domingo, 20 de junho de 2010

Alucinações Musicais. Relatos Sobre a Música e o Cérebro


Maurício Monteiro
Dr. em História, professor da Universidade Anhembi-Morumbi

SACKS, Oliver. Alucinações Musicais. Relatos Sobre a Música e o Cérebro.

O livro de Oliver Sacks é de uma proposição honesta – ele já avisa que são relatos de alucinações musicais – mesmo que o leitor se debata com as exaustivas descrições dos casos neurológicos ou com os termos técnicos. É provável também que imagine não ser nem para músicos (pois trata também da música), nem para leigos. Talvez, no decurso da leitura, ache até entediante e desista de seguir em frente, mas é preciso prosseguir e ir com os olhos e os ouvidos bem abertos. Sacks é um neurologista britânico que leva suas pesquisas e atividades por vários caminhos, dentre eles, o das relações entre música e cérebro. Sacks aborda vários assuntos, mas este que trata da música e de suas interferências no cérebro, não poderia ir por outro caminho, a não ser aquele que mapeia as reações e as transações neurológicas dos ouvintes e intérpretes frente à música. É um assunto demasiado instigante e que pode, em um determinado momento, responder dúvidas seculares sobre o comportamento humano frente aos sons, organizados ou desorganizados nas sociedades. O autor é honesto e avisa que seu livro trata de relatos de alguns de seus pacientes ou mesmo de pacientes de outros neurologistas. São mais de 100 relatos que mostram como a música afeta o nosso cérebro, de maneira saudável ou mesmo doentia, ao acusar sérios danos em atividades mentais e motoras. A proposta é exatamente mapear, com o maior grau de cientificidade possível, as ocorrências desses eventos e as suas conseqüências nos indivíduos que passam por esse processo. A música sempre foi um território atrativo e ao mesmo tempo de difícil compreensão; não causa nenhuma sensação, ela sugere e pode ainda servir como recurso histórico, isto é, como um amplificador fiel de lembranças e de conteúdo ideológico.

Pensando nisso é importante atentar para os relatos apresentados. Eles têm tanto do material puramente estrutural da música, quanto das apreensões sonoras e de suas interferências físicas no cérebro. Pode-se, aí, pensar na música como um dispositivo agregador em termos de uma coletividade de ouvintes e como um aparelho basicamente individual quando se trata da memória e da história. Quem nunca teve, por exemplo, lembranças ou insights musicais que nos transportam para um determinado tempo e espaço? Podemos nos lembrar de uma música instantaneamente e recobrar nossa memória, localizando-nos em um determinado momento de nossa vida, recordando o lugar exato onde estivemos, as ações que fazíamos e, em um grau mais extremo ou mais desenvolvido, lembramo-nos até mesmo das roupas que vestíamos. Pensamos: já estive por aqui. Isso acontece pelas propriedades que Oliver Sacks descreve em seu livro: essas "Alucinações Musicais" podem nos levar a determinados estados de ânimo e êxtase. Logo no início de seus relatos, surge uma descrição bastante pontuada para esse momento; cita um estudo de outro neurologista, Macdonald Critchley, que observava ataques epiléticos em pacientes induzidos por música. Após um desses ataques, um dos pacientes afirmava que ter passado por tudo isso era como se estivesse vivendo uma cena. "Eplepsia musicogênica", seria esse o nome para as observações de Critchley em seus pacientes. Os casos são extensos e ocupam toda a abordagem de Oliver Sacks.

São vários também os nomes científicos e técnicos descritos no decorrer das observações e dos estudos e isso, para aquele leitor que desconhece os jargões especializados das neurociências, da biologia ou mesmo da musicologia, pode soar como extenuante. Diplopia mental, amusia, amusia coclear, desarmonia, distimbria, estereoscopia, estereofonia, savants musicais, sinestesia, afasia, musicoterapia, discinesia, melodia cinética, brainworms, earworms – isso sem falar das síndromes, como as de korsakoff, tourrete e williams –, são alguns dos termos introduzidos nesses relatos neuro-musicais. Entretanto, para uma abordagem neurológica, não poderiam ser outros. É muito provável que os termos earworms e brainworms, respectivamente 'vermes do ouvido' e 'vermes do cérebro', sejam quase que definidores de todas essas acusações musicais, dos benefícios e dos malefícios que a música pode causar no ouvinte. Mas essa gramática toda tem outro significado, que seria o de esclarecer parte da problemática em torno da música e da escuta, a partir do ponto de vista das neurociências; ou mesmo para tentar esclarecer as nossas dúvidas sobre o que sentimos quando ouvimos música ou quando ela se apropria de nossas sensações. Essa gramática especializada tem remédio, ou melhor, medicações, que podem ser o valium, a gabapentina, a quetiapina e a prednisona. Outros tipos de medicações, afirma o neurologista, como a aspirina e o quinino, "podem causar alucinações musicais transitórias".

O que se pode deduzir nos estudos de Oliver Sacks é que se deve observar não a música, como querer combatê-la, mas sim o lugar onde ela age, o cérebro. Deve-se, portanto, medicar os casos extremos como patologia ou doença adquirida devido às exposições sonoras, mas só os casos em que a música pode alterar fisicamente as funções cerebrais. Nos outros casos, deve-se olhar para a história e para a cultura de cada um. Afinal, a música pode ter um efeito predominantemente positivo porque, segundo o psiquiatra Anthony Storr, ela "alivia o tédio, torna (...) os movimentos mais rítmicos e reduz a fadiga". Na maioria das vezes a música tem efeitos benéficos mesmo quando extraída da memória musical ou da imagem musical. Em praticamente todos os relatos de Oliver Sacks os entrecruzamento entre história, memória e música aparecem – mesmo que sub-reptícios – como uma equação diretamente ligada ao cérebro, à consciência e ao estado de ânimo. Seria pertinente pensar, contudo, em domínios isolados entre a música e o cérebro, e entre a história e a memória musical como um elo.

A primeira complexidade da música é a sua definição: o que é, para que serve, tudo é música? Antes de se tornar uns brainworms e sugerir a amusia, ou outra disfunção no estado de consciência e ânimo, é preciso entender a música em si e por si mesma. Desconheço informação mais abrangente e menos reducionista, a exemplo de tantas outras tentativas, do que aquela formulada e proposta por Carl Dahlhaus, pelo menos para o que diz respeito a todas essas "Alucinações Musicais". Em um primeiro momento, trabalha-se com os conceitos metafísicos de força, energia, tempo e espaço. Dahlhaus relaciona a poesia à força, a obra plástica ao espaço e a música à energia e todas operam, de uma forma ou outra, no espaço. Considerar a música como uma arte que atua pela energia é como considerar seus efeitos sobre o ouvinte, sejam eles de êxtase, de memória, de história ou interferentes no cérebro, em escala já apontada pelos estudos neurológicos e que lemos em Oliver Sacks. A complexidade dos efeitos da música é extensa e se inicia na sua própria natureza. A música em princípio é evanescente, transitória; passa e não resiste à reflexão. Esse seria seu fim em si mesmo. Mas a música tem ainda outro aspecto, mais complexo e mais interessante: ela pode ser retida na memória, pode invocar aspectos espaciais, temporais e cronológicos. E é nesse sentido que ela passa ao domínio do cérebro, como uma energia armazenada, onde começam os efeitos e as tais alucinações.

Outro fator importante – histórico e de linguagem – diz respeito às transformações pelas quais o sistema musical do Ocidente passa através dos tempos, isto é, o modalismo, o tonalismo e os atonalismos. Da formulação da gramática, da racionalização dela, até a sua negação, a música pode sugerir sensações diferentes ao ouvinte. O canto em uníssono e a quase ausência de harmonia das músicas medievais, baseadas nos modos gregos ou eclesiásticos, tendem a sugerir sensações de êxtase, pela sua repetitividade ou circularidade, basicamente melódica. A música tonal, por sua vez, criou uma gramática que trabalha com a expectativa, com a tensividade e a sua solução; é basicamente harmônica e procura desenvolver esse edifício a partir de regras, de ordens estabelecidas através de quase quatro séculos. A música do século XX, com o timbre como predominante, nega todas essas regras e tende a ser mais perturbadora, no sentido da escuta e das relações auditivas que as sociedades ocidentais ainda mantêm. Esse é o ponto crucial. Oliver Sacks chega a discutir com seus pacientes que tipo de música se ouvia como brainworms e o que ela causava, que tipo de incômodo ou preferência o paciente sofria ou desejava. Um dos pacientes dizia que ouvia internamente uma música 'tonal' e 'melosa' e que aquilo não era o esperado e muito menos o desejado, uma vez que ele tivera mais contato com a música atonal. Depois, passou a ouvir, da mesma forma, uma sinfonia de Tchaikovsky, descrita como 'barulhenta', 'exaltada' e 'rapsódica'.

O material musical que temos como referencial é o de nossa própria cultura, ou seja, são os sons que ouvimos ou escutamos durante nossos momentos de existência, desde a infância até a velhice. As nossas lembranças mentais não poderiam vir de outro lugar. Há outra observação importante: quando estamos frente a um evento musical, dedicamos a ele, de acordo com nossos interesses ou práticas culturais, uma maior ou menor atenção. Em outras palavras, mostramos interesses diversos pelos fatos musicais, podemos ouvir ou escutar. É isso mesmo: ouvir e escutar podem ser ações diferentes. Roland Barthes propõe que ouvir é um ato fisiológico; ouve bem quem tem em pleno funcionamento os mecanismos físicos e fisiológicos da audição e da acústica. Escutar pressupõe decodificar determinados códigos sonoros e, mais ainda, a escuta defini-se pelo objeto e a sua intenção. Torna-se comum que frases musicais, elaboradas com menos grau de complexidade sonora, fiquem a martelar ou a martirizar nosso cérebro; é o que acontece, como já apontou Oliver Sacks, com determinados jingles, por exemplo. Os relatos apresentados no livro "Alucinações Musicais" dizem respeito basicamente a esse tipo de música, muito raramente a uma obra estruturalmente mais complexa, o que pode nos indicar que melodias tonais de certa simplicidade se acomodam com mais facilidade no cérebro. As pessoas que protagonizam esses eventos afirmam que já ouviram a melodia que os incomoda em algum momento de suas vidas.

Entretanto a complexidade da música e de suas ações neurológicas continua. O autor relata ainda casos de pacientes que se sentem incomodados com timbres, ritmos e com a harmonia musical. Nesse sentido propõe-se o conhecimento de vários tipos de amusia, que seria a perda total ou o descontrole sobre os efeitos musicais. No caso do ritmo é lembrado o caso de Che Guevara que dançava mambo quando ouvia um tango (discinesia); no caso da harmonia, fala-se de pessoas que não conseguem distinguir tons; no caso dos timbres, Oliver Sacks relata os casos onde a repulsa por determinados instrumentos musicais é evidente. Ele mesmo diz ter passado por isso em um momento em que as notas de um piano soaram com "uma desagradável reverberação metálica, como se a balada estivesse sendo tocada com martelo numa folha de metal". Outro paciente relata que se sentia flagelado e entediado quando ouvia timbres de instrumentos de sopro. Isso, propõe Oliver Sacks, poderia se chamar distimbria.

Questão também importante e que diz respeito ao nosso tempo é abordada no livro: teremos um jukebox intracraniano ou um iPod na cabeça? Com o advento das tecnologias, desde o rádio, passando pelo jukebox até as maravilhas minúsculas que podem armazenar horas de música, portanto portáteis, nossos ouvidos ficaram mais suscetíveis a essa avalanche de sons. Ouvimos por toda parte com um cardápio diverso. Esse bombardeio de sons que os séculos XX e XXI proporcionam expõe nosso cérebro a uma infinidade de estilos musicais, de frases melódicas, de ritmos completamente deslocados no tempo, que uma música pode vir a se tornar uns brainworms. Obviamente que essa proliferação e reprodução de sons, dentro do processo da indústria cultural, pode ser mais nociva ou irritante para aquelas pessoas que têm o chamado ouvido absoluto. Um ex-professor de música em Oxford dizia que o papa assuava o nariz em sol e que o vento arfava em ré. A maioria dessas pessoas, quando escutam uma música tocada em tons diferentes ou mesmo com uma variação mínima na sua afinação, fica irritada, perturbada e mesmo agitada. Mas os casos do ouvido absoluto são mais extensos. Em contrapartida aponta-nos ainda um caso de uma família de músicos cujas filhas gêmeas – portanto com os mesmos "genes" musicais – têm "aparelhagens" físicas e relações com a música diferentes. Uma tem ouvido absoluto é péssima instrumentista e quase indiferente à música. A outra, mais "sensível", é boa intérprete.

Um dos relatos mais interessantes e mais extensos, com comparativos semelhantes, diz respeito a um paciente com amnésia que não se recordava de absolutamente nada. Clive Wearing sofria de amnésia crônica resultante de uma encefalite herpética. Não se lembrava de nada, sua vida era o momento em que respirava, e respirava o momento todo sem saber. Era capaz de cumprimentar as pessoas que estavam consigo seguidas vezes e não conseguia descrevê-las fisicamente se não estivessem ao seu lado. Amnésia retrógrada, afirma Oliver Sacks, que fazia com que todo o passado, o mais próximo e o mais remoto, fossem apagados instantaneamente de sua memória. Mas os sons podiam recuperar, pelo menos no campo das habilidades musicais, um aprendizado que só se tem na memória, como tocar um instrumento ou mesmo cantarolar uma melodia. Clive era capaz de fazer música dentro do espaço da música, isto é, de tocar uma linha enquanto ela estivesse ali; quando terminava, caía no que sua esposa chamou de "uma minúscula plataforma sobre o abismo". Somente a música trazia para o paciente uma recuperação da memória e mais instantes de vida.

Esse fato como tantos outros relatados coloca a música e o cérebro em concordância de complexidade e ainda mais, em uma íntima relação de significados e significantes. O cérebro significa tanto para a compreensão da música, como a música fosse talvez o maior significante para o cérebro. Escutar ou ouvir música é a ação humana que mais utiliza os campos neurais; através da audição e da escuta, o organismo é capaz de requerer e movimentar uma série de intrincadas redes nervosas, a maior delas nos eventos humanos. O processo já se inicia na captura dos sons, em transformações tão diferenciadas que seria como a alquimia medieval de transformar carvão em diamantes. Primeiramente, vamos à fonte desse som: ele possui um mecanismo de excitação que supre a energia, um elemento vibrante que lhe dá as características e um ressonador que o amplifica. O meio de propagação é importante e estabelece fronteiras para reflexão e absorção. O receptor aciona a complexa transformação: o tímpano converte as ondas sonoras, a energia, em oscilações mecânicas; em seguida, o ouvido interno faz uma separação primária das freqüências e as converte em impulsos nervosos; depois, já no sistema nervoso, acontece o processamento, a identificação, o armazenamento e a transferência para outras partes do cérebro, os lóbulos, onde as alucinações musicais podem brotar.

Revista de História - USP

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