quarta-feira, 30 de junho de 2010

Critical Events: An Anthropological Perspective on Contemporary India


DAS, Veena. 1995. Critical Events: An Anthropological Perspective on Contemporary India. New Delhi: Oxford University Press. 230 pp.

Virginia Vecchioli
Mestranda, PPGAS-MN-UFRJ


Ao longo de uma introdução, seis capítulos e um epílogo, a antropóloga indiana Veena Das apresenta-nos um olhar reflexivo sobre as relações conflitantes entre o Estado e diversas comunidades políticas da Índia contemporânea. Mediante a seleção de um conjunto heterogêneo de "eventos críticos", como o desastre industrial de Bhopal, a Partição da Índia, a prática do sacrifício feminino entre os hindus e o apelo ao exercício da violência entre os militantes Sikh, a autora pretende mostrar e compreender algumas das categorias nativas que hoje são centrais na política indiana ­ como as de "vítima", "memória", "tradição", "herói", "honra", "sacrifício" e "pureza"­, não a partir de uma perspectiva abstrata e distante acerca das injustiças do sistema, mas sim do sofrimento cotidiano das vítimas desses acontecimentos.

A seleção desse conjunto de eventos violentos não é resultado, segundo a autora, de uma adesão a modismos teóricos. Em vez disso, deriva de uma irrupção da própria violência no cotidiano da sociedade indiana, onde conjuntos de atores que levavam até então uma vida anônima surgem na esfe- ra pública interpelando o Estado pe- las conseqüências de um sofrimento percebido como "repentino" e "inexplicável". Como momentos de "quebra do cotidiano", esses eventos permitem explicitar as transformações ocorridas nas noções e nas práticas da política contemporânea, quando as comunidades, ao se confrontarem com o Estado, se constituem como atores políticos; e quando o Estado, ao reconhecer essas comunidades como "vítimas", assume a responsabilidade de atuar "em favor" de seus interesses. Tais eventos revelam com clareza que esse encontro entre uma racionalidade burocrática e os valores e as noções das comunidades não se realizará livre de conflitos.

O livro não constitui, portanto, uma superposição desconexa de casos e per- sonagens, pois lhe atravessa a preocupação de entender os conflitos que surgem desse encontro, junto com as implicações teóricas e políticas da própria prática das ciências sociais em cada uma das situações analisadas. Porque a experiência da violência não somente irrompe no cotidiano das vítimas, mas também nas próprias construções teóricas que as disciplinas elaboram sobre o mundo social. Métodos e noções tradicionais são necessariamente transformados. Afinal, em contextos nacionais perpassados pela violência, como reproduzir a metodologia que a antropologia desenvolveu no estudo de sociedades de pequena escala? Como reconhecer as categorias da política que são significativas para milhões de pessoas? Como dar conta dos processos históricos que transformam essas categorias sem cair em ilusões totalizantes?

Esses questionamentos se justificam não apenas por razões teóricas, mas também políticas. Consciente da nova "vitimização" que as teorias causais e monolíticas da violência produzem, a autora tenta construir um tipo de narrativa que permita "recuperar" as vozes das vítimas. É na interseção entre os interesses em estudar a violência e pensar a política em contextos nacionais que o conceito de "eventos críticos" adquire sentido como instrumento analítico que articula teoria, metodologia e produção textual.

Critical Events é uma "etnografia experimental" de uma sociedade na-cional. Consciente da contribuição de muitos estudos para a produção ou a convalidação científica de estereótipos nacionais, Veena Das explicita quais são os processos de objetivação que engendraram as interpretações da Ín- dia como "essencialmente" desigual, tradicional e fundamentalista. Para a autora, essas imagens não são simples "ficções" narrativas, mas "fatos so-ciais" que intervêm na esfera pública. Tomar os antropólogos como "atores" e suas etnografias como "interpretações nativas" é parte do programa da autora para desnaturalizar o conhecimento antropológico, mostrando sua afinidade com as suposições próprias do moderno Estado nacional.

A estratégia de recortar esses eventos a partir de seus embates públicos permite integrar à narrativa as múltiplas vozes que participam da política, de modo que a Índia não possa ser apresentada como uma entidade única. O que esses eventos, simultaneamente, evocam é a destruição do sentido de integridade do local e do sentido de homogeneidade do nacional. O caráter "ficcional" do local como unidade auto-suficiente se evidencia uma vez que a totalidade das relações sociais necessárias para entendê-lo não se encontra no interior das comunidades. Com a experiência do terror, o mundo local é transformado, e a percepção dos vínculos entre o local e o global passa a ser uma condição de inteligibilidade tanto para os sujeitos que sofrem tal violência como para o antropólogo que pretende compreendê-la.

O reconhecimento da natureza fragmentária da experiência da violência tem conseqüências teóricas e metodológicas. Para Das, deve-se privilegiar a dimensão espacial uma vez que esses eventos críticos supõem uma ruptura na continuidade temporal. O passado já não fornece os sentidos adequados para compreender a nova situação, e tanto atores quanto antropólogos vê- em-se obrigados a criar novos modelos interpretativos. A intenção de manter-se fiel a essa qualidade do "campo" justifica que as transformações recentes na política indiana sejam expostas em uma sucessão de eventos considerados sincronicamente.

Essa perspectiva desconstrutivista sobre a nação, o espaço local e a violência orienta o olhar de Veena Das para uma redefinição do tipo de sujeito social. Os atores que habitam Critical Events não estão ligados a um território local exclusivo, mas constituem ­ no sentido que Benedict Anderson dá à expressão ­ "comunidades imaginadas". Dada esta qualidade, Veena Das localiza seu encontro no espaço da esfera pública. Romances, discursos parlamentares, relatórios médicos, ordens judiciais, estudos clínicos, narrativas familiares, conferências científicas, memórias e discursos políticos são os recursos a que a autora recorrerá na construção desses eventos.

Critical Events também faz referência a diferentes momentos significativos na história da Índia contemporânea. São críticos pois, como resultado desses conflitos, surgiram novas formas de ação que ressignificaram os sentidos nativos da política e transformaram as identidades sociais. E isto porque, a partir da perspectiva da autora, a violência não é somente destruição. O so-frimento e a dor têm seu papel na criação de "comunidades morais". Ao exigirem justiça e ao se relacionarem com o sistema burocrático e jurídico do Estado, tais comunidades são deslocadas do mundo privado e "criadas" como comunidades políticas.

O que Critical Events pretende mos- trar é essa tensão entre, de um lado, as tentativas do Estado de controlar a identidade de seus membros inscrevendo-os na categoria de "vítimas" e, de outro, os esforços das comunidades para resistir a esse poder disciplinador. Ao evidenciar esse tipo de ator anônimo em situações extremas, Veena Das revela, de forma extremamente sugestiva, a maneira como, por meio dessa operação de reconhecimento, o Estado se apropria do sofrimento deles. E, ao fazê-lo, conduz esses mesmos atores a uma nova violência, submetendo-os à sua própria lógica. Paradoxalmente, mediante tal operação, o Estado consegue legitimar-se. Neste ponto parece encontrar-se a força demonstrativa desses "eventos críticos".

Os conflitos desfraldados em torno do Estado e da comunidade constituem o leitmotiv dos diferentes "fragmentos" que integram o livro. Mas, quando os expõe, a autora afasta-se dos argumentos reducionistas que marcam a interpretação da Índia e inscreve as oposições entre tradição e modernidade, Estado e comunidade, hindus e muçulmanos nos debates mais amplos e caros à tradição antropológica ­ discussões como as que se referem ao pluralismo legal, à construção de hegemonias estatais e comunais e aos processos coletivos de construção da memória e do esquecimento.

Critical Events apresenta-se, por último, como "um experimento pós-moderno com a forma da etnografia". Por meio da fragmentação, tenta levar em conta as implicações que a contemporaneidade engendra no texto etnográfico, porque a violência questiona não somente a própria condição da modernidade, mas também suas formas clássicas de representação. Critical Events, como solução narrativa, pretende converter-se em "espelho" das características distintivas do terror.

A intenção de manter-se "fiel" ao campo e "perto" das vítimas conduz Veena Das a resistir aos discursos totalizantes e abstratos dos "especialistas". Para a autora, pretender emitir um preceito acerca da "racionalidade" da violência é desconhecer as marcas de sua singularidade e, com isso, exercer uma nova violência sobre as vítimas. Por isso, a violência não requer ser explicada, mas interpretada. Se os sujeitos se convertem em vítimas justamente por não poderem provar a autenticidade de seus sofrimentos, a antropologia social pode transformar-se em uma força "curativa" ao possibilitar que se exponha sua voz e ao provocar em outros a experiência do sofrimento.

No entanto, se a fragmentação do relato em uma sucessão de eventos críticos é um ato de compromisso ético e político para com as vítimas, a relativização da violência é sua conseqüência trágica. Porque é somente a partir desta posição que Das pode afirmar que os eventos vinculados a um divórcio ou à violação em massa de mulheres são todos "igualmente dramáticos". Como é possível esta equiparação, que inclui em última instância as próprias ciências sociais? Com a condição de expurgar a "historicidade" dos sucessivos eventos narrados no livro. É sobre esta base que todos os casos parecem converter-se em exemplos de uma mesma coisa: A Violência.

Ao tentar livrar-se do exotismo que tradicionalmente é atribuído à Índia, paradoxalmente a autora homogeneiza a experiência desses eventos dramáticos e os torna exóticos. A essencialização da violência aparece exposta em toda a sua dimensão ao recorrer ao propósito de alcançar "A Verdade" das vítimas. Esta existe somente se as considerarmos uma unidade, e se, em última instância, pensarmos como tal as comunidades imaginadas que habitam a Ín-dia contemporânea. Sob tais suposições, a própria categoria de "vítima" aparece naturalizada e a violência é transformada em um "absoluto" porque o espaço que atravessa o campo, o pesquisador e a teoria é a estratégia textual e não os processos concretos que conduzem a sua irrupção. Inscrever esses eventos no seu processo histórico permitiria reconhecer também os espaços de convergência e negociação entre Estado e comunidade, o que nos obrigaria a tratar a categoria de "vítima" não como algo absoluto, mas como a substancialização provisória de um processo concreto de disputa social que requer ser explicitado etnograficamente.

Revista Mana

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