sexta-feira, 25 de junho de 2010

Carismáticos e Pentecostais: Adesão Religiosa na Esfera Familiar


Clara Mafra
Doutoranda, PPGAS-MN-UFRJ


MACHADO, Maria das Dores Campos. 1996. Carismáticos e Pentecostais: Adesão Religiosa na Esfera Familiar. Campinas: Ed. Autores Associados/ANPOCS. 218 pp.

Originalmente apresentada no IUPERJ – e premiada pela ANPOCS como melhor tese de doutorado de 1995 – Carismáticos e Pentecostais vem a público em um momento de revitalização da produção acadêmica sobre o tema da religião. Este livro apresenta os resultados de uma pesquisa realizada com membros de diferentes igrejas pentecostais e do Movimento de Renovação Carismática Católico (MRCC), e tem como tema central a compreensão das mudanças sofridas pelos fiéis dessas igrejas a partir da sua adesão religiosa, e os efeitos, às vezes inesperados, dessas mudanças sobre a vida pública. Todo um conjunto de questões diretamente vinculadas à definição dos papéis de gênero e aos arranjos familiares é abordado e desenvolvido com precisão e originalidade, bem como analisado e criticado, levando-se em conta processos sociais mais gerais, mediante a investigação de questões formuladas a partir da tradição sociológica.

Um dos primeiros desafios colocados pela autora foi compreender o problema da redefinição dos papéis de gênero no meio pentecostal e carismático, sem cair na resposta superficial de que os efeitos dessas conversões se resumem no reforço da opressão feminina. Tal resposta supõe uma relação de poder de mão única que ignora ou desconsidera, enquanto aspecto constitutivo do problema sociológico, a força de atração crescente desses movimentos religiosos sobre as mulheres, não só dos segmentos populares, mas também dos estratos baixos das classes médias.

Machado torna mais complexo, então, esse diagnóstico, ao considerar o contexto social em que esses movimentos religiosos avançam. Seu argumento é o de que os movimentos pentecostal e carismático, ao fornecerem instrumentos para a auto-afirmação feminina e ao exigirem uma maior participação do homem na família e na igreja, tendem a trazer vantagens às mulheres, levandose em conta o contexto mais geral, hierárquico e "patriarcal". De certa forma, esses movimentos não fornecem instrumentos para a afirmação das mulheres no campo dos direitos civis, sociais ou políticos, nem estão articulados com o Estado ou com o Direito. Contudo, dão meios para a dignificação e auto-reconhecimento humano básico das mulheres, aspecto crítico em uma "cultura patriarcal" – o que acaba se refletindo, indiretamente, em inúmeros e dispersos processos sociais, como a reconstituição de famílias em situação de miséria, o gerenciamento dos conflitos domésticos sem o recurso à violência, uma maior participação feminina em negócios e empregos no mercado informal etc. Em outras palavras, a autora faz um certo cálculo sociológico, em que uma desigualdade que exige a complementação entre homem e mulher na família e na igreja é menos prejudicial e significa um ganho social para as mulheres em relação à outra desigualdade, herdada, que acentua a especialização dos gêneros segundo diferentes áreas de ação.

Ao lado dessa preocupação em apreender os efeitos mais gerais dos processos sociais, a autora enfatiza a necessidade de se realizar análises mais adequadas ao contexto sociológico atual, marcado, entre outros aspectos, pela fragmentação da identidade, pela formação de famílias com múltiplos pertencimentos religiosos, pela maior flexibilização social devido a um processo de destradicionalização. Em função disso, Machado traz para o centro da análise da conversão a importância da distinção de unidades mínimas: por um lado, o que ocorre quando a afiliação religiosa dos dois parceiros é a mesma, ou não; por outro, os distintos efeitos nas relações familiares dos casos em que a mulher se converte sozinha daqueles em que o homem é o único converso. Ao privilegiar tais aspectos dos arranjos familiares, ou de condições de gênero, para o desenvolvimento da temática da conversão, a autora opera um enorme deslocamento do olhar sociológico, tradicionalmente apoiado nas fronteiras religiosas. A abordagem tradicional procura compreender de que religião se está falando: enquanto o pressuposto da transformação individual é um imperativo para o evangélico – onde o novo fiel se engaja em um processo de santificação e de rejeição ao mundo –, a religiosidade católica – herdada e majoritária – é experimentada sem que haja uma valorização de processos de mudança individual ou familiar. Tal diferença está conectada com a história de católicos e protestantes e a correlação de forças dessas duas tradições.

Na contramão dessas análises, Machado indica que há mudanças mais gerais no campo religioso e na constituição interna dos movimentos pentecostais e carismáticos, que têm aproximado o pentecostalismo de um ethos católico (e vice-versa) e, em decorrência, multiplicado os processos de conversão dos fiéis dos dois movimentos. Nessa linha de análise, ao compartilhar quase que o mesmo ethos religioso, os fatores sociológicos que afetariam mais profundamente a vida desses fiéis após a conversão se referem ao recorte de gênero. Com esse enfoque, a autora chega a algumas recorrências sociais: a afiliação religiosa e a participação constante nas atividades religiosas, quando é realizada solitariamente pela mulher, estimula o conformismo e uma tolerância maior por parte das mesmas em relação aos seus parceiros; os efeitos positivos da conversão só se consolidam quando o casal adere à nova religião, na medida em que ambos, homem e mulher, caminham juntos no sentido da busca da santificação e da valorização da relação familiar.

De modo geral, a autora lança mão de categorias sociológicas formuladas a partir de princípios dualistas – público/ privado, igualitário/hierárquico, repressão/ libertação etc. – que, no encaminhamento das questões, sofrem fissuras devido a falhas interpretativas, perspectivas alternativas, tensões irresolvidas, o que, em um movimento circular, coloca em causa o valor dessas cisões para organizar a compreensão sociológica. É como se houvesse um questionamento das cisões duais produzido a partir das próprias categorias, sem o desenvolvimento de um empreendimento crítico externo e alternativo. Provavelmente, a exploração de uma "terceira via" seria um caminho frutífero para a descrição do arranjo de gênero pentecostal, que não cabe, devido a excessos, dentro do modelo hierárquico, nem corresponde, sem faltas, ao modelo igualitário.

O livro está dividido em cinco capítulos. No primeiro, a autora realiza uma revisão bibliográfica de fôlego, em que sobressai a pertinência do recorte de gênero na compreensão dos aspectos contra-seculares presentes nos movimentos religiosos que aborda, marcados por uma fraca institucionalização, forte efervescência emotiva, ênfase no voluntarismo etc. Na mesma vertente, o capítulo seguinte realiza uma breve contextualização histórica dos movimentos pesquisados, em que o pentecostalismo, caracterizado por uma religiosidade mágica com aspectos racionalizantes, garante sua expansão nas últimas décadas, principalmente por fornecer instrumentos simbólicos modernizantes a um segmento popular imerso em uma religiosidade do catolicismo popular. O MRCC compartilha essa mesma religiosidade mágica e intimista, diferenciando-se principalmente pela adesão ao Marianismo e por atrair preferencialmente segmentos de classe média. Ainda no segundo capítulo, a autora faz uma descrição detalhada do perfil socioeconômico de seus entrevistados.

No terceiro capítulo, Machado testa sua hipótese dos efeitos da conversão conforme a opção solitária ou não de um dos cônjuges. De modo geral, esse capítulo é dedicado à investigação das inúmeras, pequenas e cotidianas negociações que ocorrem no processo de conversão e em seguida à conversão da nova fiel com seu companheiro e seus familiares, onde ganha destaque uma análise dos conflitos que eclodem nesse processo e os instrumentos simbólicos e rituais fornecidos pelo pentecostalismo e pelo movimento carismático para lidar com eles.

No quarto capítulo, quando são analisados os efeitos da conversão nos arranjos familiares dos fiéis a partir de questões pontuais, como a da autoridade espiritual, da responsabilidade na tomada de decisão, da representação do gênero feminino, Machado paulatinamente desenvolve sua tese sobre os avanços dessas religiões em relação ao "patriarcalismo" vigente. Nesse caso, mesmo que a autora não concorde com as interpretações que vêem no pentecostalismo a formação de um sistema de gênero alternativo – seu ponto é que as doutrinas pentecostal e carismática são ambivalentes –, ela diferencia as duas doutrinas, na medida em que a carismática, ao permanecer vinculada à Igreja Católica e ao culto de Maria, estabelece mais continuidades com o sistema hierárquico e "patriarcal" vigente.

No quinto capítulo, sobre os temas da sexualidade e da reprodução, as fronteiras entre pentecostais e carismáticos tornam-se mais nítidas. Não tanto por uma visão de senso comum, que reconhece nesses movimentos religiosos a afirmação de uma moral sexual rígida e puritana – aspecto que é relativizado através da descrição da valorização da emoção nos cultos e reuniões "quentes", nos contatos humanos calorosos entre os fiéis de ambos os movimentos e na valorização da sexualidade (casta) como fonte de prazer –, mas porque os carismáticos experimentam mais vivamente uma tensão entre valores pentecostais e a doutrina e normas da Igreja Católica.

Enfim, ao valorizar as questões de gênero nas descrições dos universos pentecostal e carismático, Machado não apenas atinge uma perspectiva que revela traços fundamentais desses movimentos, como contribui para o estudo das religiões, ultrapassando referências obrigatórias do campo, como a distância entre católicos e evangélicos, ganhando com isso um horizonte ampliado que lhe permite indicar tendências recentes e globais. Por outro lado, ao fazer das religiões um campo de investigação sobre o gênero, ela aponta respostas sociais que vêm problematizar modelos teóricos duais, balizados em noções formuladas no bojo do racionalismo secular. Diante desse novo campo de questões inaugurado por Machado, o uso incômodo de categorias como patriarcalismo ou machismo tornam-se questões menores, servindo mais para provocar simpatias e antipatias do que como blocos categoriais que limitam a análise.

Revista MANA

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