em Ciências Sociais pelo IFCH-UNICAMP e docente do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba-UFPB.

A Modernidade Insustentável: as críticas do ambientalismo à sociedade contemporânea.

Héctor Ricardo Leis
Petrópolis, Vozes e Florianópolis, UFSC, 1999

O presente livro de Héctor Leis é uma versão reformada e atualizada de sua tese de doutoramento em filosofia política. Nele, o autor desenvolve uma análise político-filosófica e histórica da formação e significado do ambientalismo na sociedade contemporânea.

Esta tarefa, que se reveste de singular complexidade, é tratada de forma original, crítica e criativa ultrapassando os limites das reflexões ortodoxas publicadas sobre o tema e desafiando os cânones e a unidimensionalidade da razão cientificista.

O cerne de sua proposta é refletir sobre os valores, teorias e práticas do ambientalismo com o intuito de identificar o sentido de seu "ethos", significado essencial, ou espírito- anima.

Para realizar seu intento constrói um roteiro tripartite que organiza dialeticamente o conteúdo de seus argumentos.

Na primeira parte (capítulos 1 a 3), apresenta os pressupostos do trabalho discutindo os dilemas da política mundial contemporânea que se expressam através de realidades como:

. a crise ambiental no contexto da glo-balização;

. a precária governabilidade dos problemas socioambientais globais;

. o declínio da política e da teoria polí-tica no mundo atual e as perspectivas para sua reconstrução e;

. o potencial de renovação política e civilizatória do ambientalismo.

Explora, nesse sentido, o flagrante descompasso entre um mundo que se globaliza a passos largos e o comportamento dos atores políticos que insistem em se orientar pelos parâmetros do estado e da soberania nacional. Parte desse descompasso se revela na ausência de autoridades e instituições globais, capazes de coordenar e responder à escalada de problemas globais que, além daqueles relativos ao meio ambiente, englobam também o tráfico de drogas e de armas, o desemprego estrutural, a fome e a ex-clusão social, a violência e o terrorismo internacional. Mostra-se também na incompatibilidade da convivência entre uma ética individualista e competitiva e um cenário mundial cada vez mais marcado pela interdependência entre povos e nações. Diante dessa realidade levanta a questão de como construir pontes entre uma concepção política realista, que tem na força e na guerra sua principal moeda e uma outra concepção, política utópica, que articula sua linguagem através da cooperação e da paz. Essa é, para o autor, a magnitude do desafio que se apresenta à sociedade hoje. Como superar as dicotomias que separam a crise conjuntural da crise civilizatória, que dividem as dimensões material e espiritual da realidade e desintegram a sociedade da natureza? Quais os caminhos dessa transição?

Na segunda parte do trabalho, que se estende por seis capítulos ( 4 a 9), o autor se detém na análise de seis momentos históricos que se articulam na constituição do ambientalismo. Esses momentos compreendem os campos da estética (cap. 4), das ciências (cap. 5), da sociedade civil (cap.6), do sistema político (cap.7), do mercado (cap. 8) e da espiritualidade (cap. 9). Em cada um desses momentos traz à tona os valores, as ideologias, as críticas, as teorias, as contradições, as polêmicas e os atores que povoam e caracterizam cada um desses campos do ambientalismo. Examina, criticamente, como cada um desses elementos e setores se incorporam ao debate ambientalista e vão gradualmente dando sentido à feição multissetorial, complexa e global que o caracteriza na atualidade. O fio que tece essa complexa rede do ambientalismo parece ser seu potencial inovador e sua capacidade de integrar as múltiplas dimensões da realidade, geralmente consideradas de maneira fragmentária e reducionista. Nesse sentido, o ambientalismo tem propiciado novas reflexões e sínteses entre a economia e a ecologia, a ética e a política, a cultura e a natureza, a ciência, a religião, as artes e a filosofia. Para Leis essa característica do ambientalismo define sua natureza de movimento histórico-vital, que consiste numa articulação plural de atores, valores e interesses sociais que, apesar de diferenciados, se complementam na composição de um quadro de grande riqueza cultural.

O resultado dessa avaliação crítica da sociedade e civilização contemporâneas, sob a ótica do ambientalismo, confirma, por diversas perspectivas, a insustentabilidade de nossos estilos de vida individual, social e de nossas relações com o mundo natural. Essa evidência se manifesta no teor antropocêntrico da cultura ocidental, que engendra e perpetua a separação entre a sociedade e a natureza, na instrumentalidade da razão e do conhecimento hegemônicos, no individualismo quase autista das multidões modernas e na indigência espiritual expressa na autofagia consumista e no império do mercado e das mercadorias. Esses sinais, para o autor, compõem o caráter simultaneamente conjuntural e civilizatório da crise contemporânea. E, paradoxalmente, é desse diagnóstico pouco animador que retira a esperança para vislumbrar a possibilidade de uma outra sociedade global inspirada em princípios ético-espirituais.

Na terceira e última parte do livro (cap. 10) o autor formula sua conclusão, combinando as partes anteriores numa síntese que as ultrapassa. Nela revisita autores que representam o pensamento crítico da tradição moderna em busca de respostas para os dilemas e paradoxos colocados pela crise ambiental e civilizatória contemporâneas. Com essa intenção recupera o pensamento de Marx, dos frankfurtianos e de Habermas no contexto da insustentabilidade global. Reconhece a rica contribuição que agregam à teoria social moderna, mas admite suas limitações e incapacidade de pensar a crise ambiental, de superar o reducionismo antropocêntrico e a distância entre a sociedade e a natureza. Observa na obra de Marx uma noção de liberdade antropocêntrica que entende o progresso como a superação do reino da necessidade material e, portanto, desatenta à degradação que produz sobre o mundo natural. Os frankfurtianos (à exceção de Marcuse) embora tenham ido além de Marx, ao evitar seu reducionismo econômico e ampliar a crítica social aos campos da cultura e da ciência, não acreditavam que fosse possível uma reconciliação entre a sociedade e a natureza. Com relação a Habermas é inegável a contribuição de sua teoria da ação comunicativa para pensar o ambientalismo como agente de resistência à colonização sistêmica do mundo da vida. Contudo, a institucionalização política da razão comunicativa se dá num plano abstrato, sem vínculo direto com atores sociais concretos que possam dar-lhe lastro, o que termina inviabilizando-a. Por outro lado, ao abordar a emancipação de uma perspectiva antropocêntrica que exclui os seres não-humanos, Habermas levanta obstáculos que impedem a concepção de uma sustentabilidade integral articuladora dos mundos biofísico e social.

Diante da insuficiência do pensa-mento moderno para responder à crise ambiental recorre à contribuição de pensadores vinculados à tradições não-modernas - como Hans Jonas, Michel Serres, Louis Dumont e Nietzsche - para superar o antropocentrismo dos modernos, compreender o espírito-anima do ambientalismo e conceber uma reforma criativa da sociedade contemporânea.

De Jonas, resgata a crítica à modernidade por sua incapacidade de integrar eticamente a humanidade e a natureza, decorrente, em última instância, de uma redução da finalidade humana à sua reprodução material. Concorda com ele sobre a necessidade de uma renovação ética que integre o homem, a natureza, a ciência e a religião. Concorda também com Jonas sobre a necessidade de se cultivar uma ética de responsabilidade com a preservação do mundo, embora reconheça as dificuldades culturais e políticas para institucionalizar valores biocêntricos. Diverge, entretanto, da utilidade de uma moral ou pedagogia do medo como instrumento de responsabilização com a preservação da vida. Para Leis, a pedagogia do medo já deu provas suficientes de não ser a estratégia mais adequada para uma reforma criativa da sociedade.

Divide com Serres a hipótese de que a pedagogia do amor é não apenas superior à do medo, como a única linguagem capaz de superar os obstáculos e diferenças entre todos os seres, além de possibilitar um Contrato Natural que contemple simultaneamente o mundo humano e não-humano. Nesse sentido, atenta para o caráter ao mesmo tempo avançado e limitado das conquistas iluministas que universalizaram os direitos de todos os humanos enquanto esqueciam os direitos das criaturas não-humanas. Converge também com Serres sobre a necessidade de resgatar uma visão espiritual-transcendante como pré-requisito para reconstruir ou "religar" os laços perdidos que uniam os homens e o mundo. Essa tarefa de religação, entretanto, não caberá à política nem à ciência, mas ao amor. Contudo, embora aceite a hipótese básica de Serres, pensa não ser realista pretender resolver os problemas ambientais apenas recomendando uma política amorosa. Mesmo porque os seres humanos não tem condições históricas, sociais e políticas para o exercício do amor.

É diante desse impasse que introduz, em diálogo com Louis Dumont, algumas condições de possibilidade para a operacionalização do amor no plano político e social. Segundo Dumont, a modernidade instituiu uma separação entre o princípio da hierarquia e da igualdade, rejeitando o primeiro e se apoiando exclusivamente no segundo. Considera, entretanto, o igualitarismo uma construção social imaginária, abstrata e artificial que não tem correspondência no plano empírico, já que a maioria das relações sociais não é igualitária. Para Dumont, a vida social e também natural são regidas pela conjunção dos princípios da hierarquia e da igualdade e não pela supressão de um deles absolutizando o outro como fez a modernidade. Para ele, o homem está constantemente fazendo escolhas e adotando valores o que supõe uma hierarquia que afeta as idéias, as coisas e as pessoas. De fato, nessa conjunção entre a hierarquia e a igualdade, a hierarquia ocupa uma posição principal e a igualdade uma posição complementar. Essa hierarquia, entretanto, embora suponha a diferença, não implica em dominação que seria o resultado de uma degradação da hierarquia. A relação entre a igualdade e a hierarquia, característica da modernidade, se expressa pelo predomínio quase absoluto do igualitarismo na organização da vida política e social. Esse predomínio, que marcou historicamente o paradigma da modernidade, continua a produzir consequências profundas nas relações sociais e políticas entre os homens, nas relações entre a sociedade e a natureza, no processo de construção do pensamento científico, nas relações afetivas e culturais e na cosmovisão dominante na sociedade.

Para Leis, o principal obstáculo para a modernidade superar o impasse do reducionismo antropocêntrico é a ênfase que a racionalidade moderna atribui ao princípio da igualdade e a correspondente negação do princípio hierárquico. Argumenta que, ao considerar todos os indivíduos humanos como sujeitos de direito relativamente iguais, estabeleceu-se a impossibilidade de atribuir os mesmos direitos aos seres não-humanos, por natureza diferentes de nós. Esse processo implicou numa a ampliação da separação entre a humanidade e a natureza.

Por outra perspectiva, pode-se observar que o processo de constituição do paradigma científico clássico em sua busca de um conhecimento "verdadeiro", objetivo, regular e quantificável tendeu a enfatizar a igualdade e a suprimir as diferenças da realidade. Nesse processo de homogeneização da realidade favoreceu a expansão da racionalidade instrumental e de uma ciência positivista, neutra e descomprometida de considerações éticas.

O igualitarismo moderno é também inseparável do individualismo, porque diferentemente do princípio hierárquico, que engloba seu contrário - numa relação de interdependência que favorece o diálogo e a solidariedade - tende a estabelecer relações unidirecionais, que negam a dinâmica dialógica da realidade. Segundo Leis, tanto a hierarquia degradada, que produz um mundo desigual regido pela dominação, quanto a igualdade degradada, que gera um mundo homogêneo e totalitário sem respeito às diferenças, favorecem relações que impedem a complementação e a reciprocidade necessárias numa relação amorosa. E, exatamente por não propiciar o desenvolvimento de relações amorosas, o princípio da igualdade é funcional à sociedade moderna, ao contrário do princípio hierárquico. Portanto, conceber e viver hierarquicamente as relações sociais passa a se constituir num requisito necessário para construir o Contrato Natural.

Conclui seu diálogo com Dumont afirmando que o ambientalismo é a única expressão capaz de revisar o igualitarismo moderno no sentido de um mundo orientado pela aceitação da diferença e pela solidariedade nas relações entre os homens, e destes com os seres não-humanos.

Em Nietzsche, encontra um reforço às possibilidades de introduzir o princípio da hierarquia na sociedade moderna e pistas valiosas para pensar o "espírito" do ambientalismo. Resgata assim, da obra desse autor, a defesa de um indivi-dualismo que valorize mais a diferença em contraposição ao individualismo moderno referenciado na igualdade. Essa crítica ao indi-vidualismo igualitário, por sua vez, aponta para a construção de uma nova subjetividade que seja capaz de integrar a diversidade, porque entende que a verdadeira realidade é a diferença. Percebe portanto, em Nietzsche, a consciência e a intenção de harmonizar o contraditório numa ordem hierárquica sem que se precise mutilar ou excluir nenhuma das dimensões da realidade. Para Leis essa compreensão guarda profunda sintonia com o espírito do ambientalismo e com a idéia de amor a que se refere neste trabalho. (p.226)

Tendo incorporado a contribuição dos pensadores supracitados Leis retoma, à guisa de conclusão, a questão da gover-nabilidade dos problemas ambientais e a caracterização do ethos do ambienta-lismo.

Sobre a governabilidade ambiental, adianta que ela não pode ser concebida de forma tradicional mas antes como uma anti-política, que integra não só uma diversidade de atores provenientes de múltiplos setores sociais e de escalas que vão desde o plano local até o plano global, como uma complexa variedade de valores políticos, éticos, sociais, estéticos e espirituais. Para o autor essa governa-bilidade dependerá tanto da conjuntura política tradicional quanto de uma nova subjetividade capaz de reorientar valores e interesses incompatíveis com a susten-tabilidade ambiental.

Com relação ao "ethos do ambientalismo", define-o com atributos plurais que articulam uma capacidade de operar sínteses, uma postura transformadora, um caráter ético-amoroso e uma atitude não-moderna.

Um dos pressupostos básicos da presente análise entende o ambientalismo como um projeto "realista-utópico" que só poderá vir à realidade através da construção de pontes e aproximações entre fenômenos percebidos como opostos, tais como as experiências espirituais e materiais, as dimensões conjuntural e civilizatória da realidade e os mundos social e natural, entre outras tantas dicotomias inconciliáveis que herdamos da cultura racionalista moderna. Para Leis, é justamente aí que repousa a força do ambientalismo: nessa capacidade de articular forças diferentes e mesmo contraditórias num sentido convergente.

Compreende também que o "ethos do ambientalismo" é amoroso porque iguala e hierarquiza as múltiplas dimensões da realidade ao mesmo tempo.

Caracteriza, por outro lado, o "ethos do ambientalismo" como "pré-pós-moderno" pela insuficiência e incapa-cidade do pensamento e da prática modernos em responder às suas demandas relativas aos valores não-modernos.

Todas essas características compõem o potencial inovador do ambientalismo que, segundo Leis, abre a possibilidade de uma "reforma criativa da sociedade contemporânea" orientada por uma "reordenação amorosa da realidade".(p.15)

Para alguns leitores mais céticos pode parecer inevitável questionar, no contexto da crise ambiental, a possibilidade de uma harmonização entre atores sociais dotados de valores e interesses contraditórios. A dúvida que se justifica nas incertezas da condição humana e na indigência ético-espiritual de nossa conjuntura global interroga se estamos, enquanto espécie, maduros para uma transição dessa magnitude que substitui o princípio do egoísmo pelo princípio do amor. Em outras palavras, seremos capazes de harmonizar o estoque disponível de riqueza, status e poder num projeto de sustentabilidade democrático, solidário e eticamente comprometido com a vida?

O trabalho de Héctor Leis dá um tratamento original à complexidade da crise socioambiental agregando a seu debate contribuições inovadoras.

Ressalta-se, em primeiro lugar, a interpretação da crise ambiental como um processo civilizatório que coloca como requisito fundamental de seu equacionamento uma reorientação profunda dos valores e concepções culturais, éticas e espirituais da humanidade. Aponta para a mesma direção, a importância que o autor atribui à dimensão espiritual da crise ecológica, abrindo uma perspectiva inovadora no debate da sustentabilidade, pontuado por argumentos tecnológicos, econômicos, biológicos e políticos e, mediado exclusivamente pelo saber científico.

Também resgata, ao longo de todo o trabalho, a possibilidade de um outro tipo de inteligência ou de compreensão da realidade e de seus aspectos contradi-tórios, que se diferencia da razão formal e se identifica com a razão dialética característica das tradições orientais. Isto é, privilegia em sua leitura da realidade uma visão integradora, que concebe os antagonismos como forças complemen-tares e não como elementos apartados e inconciliáveis entre si. Assim, ao invés da opção excludente "isto ou aquilo" afirma a opção includente que reúne "isto e aquilo". Daí sua insistência nas possibilidades de cooperação, articulação, síntese e de relação amorosa abertas pela crise ambiental e pelo ambientalismo envolvendo atores, valores e interesses diferenciados e até contraditórios.

Expressa com fidelidade o espírito de seu trabalho quando conclui que "o ethos do ambientalismo não é um nome para uma realidade objetiva. Ele é uma aventura espiritual-civilizatória do indivíduo contemporâneo". Para Leis "o desafio ambientalista não se reduz a tornar sustentável um dado modelo de sociedade moderna. Isto é secundário frente à necessidade de nutrir o homem contem-porâneo com as vivências dos tempos do heróis gregos e místicos sufis, quando a vida era um campo de amor, luta e respeito, sincrético e mutável, entre os deuses, os homens e a natureza".(p. 230-231)

Héctor Leis nos oferece um livro valioso que desperta dimensões pouco observadas da questão ambiental e transcende os limites formais de um trabalho acadêmico. A despeito das dúvidas que possam ser levantadas sobre os destinos do ambientalismo, é evidente a profundidade, o pioneirismo e a relevância das reflexões desenvolvidas no presente ensaio que se torna indispensável a todos aqueles que se interessam pela problemática socioambiental, e pela discussão das possibilidades de construção de uma nova civilização onde o respeito à vida, em sentido amplo, oriente o sentido de nossa aventura terrestre.

Revista Ambiente e Sociedade

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