sábado, 5 de junho de 2010

Elementos para a História da Família Ocidental, 1500-1914



Francisco Maria Pires Teixeira
Pós-Graduando em História Social, DH -FFLCH/USP

ANDERSON, Michael. Elementos para a História da Família Ocidental, 1500-1914. Trad. de Ana Falcão Bastos. Lisboa: Editorial Querco, 1984.

Publicado originalmente na Inglaterra, em 1980, este livro do Prof. Michael Anderson vem comprovar, em si próprio, um fenômeno, cuja constatação já se tornou lugar-comum: o extraordinário desenvolvimento dos estudos de história da família nos últimos 20 a 30 anos. Desenvolvimento que é atestado não só pela quantidade expressiva de publicações apresentadas na Europa e na América, mas ainda pela diversidade teórico-metodológico na pesquisa dos sistemas familiares conhecidos. E aqui situa-se, precisamente, o objetivo central desta obra: o estudo das três principais escolas, ou abordagens, como as denomina o autor - a "demográfica", a "dos sentimentos" e a da "economia doméstica" -para com elas compor um quadro geral das características do regime familiar no Ocidente, entre os sec. XVI e XX.

O prestígio e a força da abordagem demográfica, cuja referência maior é o celebre "Cambridge Group for the History of Population", decorre do fato de que, além de terem sido os demógrafos franceses e ingleses os primeiros a aplicar os métodos e as técnicas da demografía ao estudo das estruturas familiares, foram também os que pioneiramente produziram pesquisas e resultados valiosos para um novo conhecimento da história da família. Apoiados nos princípios e regras das ciências naturais e sociais quantitativas, os demógrafos foram atrás da "reconstituição da família", estudando acuradamente os velhos registros paroquiais, as listas de casamentos, nascimentos e óbitos, buscando compor o quadro mais amplo possível de dados comparáveis, relativos a pequenas comunidades, a sociedades mais abrangentes e a períodos longos. Tais estudos puseram a descoberto velhos equívocos e revelaram realidades novas nesta área do conhecimento histórico. Além de terem comprovado, definitivamente, a inexistência de um modelo único ou uniforme de regime familiar no Ocidente, mostraram, entre outras coisas, que dos sec. XVI ao XIX a idade média do casamento foi quase sempre tardia (em torno dos 27 anos); que desde o sec. XVII diversas comunidades já praticavam formas de controle da natalidade, e que a taxa de ilegitimidade dos filhos parece ter oscilado paralelamente às idades dos casamento (mais alta nos períodos de casamento tardio e mais baixas quando o casamento é mais precoce). Mas a grande contribuição deste grupo está na determinação das dimensões da unidade familiar: ao contrário do que se acreditou por muito tempo, as unidades familiares, mesmo as camponesas do período pré-industrial, apresentaram uma dimensão muito mais próxima da "família nuclear" (de 5 a 7 membros, incluindos os criados) que da "família patriarcal" ou "extensa" (de 15 a 20 pessoas).

Ao contrário da abordagem demográfica de Peter Laslett, a abordagem dos sentimentos de Ariès e Shorter, porém, recusa-se a aceitar que as mudanças profundas nas estruturas familiares do Ocidente nos últimos séculos possam ser determinadas a partir de conjuntos de dados demográficos. Para estes autores, mais que a estrutura "física" da família, o que, na verdade, constitui sua realidade são suas complexas relações afetivas. É, pois, o que deve ser pesquisado para compor-se a história da família: a evolução das idéias, valores e emoções presentes no interior da vida familiar. Sexualidade, infância, lar, paternidade, privacidade, amor e, mesmo, família - são algumas expressões indicativas dos processos psico-sociais organizadores da estrutura familiar e, portanto, processos que presidem a sua transformação histórica. Entre as conclusões básicas a que chega a abordagem dos sentimento está a de que, na história da família no Ocidente, até boa parte do sec. XIX, o casamento não passou de um "contrato" de função e sentido econômico, que, entretanto, por força de uma maior individualidade e privacidade dos casais, relacionadas por sua vez com a expansão industrial e urbana, evoluiu para um casamento sustentado em uma relação amorosa mais forte entre os cônjuges e entre estes e os filhos.

Inspirados na sociologia e antropologia social, os estudiosos da abordagem da economia doméstica, como L. K. Berkner e Jack Goody, procuram reconstituir a história da família a partir da atividade econômica dos seus membros. No sentido e nas injunções do trabalho produtivo "doméstico" e nas relações de troca com outros grupos está, para esta escola, a chave da organização da ordem familiar, bem como da sua persistência e evolução. Ganham importância, pois, os estudos sobre os processos de transmissão de bens, a herança, divisão do trabalho doméstico, renda familiar, excedentes, proletarização da mão-de-obra camponesa, migração, etc. Para estes pesquisadores existe uma notável vinculação entre a continuidade e coesão da ordem familiar (laços conjugais, paternidade, parentesco, compadrio) e os padrões de organização e controle da economia doméstica, especialmente quanto à divisão do trabalho e transmissão do legado familiar. O que é verificado, muito claramente, na persistência do regime familiar próprio das comunidades rurais em boa parte da sociedade industrial européia.

Não há dúvida de que Michael Anderson consegue, num texto breve, de pouco menos de 100 páginas, caracterizar as grandes escolas da recente história da família e suas principais contribuições: a inestimável abundância de dados quantitativos levantados pelos demógrafos do Grupo de Cambridge, propostas teóricas novas como a do "momento do ciclo de vida" de Berkner e a revalorização do estudo dos afetos, ao mesmo tempo significantes e significados da ordem familiar. Anderson, contudo, não deixa de apontar igualmente as limitações e deficiências: o "quantitativismo" excessivo dos demógrafos, a "superficialidade-quase-romântica" dos estudiosos dos sentimentos e o alcance por demais limitado dos estudos muito particularizados sobre a economia doméstica de pequenas comunidades, que acabam comprometidos quando confrontados com dados quantitativos mais amplos, referentes a experiências e processos sociais mais abrangentes.

Mas, a essas críticas de Michael Anderson pode-se acrescentar outras, agora ao seu próprio trabalho. Seria o Ocidente apenas a Europa Ocidental, ou, pior ainda, algumas regiões anglo-saxônicas, francesas e nórdicas da Europa Ocidental? Na história social da família não há classes sociais? Como interferem os grandes conflitos de classe nos processos internos da vida familiar? Ainda que o fato não comprometa o valor do livro, existe uma omissão quanto a estas e outras questões. Omissão que, de resto, evidencia-se como grande desafio para todas as "escolas" que hoje pesquisam intensamente a história da família.

Revista de História - USP

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