sexta-feira, 28 de maio de 2010

Os anjos de Canudos - Uma revisão histórica


Sérgio da Mata
Mestre em História pela UFMG FEMM - Sete Lagoas (MG)

HOORNAERT, Eduardo. Os anjos de Canudos. Uma revisão histórica. Petrópolis, Vozes, 1997. 148pp.

Até bem pouco tempo os historiadores tinham deixado a cargo de sociólogos e antropólogos a tarefa de pensar o milenarismo. Só recentemente, trabalhos de Robert Levine, Jean Delumeau, Ronaldo Vainfas e vários outros têm revertido essa situação. Os anjos de Canudos, último livro de Eduardo Hoornaert, insere-se neste contexto de revalorização, no âmbito da historiografia, do estudo daquilo que Lanternari chama "expressões heterodoxas da religiosidade popular".

Nascido por ocasião de um colóquio realizado na Universidade de Colônia em 1997, o livro de Hoornaert é inovador (e provocador) sob múltiplos pontos de vista. Tentarei dar conta das suas proposições mais instigantes, embora às vezes discorde delas ou as utilize como ponto de partida para reflexões próprias.

Autor de uma extensa e importante obra sobre a Igreja brasileira e latino-americana, o autor de Formação do catolicismo brasileiro não tem por objetivo esmiuçar Canudos e sua trajetória, mas antes apreciála a partir de uma outra ótica - a dos excluídos. "Este pequeno ensaio tenta apresentar a conhecida história nas categorias usadas pelos sertanejos que dela participaram" (p. 10). Sua fonte principal será o livro O rei dos jagunços, publicado em 1899 pelo jornalista Manuel Felício. Correspondente do Jornal do Commercio, Felício foi posteriormente afastado da cobertura da guerra pelo Exército, de vez que demonstrava uma sensibilidade bem mais acurada em relação ao universo mental popular nordestino que a de Euclides da Cunha n'Os Sertões. É dessa etnografia alternativa de Canudos que se utiliza Hoornaert em seu ensaio.

A trajetória do Conselheiro, o cotidiano do arraial e dos desclassificados que engrossam suas fileiras emergem das belas páginas de Os anjos de Canudos não como excêntrico fruto de uma suposta 'desinformação'. Tradições cristãs antiqüíssimas, exclusão social, síntese de religião popular e oficial, tudo isso ajuda a explicar Canudos. Hoornaert rejeita uma certa análise de filiação weberiana, demasiado centrada na figura do líder carismático, para mostrar em que medida a religião popular nordestina (que ele tipifica como "catolicismo rústico") foi negligenciada pelos estudiosos enquanto substrato do fenômeno. Um dos maiores méritos do seu livro, ao meu ver, foi ter demonstrado que esse catolicismo rústico, mesmo na sua expressão milenarista, nada tem de mortificante ou de excessivamente penitencial. A imagem passada em filmes como Deus e o Diabo na Terra do Sol ou Canudos, neste sentido, tem pouco a ver com a realidade.

O que ocorre ali é algo diferente. Ao lado das extensas ladainhas, da igreja, dos sacramentos trazidos por sacerdotes que vêm de fora, dos inflamados sermões do Conselheiro, o que reina é a festa: "Como em muitos lugares, a música 'profana' anima as noites canudenses, apesar das beatas insistências" (p. 36). A lição é simples. Se há boa dose de verdade na afirmação de Julio Caro Baroja (Las formas complejas de la vida religiosa, Círculo de Lectores, 1995, vol. I, p. 200) de que "la religión y la filosofía cristianas son, siempre, moderadoras de la alegría", há que se reconhecer que esta fórmula tem grande dificuldade de se adequar - ou impor - ao universo religioso popular.

Uma melhor percepção da dimensão festiva de Canudos, atestada pelo autor, permitiria abordagens interessantes do milenarismo brasileiro, onde sobressaem duas "constantes" que, penso, ainda não tinham sido exploradas como deveriam: o revelador binômio guerra (violência) & festa por um lado, e, por outro, a instituição sagrada do espaço social. Hoornaert demonstrou estar atento para as duas possibilidades. Não por acaso, a segunda parte de seu livro intitula-se A construção do espaço sagrado, enquanto que o primeiro dos seus "mini-ensaios" vale-se da chamada 'antropologia gerativa' de René Girard para explicar a violência sacrificial que se abateu sobre o arraial.

São justamente os "mini-ensaios", que perfazem metade do livro, a parte da obra que me pareceu mais instigante. O primeiro deles, como dissemos acima, parte dos conceitos elaborados por Girard. A 'modernidade' e a unidade republicana exigiam, diz o autor, a eliminação sacrificial de Antônio Conselheiro e seus seguidores. Realmente: a luta contra os 'fanáticos' está imbuída de sacralidade e é, portanto, profundamente religiosa. Para Hoornaert, Euclides da Cunha exerce assim um papel fundamental - o de legitimar o sacrifício: "Os sertões é um livro articulado em torno da construção da civilização através da violência e da destruição" (p. 82). A via oposta, ainda que não examinada no ensaio, poderia ser avaliada pela mesma ótica pois a solidariedade dos moradores do arraial, iniciados os conflitos, exigiu o seu sacrifício tanto quanto o do inimigo.

Inversão e/ou suspensão temporária de parte das normas sociais, êxtase coletivo, retorno mítico à indiferenciação do Urzeit, desejo sagrado de destruição - não seriam características comuns à guerra e à festa? De fato, Caillois (O homem e o sagrado, Edições 70, 1988, p. 168) vê na guerra "a réplica moderna e sombria da festa", e não deixa de ser interessante verificarmos o paralelismo e, mais que isso, a complementaridade dos dois fenômenos sociais no sertão baiano de 1897.

O próximo ensaio versa sobre a importância da obra de José Calazans, precursor na utilização da tradição oral no estudo da história de Canudos. Hoornaert insiste na importância da abordagem feita à maneira de Calazans, na medida em que recuperaria de dentro a lógica da mentalidade camponesa. É nítido o parentesco desta abordagem com o viés epistemológico do grupo de historiadores da CEHILA (Comissão de Estudos de História da Igreja na América Latina), do qual Hoornaert é uma das figuras principais: o desafio de se escrever uma história eclesiástica "a partir do pobre".

É neste momento que, segundo me parece, Hoornaert assume posições que caberia problematizar um pouco mais extensamente. Não fica claro o estatuto da teoria na sua visão da disciplina histórica. Num primeiro momento o que transparece, curiosamente, é uma certa desconfiança em relação às iniciativas dos cientistas sociais em analisar manifestações particulares de messianismo e milenarismo num marco teórico pré-estabelecido. O elogio a Calazans (parte sempre de "fatos comprovados" e, assim, "inaugura uma postura propriamente historiográfica") se faz em contraposição à perspectiva de uma Maria Isaura Pereira de Queiroz (cuja teoria do messianismo "não consegue convencer"). Ao leitor fica a impressão de que a teoria tenderia a afastar o historiador do 'efetivamente vivido'. É o próprio Hoornaert, aliás, quem o diz: "toda e qualquer teoria social só é válida na medida em que corresponde ao efetivamente vivido e consegue explicar sem recorrer a postulados" (p. 105, grifo meu).

Torna-se difícil conceber o exercício da historiografia contemporânea sem auxílio de um marco teórico qualquer e, mais ainda, a possibilidade de existência de uma teoria tal como a entende Hoornaert. Basta citar o exemplo de alguns historiadores franceses que escreveram trabalhos clássicos nas suas respectivas especialidades, como o helenista Louis Gernet, o sinólogo Marcel Granet e o medievalista Marc Bloch, e que partiram, grosso modo, do arcabouço durkheimiano. O mesmo ocorreu na Alemanha, em relação à obra de Weber.

A posição de Hoornaert é compreensível, ao menos em parte. Ele se levanta contra alguns simplismos que ainda persistem na historiografia religiosa brasileira, mesmo naquela dita das mentalidades. Há um furor secularista em diversos autores (mais evidente em alguns), o qual não raro distorce a visão que se tem da religião do povo. Para esta, sobram epítetos como "fanática", "acrítica", "delirante", "bizarra". Em que esta historiografia foi além de Euclides da Cunha, é algo que caberia perguntar. Falta-lhe sem dúvida um exercício de exploração psicológica, ou de proximidade com seu objeto, o que lhe permitiria superar esses etnocentrismos que o leitor atento tão facilmente percebe.

Todavia, imaginar que a construção de modelos só possa se legitimar na medida em que vier a se constituir num retrato fiel do prévio levantamento empírico, já é verter o bebê junto com a água do banho. Os bons antropólogos, que em geral não podem ser acusados de estarem desatentos às "categorias nativas", são explícitos a respeito. Ouçamos um deles: "Se a etnologia não é 'a ciência social do ponto de vista do observador', como diz Lévi-Strauss, ela também não é ciência social do ponto de vista do observado". Os modelos são, pois, "construções teóricas de caráter operatório (...) e que não podem, portanto, substituir a realidade empírica, uma vez que têm por objetivo precisamente pensar esta última e, em particular, pôr em evidência o que ela não diz" (F. LAPLANTINE, Antropologia da doença, Martins Fontes, 1991, p. 34; grifos meus). O historiador que se esforça em superar o etnocentrismo e conhecer de dentro a experiência religiosa popular, como propõe Hoornaert, certamente faz um avanço importantíssimo - mas, ainda assim, corre o risco de ficar na metade do caminho. Possivelmente por esta razão o autor de Os anjos de Canudos não consegue evitar algumas generalizações, como a de que os messianismos "são simples expressões do desejo dos agricultores e pobres de possuir um pedaço de terra" (p. 63).

Uma crítica oportuna de Hoornaert foi a que ele endereçou aos historiadores e cientistas sociais brasileiros por ignorarem a contribuição da Ciência da Religião e da História da Religião alemãs. Em parte, pela distância imposta pela língua, em parte pela dependência que assumimos em relação ao campo intelectual francês, esse afastamento tem se mantido. Por conta de um ou outro bairrismo herdado, obras brilhantes como a de Troeltsch, permanecem desconhecidas mesmo quando aclamadas por autores como Pierre Bourdieu, Émile Poulat e Jean Séguy. Falta ecumenismo entre as diversas ciências da religião.

O penúltimo "mini-ensaio" fala do "Antônio Conselheiro escritor" e evidencia como, ao contrário do que tantas vezes se imagina, os escritos por ele deixados "apresentavam uma doutrina católica perfeitamente ortodoxa" (p. 114), algo que já fora observado por outros pesquisadores. O Deus do Conselheiro é o Deus neotestamentário: Ele "fala docemente", comenta Hoornaert.

"O cristianismo beato" é o último ensaio do volume, e nele são tecidas considerações em torno dos estudos que Duglas T. Monteiro, Alexandre Otten e Marco Antônio Villa dedicaram ao tema do messianismo brasileiro. Segue-se uma rápida contraposição das duas escolas que pretenderam, a partir do século XIX, explicar a religião: a crítica/sociológica e a fenomenológica. Uma referência ligeira a Durkheim permite ao autor taxá-lo de "redutivo" (p. 127) por supostamente comungar das posições de Lévy-Bruhl a respeito do "pensamento primitivo", o que, obviamente, não faz jus à visão durkheimiana (vide o final do capítulo "A origem das crenças totêmicas", n'As Formas elementares da vida religiosa).

Hoornaert toma o partido da escola fenomenológica iniciada por Rudolf Otto (O sagrado, Imprensa Metodista, 1985), considerando-a "mais consistente". Trata-se de uma opção legítima do autor, uma vez que não são compatíveis os pressupostos da religionswissenschaftliche Schule com os das ciências sociais. Para a primeira o sagrado é uma categoria a priori, os fenômenos religiosos devem ser analisados na sua lógica interna, e não a partir de uma outra que lhes determinaria 'de fora' (desde que se tome este 'fora', é claro, por "social" e/ou "psíquico"). Esta tomada de posição obviamente se coaduna com sua proposta de entender o catolicismo rústico nos seus próprios termos. Mas se não há como saber se a verdade da fenomenologia é "mais consistente" que a verdade antropocêntrica das ciências sociais, qualquer consideração no sentido de sobrepor uma à outra inevitavelmente reduz as possibilidades de estreitar o diálogo entre estas duas tradições. Hierarquizar, aqui, implica necessariamente excluir.

Entretanto, a opção de Hoonaert por este viés (que não nos cabe discutir uma vez que "os deuses da sociologia", como diz Wolfgang Schluchter, são outros), não o impede de buscar em Troeltsch uma última chave (teórica!) para a compreensão do seu objeto. Baseando-se na clássica tipologia desenvolvida ao longo das Soziallehren, o autor sustenta que em Canudos teriam coexistido as três manifestações históricas do "ideal" cristão: Igreja, seita e misticismo (p. 131). Ora, a experiência mística pode sem dúvida conviver com o tipo Igreja ou mesmo com o tipo seita, mas não parece ser o caso do par Igreja/seita. Como escreve Troeltsch (The social teaching of the christian churches, vol. I, p. 342), enquanto a Igreja "dominates the world and is therefore also dominated by the world", a seita representa uma negação do mundo e uma radicalização da adesão à "idéia original" do Evangelho. A seita surge historicamente em oposição à Igreja, na medida em que a vê como uma degeneração do ideal cristão. Portanto, o "ecumenismo" que Hoornaert sugere existir entre Igreja, seita e misticismo em Canudos é uma hipótese de difícil sustentação. E é sobre tal improbabilidade que ele esboça não o seu diagnóstico final, mas seu programa: "um cristianismo bem vivido comporta um 'mínimo de Igreja' e um máximo de mística e sectarismo" (p. 133). Detemo-nos por aqui, porque neste momento não é mais o Hoornaert historiador quem escreve, mas o homem de fé.

Que não se tomem nossas discordâncias por algo além do que elas de fato são: uma tentativa de aprofundar, em diálogo com o autor, nossa compreensão de um dos acontecimentos mais marcantes da história brasileira. N'Os anjos de Canudos sobressaem contribuições de suma importância: nas suas páginas, onde quase se sente o fresco e alegre ar de Canudos, superam-se os limites do modelo weberiano e dá-se ao catolicismo rústico um estatuto teórico próprio. O texto alia concisão, beleza formal e extrema sensibilidade psicológica. Nem mesmo alguns ligeiros descuidos a nível editorial prejudicam a agradável leitura d'Os anjos. Há que felicitar o autor por contribuir na divulgação da obra de Troeltsch entre os historiadores brasileiros, e, finalmente, por dar passos decisivos rumo a uma abordagem religionswissenschaftliche da religião popular nordestina. Se o paradigma desta escola pode parecer pouco atraente àqueles que partem do referencial antropocêntrico das ciências sociais, não se pode deixar de reconhecer, em nome do bom senso, que ela terá ido mais longe na compreensão do fenômeno religioso que inúmeros membros da comunidade historiográfica ainda dominados pelos simplismos secularistas.

Revista de História - USP

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