sexta-feira, 25 de junho de 2010

Besta-Fera: Recriação do Mundo


Luís R. Cardoso de Oliveira
Prof. de Antropologia, UnB


VELHO, Otávio. 1995. Besta-Fera: Recriação do Mundo. Ensaios de Crítica Antropológica. Rio de Janeiro: Relume-Dumará. 250 pp.

A publicação dessa coletânea põe à disposição do público uma seleção de artigos produzidos, ao longo de onze anos, por um dos mais instigantes antropólogos brasileiros. Além de apresentar um panorama geral das idéias e preocupações do autor durante o período, a escolha dos artigos foi particularmente feliz ao combinar trabalhos que, a despeito da variedade dos temas abordados, têm como pano de fundo a reflexão sobre o métier antropológico e caracterizam bem sua maneira de fazer antropologia.

Eu diria que um dos principais ensinamentos ilustrados na coletânea é a maneira franca e aberta com a qual Velho enfrenta os problemas que aborda. Aliás, diria mesmo que o conselho seminal que Ricoeur atribui a seu primeiro mestre de filosofia, Roland Dalbiez, caracterizaria perfeitamente a atitude de Velho nos artigos aqui reunidos: "quando um problema te perturba, te angustia, te amedronta, nos dizia ele, não tente contornar o obstáculo, aborde- o de frente".

Essa atitude aparece com a mesma intensidade nos trabalhos em que o autor procura pensar a relação da antropologia com outras disciplinas ou domínios do conhecimento/experiência, como a filosofia (capítulo 3) e a religião (capítulos 2 e 10), naqueles em que o tema central é a própria perspectiva antropológica (capítulos 1, 4, 8 e 9), assim como nos trabalhos em que discute o lugar ou papel do antropólogo enquanto cidadão (capítulos 5, 6 e 7), ou ainda, quando trata do fenômeno da globalização no último artigo do livro (capítulo 11). Na realidade, os vários temas se entrecruzam de maneira original e são enriquecidos com material etnográfico sobre o mundo rural brasileiro, ao qual o autor dedicou mais de vinte anos de pesquisa e reflexão. O produto dessa articulação de interesses e preocupações é uma visão do métier antropológico como um empreendimento onde a reflexão é tomada não apenas como um exercício metodológico, mas como um commitment no sentido ético-moral do termo. Isto é, onde a interpretação do antropólogo é sistematicamente exposta à crítica de seus interlocutores – os quais Velho procura ouvir com atenção –, sejam eles seus "informantes" no campo ou seus colegas na academia, e onde o reconhecimento do caráter normativo da disciplina, assim como de suas implicações, está sempre presente.

Todas essas características já se fazem notar no primeiro capítulo, "O Cativeiro da Besta-Fera", que inspira o título do livro e coloca o empreendimento em perspectiva. Tendo como referência a noção de cativeiro – assim como é acionada em suas diversas manifestações no campo, e salientando a origem bíblica da noção –, o autor repensa algumas dimensões importantes do rico debate, durante os anos 70/80, sobre as perspectivas do campesinato (ou pequena produção) no Brasil, e propõe um novo equacionamento do problema sociológico que motivou as duas principais posições em jogo. Em poucas palavras, a discussão sobre as alternativas entre a reprodução do campesinato e seu eventual aburguesamento na fronteira, de um lado, e a situação de sujeição acompanhada pelo processo de proletarização no engenho (e fora dele), de outro, é rearticulada por intermédio da ambivalência autonomia-servidão que é sugerida na utilização nativa da noção de cativeiro, tanto para caracterizar a situação de sujeição ao senhor, como para indicar a subordinação ao domínio das leis. Velho sugere que a compreensão da situação que engendra a oposição cativeiro/liberdade não pode ser adequadamente desenvolvida a partir de uma ênfase excessiva (e quase unilateral) na ótica da autonomia, que teria caracterizado a polarização do debate sobre o campesinato. Debate no qual o autor foi um dos principais atores.

Inspirado na análise de Ricoeur sobre a simbólica do mal e em sua perspectiva que vê a ação social como um texto, Velho procura resgatar a dimensão (simbolicamente) positiva da noção de cativeiro. Isto é, a dimensão que remete ao "desejo de dependência", que freqüentemente acompanha a manifestação do "desejo de autonomia" no discurso das populações camponesas. Como vários dos trabalhos citados indicam, e o autor chama a atenção, o que está em jogo aqui é a valorização das relações de reciprocidade que teriam vigorado no passado (em geral idealizado) e que estariam sendo aniquiladas pela impessoalidade do mercado. Nesse sentido, embora Velho argumente convincentemente que as implicações desse desejo de dependência não se esgotam na substantivação da perda do "sítio" ou do "roçado", sugerindo várias possibilidades interessantes para equacionar a compreensão das práticas sociais vigentes com suas representações e com os problemas de ordem simbólica daí advindos, não chega a se engajar nas questões de ordem éticomoral que seu empreendimento suscita. Penso especialmente no paralelo bastante sugestivo, mas pouco desenvolvido no texto, que o autor traça entre as oposições alargar/fechar e cativeiro/ libertação (:42). Assim como a consciência política mal balizada pode fechar em vez de ampliar o horizonte do teólogo, a absolutização da idéia de libertação pode implicar a sua reificação. Isto é, se, segundo Velho, "a noção de abertura deveria ser desenvolvida em sua dimensão de acolhida e de escuta", a noção de liberdade também não deve ser dissociada do sentido que lhe dá sustentação no contexto das relações de reciprocidade valorizadas pelos atores e que, no limite, seriam constitutivas mesmo da vida social enquanto tal.

Parece-me que essas questões, assinaladas mas pouco exploradas no texto, remetem, de um lado, ao problema da legitimação das relações sociais ou dos direitos de cidadania e, de outro, ao problema dos pressupostos ético-morais que dão suporte às pretensões de validade da interpretação do antropólogo. Além dos dois problemas estarem mais ou menos relacionados ao longo do livro, e caracterizarem uma dimensão importante das preocupações antropológicas de Velho, aparecem de maneira explícita, ainda que com maior ou menor ênfase, em quase todos os artigos aqui reunidos. Nesse sentido, os comentários que se seguem têm como motivação a aceitação do desafio implícito nas reflexões do autor de que os problemas ou dificuldades encontrados pelo pesquisador/intérprete devem ser enfrentados de frente e sem receios.

No que concerne ao problema da legitimação das relações sociais, minha indagação seria quanto à viabilidade de se compreender adequadamente o fenômeno sem passar por uma discussão dos direitos de cidadania, à luz dos valores cultivados pela comunidade/ sociedade em questão, e sem lançar mão de uma perspectiva interpretativa que contemple a possibilidade de validação de questões de ordem normativa. Pois, será que a manifestação do "desejo de dependência" mencionado acima, assim como a defesa da gratuidade que estaria embutida nas resistências "à economia monetária, às relações impessoais, burocratizadas etc." (:161), não seriam expressão da demanda de reconhecimento de um direito passível de fundamentação no plano das condições necessárias para o exercício da cidadania em sentido amplo? Isto é, dentro de uma visão que articulasse a noção de cidadania à conjugação do respeito aos direitos do indivíduo com a consideração à pessoa do cidadão? Nesse sentido, e inclusive para ser mais coerente com a utilização da noção de reciprocidade, não seria mais apropriado falarmos com Mauss de obrigatoriedade (ou de obrigação moral) em vez de gratuidade do tipo de atitude (comportamento, ação) reivindicada pelos "informantes" de Velho?

Apesar de a noção de gratuidade permitir uma articulação interessante entre as representações dos atores e a crítica aos limites interpretativos da razão instrumental ou do utilitarismo, ela não oferece um caminho promissor para a sustentação das pretensões de legitimação das demandas dos atores em oposição às práticas vigentes. Pois, ao identificar-se com a idéia de espontaneidade, característica de atitudes e/ou ações que, ainda que desejáveis, dependem exclusivamente da vontade dos atores, a noção de gratuidade não viabiliza a interpretação de que a ausência de práticas assim orientadas (por esta gratuidade) possa ser percebida como uma falta de respeito ou mesmo como uma agressão a direitos.

Por outro lado, se, ao tomar a reflexão antropológica como um commitment, Velho leva a sério as pretensões de legitimidade das demandas de seus "informantes", o autor também não deixa de se preocupar com os problemas de validação da interpretação do antropólogo enquanto tal. Desse modo, nas várias formulações que utiliza para caracterizar sua perspectiva na antropologia, faz questão de marcar sua distância do "niilismo solipsista subjetivista" (:74) que tem tido uma influência significativa na disciplina, seja ao propor uma antropologia da relação ou do relacionamento (capítulos 2 e 4), ao sugerir a possibilidade de uma antropologia da transcendência (capítulos 8 e 9), ou quando discute o balizamento da produção de sentido (capítulo 9) e a possibilidade de se falar em realidades no plural (capítulo 10).

Entretanto, embora tenha grande simpatia pela perspectiva mais geral do livro, assim como uma grande identidade com a proposta de se manter a abordagem antropológica igualmente distante do niilismo e do cientificismo (:195), e também me identifique com sua crítica à "obsessão pelo poder" que parece ter invadido as ciências sociais (:199), não posso deixar de manifestar um certo desconforto com sua defesa do princípio de caridade como um "pressuposto indispensável à compreensão" (:204), isto é, na medida em que a sua adoção possa ser interpretada como um ato de vontade do pesquisador. Pois, se tomarmos atenção ao (ou consideração do) ponto de vista nativo como um pressuposto ético-moral da interpretação antropológica, a qual não pode fundamentar suas pretensões de validade sem se reportar às elucidações produzidas nesse diálogo com os atores, a opção pela caridade torna-se um passo desnecessário.

De qualquer forma, as interpretações efetivamente empreendidas por Velho são sempre ricas e reveladoras, motivando o leitor a se engajar nos problemas que o autor propõe, não apenas da perspectiva de um receptor de informações, mas do ponto de vista de um interlocutor pleno.

Revista MANA

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