sábado, 19 de junho de 2010

América latina no século XIX


Kirsten Schultz
The Cooper Union – New York

PRADO, Maria Ligia Coelho. América latina no século XIX. Tramas, telas e textos. São Paulo, Edusp, 2000.

O século XIX na América Latina tem sido explicado freqüentemente – e de forma simplificada – como resultado dos legados coloniais. Apesar do status desses legados ter sido alvo de debates (os conservadores apelando para as "heranças", e os marxistas denunciando a "dependência"), a ocupação e o domínio ibéricos formaram e fortemente limitaram as dimensões sociais, econômicas e políticas das experiências pós-coloniais. O passado da América Latina, em outras palavras, anunciava seu futuro destino. Mais recentemente, entretanto, os historiadores começaram a reexaminar a assim chamada transição da colônia para a nação, repensando a crítica da idéia de legado, sem deixar de levar em conta a perspectiva da continuidade1. Para essa nascente reavaliação, Maria Ligia Coelho Prado contribui com seu América Latina no Século XIX. Tramas, Telas e Textos, um admirável conjunto de ensaios sobre política e cultura política.

Como um todo, América Latina no Século XIX destaca-se por uma preocupação com importantes questões metodológicas e conceituais. Em primeiro lugar, como Prado indica em sua introdução, os ensaios oferecem uma revalorização do político como objeto histórico. Prado discorre sobre uma "nova história política" redefinida, por meio dos encontros com a antropologia e a filosofia, como uma história do poder. Trabalhando com o conceito de imaginário social de Bronislaw Baczko, afirma que "o poder, para se impor e sobreviver, precisa repousar em alguma legitimidade e, dessa forma, toda a sociedade deve inventar e imaginar a legitimidade com que sustenta o poder." (p.22) A busca para compreender a natureza da legitimidade também se apóia na pesquisa sobre as relações e contradições entre idéias e práticas, entre instituições sociais e econômicas e instituições políticas e discursos. Como exemplo, em talvez um dos melhores ensaios, Prado examina a história das universidades na América Latina. Reconhecida como uma crucial ligação institucional entre política e sociedade, no século XIX, a universidade estava no centro de movimentos por reforma, em que muitas vezes, os governos liberais colidiam com a Igreja. Como mostra Prado, no caso do Chile, ainda que a Igreja fosse incapaz de manter seu controle hegemônico sobre a educação, os novos projetos educacionais nacionais dedicados à "utilidade" e à "felicidade comum" continuaram a privilegiar a moral e a religião. Para Andrés Bello, a "verdadeira tarefa da civilização assentava-se na disseminação, por meio da educação, da moral que não podia se separar da religião". (p.96) Chamadas para forjar uma nova elite nacional e concebida como parte do próprio Estado, as universidades deveriam ser os agentes tanto do progresso como da disciplina, dos quais supostamente dependia a prosperidade.

Se o texto de Prado sobre as universidades oferece perspectivas estimulantes sobre objetos consagrados da história política (política ou intelectual), América Latina no Século XIX abre com um ensaio sobre um tema relativamente novo no campo: a participação das mulheres nas lutas pela independência. Aquelas que pegaram em armas – Maria Quitéria no Brasil, Manuela Pedraza na Argentina ou Juana Arzuduy nos Andes, por exemplo – foram apresentadas ao lado daquelas que trabalharam nos campos de batalha e de outras que cumpriram tarefas de espionagem. Para além desses comprometimentos voluntários das mulheres, Prado indica que, na América Latina, seus contemporâneos homens reconheciam a necessidade tanto de assegurar a lealdade feminina aos novos governos, quanto de definir a natureza do patriotismo feminino dentro de uma moldura de domesticidade. Assim, o Semanário Patriótico Americano (México, 1812) identificou a influência das mulheres sobre "os corações americanos" para os "fortalecer e fazer que os filhos do México se decidissem a pegar em armas contra o déspota europeu..." (p.45) A domesticação da participação das mulheres continuou, Prado explica em seguida, depois das guerras de independência, quando as historiografias nacionalistas foram construídas. Embora as novas histórias nacionais reconhecessem os papéis das mulheres nas lutas militares e políticas, no que pode ser chamado de "romance de família" da independência, a violência feminina, a rebelião e o não conformismo transformaram-se em paixão, fidelidade, lágrimas e leite jorrando dos seios. Os esforços no século XIX para disciplinar o comportamento das mulheres estavam repletos de ambigüidades. Como Prado analisa em um ensaio sobre novelas publicadas pela Impressão Régia, no Rio de Janeiro, em 1810, e destinadas para um limitado ainda que crescente número de leitoras mulheres, contos sobre frágeis heroínas, assombradas pelo impulso do pecado e suas fatais conseqüências, não se prestaram para "despertar o amor à pátria ou a defesa de certos padrões civilizatórios". (p.143) Para a autora, foram necessárias várias décadas para que as conexões entre educação feminina e patriotismo fossem abraçadas publicamente.

Dentro da moldura metodológica e teórica da história política, América Latina no Século XIX também se debruça sobre questões do nacionalismo, da identidade nacional e das propostas liberais que serviram a projetos de construção da nação. Em vários de seus ensaios, os desafios de Prado aos paradigmas nacionais estão implícitos. Historicizando a nação, contesta a moldura nacional muitas vezes apresentada como natural. A autora, ao fazer comparações entre as visões de independência propugnadas pelo cientista colombiano, Francisco José de Caldas e pelo padre mexicano, Miguel Hidalgo, ou entre a compreensão de soberania popular estruturada pelo mexicano Mora e pelo argentino Echeverría, indica o chão comum histórico que permite serem as comparações tão enriquecedoras. Ainda que a maioria dos homens cujos textos Prado analisa tenham escrito com a mente voltada para os destinos de seus governos nacionais, compartilhavam a mesma procura para definir o significado do liberalismo no Novo Mundo. Mesmo que Mora e Echeverría respondessem "às questões políticas colocadas em pauta pela situação histórica de seus países", devem ser vistos como parte de um momento liberal "transatlântico". "A defesa da limitação dos direitos políticos", escreve Prado, "passa por uma perspectiva ilustrada e elitista própria dos liberais do século XIX, tanto na América Latina, quanto na Europa". (p.89)

Ao longo dessas comparações históricas, Prado oferece reflexões adicionais sobre as relações entre "América Latina" e "Brasil", "dois pólos que se atraem e se repelem". Confrontado o Brasil com o ambíguo status de ao mesmo tempo ser e não ser América Latina, Prado propõe "circunatlânticas", mais do que "transatlânticas" justaposições: "olhar o Brasil ao lado dos países de colonização espanhola". Como já notei acima, os ensaios de Prado integram as histórias do Brasil e da América Espanhola. O "olhar do Brasil" também emoldura um ensaio sobre o livro Facundo: Civilização e Barbárie, do argentino Domingo Faustino Sarmiento, que buscava intensamente soluções para o conflito entre o campo selvagem e a cidade de Buenos Aires, bastião da liberdade e da civilização. As dicotomias de Sarmiento, seu privilegiamento da geografia e, sobretudo, suas dúvidas e ambivalências o aproximam dos leitores de Os Sertões de Euclides da Cunha. Como Prado afirma, entretanto, diferente de Sarmiento, Euclides da Cunha testemunhou de perto o violento encontro entre "civilização" e a comunidade de Canudos, assim como a capacidade dos "civilizados" de agir de modo bárbaro. Como resultado, seu relato mais pessimista põe em dúvida as possibilidades de uma identidade nacional até um ponto jamais sonhado por Sarmiento.

As comparações e justaposições de Prado revelam as complexidades, diálogos e divergências de políticas e de culturas políticas no século XIX latino-americano; mas seu último ensaio sugere a possibilidade de trabalhar com uma moldura mais ampla para a história "americana". Explorando as conexões entre natureza e identidade nacional na Argentina e nos Estados Unidos, a autora pensa que a visão norteamericana de "wilderness" e da fronteira como lugar da virtude e da força positiva e progressista foi construída com a utilização de uma série de suportes: as pinturas da Escola do Rio Hudson, a poesia e a historiografia. Na Argentina, por contraste,os estereótipos sobre a inferioridade natural da América formulada pelos discursos políticos e científicos europeus foram reformulados, ao invés de serem rejeitados, como por exemplo, nas preocupações de Sarmiento sobre as ameaças da barbárie à civilização do Novo Mundo. Sarmiento e Frederick Jackson Turner, o historiador da fronteira dos Estados Unidos, confrontaram ambos a "wilderness" e a natureza solitária da vida nas planícies, que eles imaginavam como "terras vazias", apagando a violenta expulsão dos povos indígenas que lá viviam. Entretanto, a visão otimista de Turner não corresponde à pessimista de Sarmiento, para quem a Argentina estava marcada pela "ausência da res publica e da transformação do gaúcho em bárbaro". Ainda que comparações entre os Estados Unidos e a América Latina não sejam novas, o ensaio de Prado abre perspectivas para se pensar imaginários políticos e sociais, nas Américas do século XIX, mais complexos e transnacionais do que a maioria dos campos definidos que a história acadêmica propõe.

Como um todo, os ensaios de América Latina no Século XIX refletem sobre o século XIX não para medir mudanças ou persistências, mas para explorar a crise de representações que surgiu ao fim do domínio ibérico e buscar definir a nação e sua política em palavras e ações. Enfim, Prado adverte: "Se buscarmos explicações a partir de conceituações genéricas, como a dependência ou herança colonial, estaremos presos a um esquema preconcebido que nos dará a priori as respostas que buscamos". (p. 91).

1 Ver, por exemplo, Jeremy Adelman, "Introduction: The problem of persistence in Latin American History" in Adelman (ed.) – Colonial Legacies: The problem of persistence in Latin America, New York, Routledge, 1999.

Revista de História - USP

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