Kátia Silva Araújo
Aluna do mestrado em Filosofia, na linha de pesquisa em Estética e Filosofia da Arte, do Departamento de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais. araujokatia@yahoo.com.br
Aluna do mestrado em Filosofia, na linha de pesquisa em Estética e Filosofia da Arte, do Departamento de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais. araujokatia@yahoo.com.br
Gonçalves, Márcia Cristina Ferreira
O Belo e o Destino — Uma introdução à Filosofia
de Hegel. São Paulo: Edições Loyola, 2001.
Além de ser uma abrangente introdução sobre os Cursos de Estética de Hegel, o livro de Márcia Gonçalves também faz uma abordagem geral sobre a filosofia hegeliana. Nesta obra, a autora apresenta os aspectos próprios da filosofia da arte em Hegel, e ainda, para um perfeito entendimento das problemáticas por ela levantadas, Gonçalves também perpassa por fundamentos éticos e políticos, fundamentais no percurso da Estética de Hegel em seu delineamento histórico. Inicialmente este arcabouço histórico, no sistema hegeliano, tem como denominação a expressão "espírito de um povo", também essencial para o entendimento histórico da Estética hegeliana. Há ainda a explicação e a exposição de inúmeros conceitos hegelianos que, por sua vez, esclarecem a leitura desse livro e concomitantemente das obras de Hegel. O prefácio à edição brasileira imediatamente cumpre seu papel de apresentar o livro para os leitores interessados, mas diante da necessidade que existe em recomendarmos obras de qualidade a diversos leitores e amantes da filosofia, tentarei aqui mostrar o que é, além de um trabalho de qualidade, também um livro que nos expõe um Hegel menos complicado que o imaginado.
O livro de Márcia Gonçalves é, na verdade, sua tese de doutorado, originalmente redigida em alemão, defendida em dezembro de 1996 na Freien Universität Berlin. Apesar do caráter de tese de doutorado, o livro cultiva um aspecto didático que favorece a compreensão para o leitor que ainda iniciará seus estudos hegelianos e, ao mesmo tempo, contribui para a pesquisa da Estética de Hegel por parte dos já iniciados, conduzindo todos por caminhos fantasiosos.
O tema central é a evolução do conceito de belo na Estética de Hegel, do ponto de vista da filosofia da arte como fenômeno histórico. Para evidenciar esse tema central, Márcia Gonçalves dedica-se nas ramificações de seu trabalho à descrição dos principais conceitos hegelianos, como as figuras da espiritualidade e da idealidade manifestas por meio da arte. Além destes principais conceitos hegelianos, a autora utiliza o conceito de páthos, para esclarecer o tema do destino da arte, e o faz de acordo com a tripartida divisão histórica apresentada por Hegel em seu sistema das formas de arte: simbólica, clássica e romântica. Há que se ressaltar que a autora direciona seu trabalho principalmente à análise da poesia, mais especificamente às análises da mitologia e das tragédias gregas.
O sistema do espírito absoluto em Hegel obedece a uma hierarquia composta pelas figuras da arte, da religião e da filosofia, respectivamente. Nesse sentido, poderíamos considerar a inferioridade da arte em relação às duas outras figuras do ponto de vista do conteúdo de cada uma delas, ainda que as três esferas do Espírito Absoluto sejam pensadas como automediação da Idéia. Esta é a totalidade e determina-se ao longo de um processo que, enquanto exterioridade sensível, apreendida pela intuição, determina o momento da arte; enquanto interioridade, apreendida pela representação, determina o momento da religião (que ainda não é a forma mais acabada da interioridade); e, enquanto conceito, apreendido pelo pensamento, determina o momento da filosofia, que é a união da objetividade da arte e da subjetividade da religião. O privilégio da arte está em manifestar-se sob a forma da sensibilidade. A interpretação de Márcia Gonçalves aponta para o fato de que, no contexto da Estética de Hegel, não existe tal hierarquia e sim uma superação da idéia de inferioridade ou limitação da arte no sistema hegeliano, "por meio da tese de que o conceito hegeliano de arte possui uma contradição interna ou imanente entre a definição de seu conteúdo absoluto ou divino, como idéia, e a definição de sua forma finita sensível, que só pode ser experenciada por meio da 'intuição' (Anschauung)".1 Segundo a autora, a poesia e a mitologia gregas estão inseridas na Estética, de forma que estas formas de arte transcendam o conceito inicial de arte como intuição, na medida em que possuiriam uma matéria espiritual.
Para que este primeiro caminho possa ser realizado, a autora nos mostra que esta matéria espiritual é fundamental para o próprio filosofar, e este momento é verificado pela afirmação da superioridade do espírito sobre a natureza, e, ainda, evidenciado como a liberdade do espírito. Conseqüentemente, a superioridade do espírito sobre o natural remeterá ao conceito de belo ou ideal. Será a partir da contradição interna ao conceito de ideal e de sensível, principalmente na poesia grega, que se consagrará a necessidade do conceito de destino, como solução para a contradição do espírito em sua existência humana concreta. Para tanto, a autora se vale da figura de deuses e heróis gregos, demonstrando a contradição entre a harmonia do belo ideal e a tensão do conceito de destino. Este caminho aponta não para uma contradição conflituosa, que negaria a necessidade inerente da harmonia do belo ao próprio sistema da arte de Hegel, mas, ao contrário, elucida a necessidade desta contradição como presença da espiritualidade autoconsciente na arte. A necessidade desta afirmação aponta para o princípio reflexivo da arte, delineando também o caráter ético e o caráter político no livro de Márcia Gonçalves. Será também o caráter histórico da arte, tendo como complemento as figuras ética e política, a ponte para a definição do conceito de destino, no sentido de uma evolução realista da arte, como também a possibilidade de reconhecermos na Estética hegeliana a atualidade de seu contexto em nosso mundo contemporâneo, o que é elucidado pela autora nos capítulos finais.
A divisão de O Belo e o Destino faz-se em cinco capítulos. O primeiro, intitulado "Da necessidade imediata da natureza (Naturnotwendigkeit) ao destino como relatividade da vida prosaica", trata do conceito de destino como oposição entre liberdade e necessidade, do conceito de beleza como idealização perfeita do sensível e do conceito evolutivo da arte como superação crescente do sensível pelo espírito. Para tanto, a autora relaciona os devidos temas a partir da crítica de Hegel da imediação natural existente em Kant e a superação desta por meio das filosofias de Schelling e Goethe. A superação do belo artístico pelo belo natural só existe se o fenômeno da beleza se mostrar como ideal, ou seja, como a idealização do sensível pelo espírito. A beleza artística é superior à beleza natural porque é feita pelo e para o Homem. A crítica de Hegel a Kant está em ele compreender a natureza apenas em sua necessidade exterior. Schelling compreende a filosofia da natureza em sua absolutidade, como um todo organizado; já para Hegel a unificação entre o espiritual e o natural apenas pode se dar no nível lógico do pensamento. A filosofia da natureza de Goethe também é criticada por Hegel, no sentido de que o primeiro recorre à intuição como forma de apreensão imediata da natureza. É a partir destas críticas que Hegel vislumbra a superioridade do belo artístico sobre o belo natural, assim como, no âmbito do natural, a natureza se encontra no nível da não-liberdade. Diante disso, o grau de alienação do espírito na natureza varia de acordo com o desenvolvimento da própria vida.
O desenvolvimento interno da vida é realçado pela contradição da morte, e é neste momento que surge o conceito de destino. Este conceito é elaborado pela autora como a determinação própria e exclusiva do sujeito humano, pois o homem é o único indivíduo capaz de internalizar a contradição própria da vida. Diante desta "função" do humano, a arte se coloca como um produto que só pode ser feito pelo e para o homem, por isso, também a sua superioridade em relação à natureza. O belo da arte é fruto do trabalho espiritual, e esta condição de espiritualidade é humana.
Para a superação da natureza, a prosa do mundo é a condição da elevação sobre o natural e designa relações de dependência, alienação e não-liberdade. Este momento é necessário, dado como estranhamento. Este primeiro momento da apropriação da natureza pelo trabalho, como forma de produção, presente no mundo burguês, recai sobre uma estrutura de alienação na qual o trabalho é dado como um produto alheio. No caso da obra de arte, esta é um produto de um trabalho que atende ao interesse da subjetividade que se mostra como livre. O que Márcia Gonçalves nos apresenta é a superação da arte sobre a natureza e sobre a vida prosaica na qualidade de idealização da arte, ou seja, o conteúdo de liberdade e autonomia da arte. A proposta da autora é investigar a maneira pela qual o processo de idealização efetivado pela arte implica a conservação ou não do sensível ou do natural, e em que medida se torna necessária uma evolução deste processo em direção ao espiritual não sensível. Para isso, Márcia Gonçalves se valeu da análise das formas de arte descritas por Hegel.
No segundo capítulo, "A idealização imperfeita do sensível pela arte simbólica", a autora nos apresenta, em sua introdução, o motivo pelo qual Hegel classificou as formas de arte, deixando clara a necessidade da divisão histórica proposta pelo autor. Nesta perspectiva, Márcia Gonçalves expõe a forma de arte simbólica de maneira didática, ainda que apontando para elementos de reflexão na caracterização desta forma de arte, como, por exemplo, um paralelo entre a crítica hegeliana ao belo natural e ao simbólico. Este ponto elucida o significado que Hegel oferece de arte simbólica como pré-arte, dado o seu conteúdo natural, ou da necessidade da representação desta forma de arte aos produtos meramente naturais. Além disso, não se pode deixar de destacar a diferença entre o conceito hegeliano de simbólico para a forma de arte simbólica especificamente falando, e o conceito de simbólico para caracterização dos símbolos na arte, ou seja, o porque da necessidade da nomenclatura de simbólico à primeira forma de arte. Todo o capítulo apresenta minuciosamente ao leitor os principais conteúdos da arte simbólica. Essa forma de arte representa a totalidade do mundo e da vida, e sua intenção é demonstrar que existe um símbolo da totalidade. Este símbolo é representado pelo material pesado, pela pedra, é a arte dos Colossos, a arte da sublimidade. Esta forma de arte tem como característica o excesso da matéria e a falta do elemento espiritual. Tem como principal forma de arte a arquitetura oriental (um exemplo são as pirâmides do Egito), e todo o desenvolvimento deste percurso é marcado pelo elemento natural, característico da cultura dos egípcios e dos indianos. O elemento natural é justificado pela necessidade desses povos de representar pela "arte" ou melhor, pelo seu simbolismo artístico, suas manifestações religiosas e culturais.
O capítulo 3, dedicado à forma de arte clássica, é intitulado "Idealização da natureza pela arte clássica". O título dado ao capítulo justifica que a deficiência formal da simbólica, em conseqüência da deficiência de conteúdo, é que marca a passagem para a forma clássica. Na arte clássica, há uma perfeita harmonia entre forma e conteúdo, e essa harmonia é caracterizada principalmente pela idealização do corpo, perceptível na escultura grega. Há aqui, também, o peso da pedra, como na forma de arte simbólica, mas existe um caráter de espiritualidade na maneira como a forma humana se impõe a esta pedra, de modo que a forma é a totalidade humanizada. O corpo humano perfeito é a forma encontrada e a imagem adequada do deus. Esta forma de arte era o ato religioso de um povo que cultuava as imagens. O que Márcia Gonçalves enfatiza para a forma de arte clássica é seu conteúdo poético, nas formas da mitologia pela idealização do natural; da epopéia, como manifestação estética da individualidade ética; e da tragédia, como manifestação estética da reação contra a narrativa da epopéia. Tomando por pressuposto esses tipos de formas particulares de arte, a autora define o conceito de formação e realização do ideal belo no movimento da elevação do espírito sobre a natureza imediata.
As prioridades da autora no terceiro capítulo são as apropriações da mitologia e da escultura clássicas. Para a mitologia, Márcia Gonçalves faz uso da interpretação hegeliana do mito de Prometeu e das figuras de Hefesto e Heracles, evidenciando a diferenciação das formas de apropriação da natureza por meio do espírito humano em sua respectiva relação aos deuses gregos. Esta abordagem introduz que a suprassunção dos poderes espirituais ou éticos sobre os poderes naturais, correspondem à luta e vitória dos deuses olímpicos sobre os titânicos, por exemplo, no que diz respeito ao mito de Crono. Resumidamente, a importância desta correspondência caracteriza o nascimento de um tempo e de uma consciência históricos que realizam sua concretude na eticidade da Pólis, ao mesmo tempo que ilustra a determinação ou realização do ideal na forma dos deuses belos.2 É o início desse tempo histórico que marca para o Homem o início de seu destino. A luta entre os velhos e os novos deuses corresponde, em relação ao destino humano, à sua própria luta, ao seu trabalho pelo domínio da natureza (elemento ainda presente na forma de arte simbólica). É também um indicador da evolução do povo grego em comparação aos povos do Oriente.
No caso da escultura, o que interessa é o caráter de antropomorfização da divindade no interior da arte clássica. Esta forma de arte exibe, no que diz respeito à religião grega, os seus deuses como indivíduos definidos, pela realização sensível da idéia. É neste momento que é marcado também o processo de idealização da arte como primeira esfera do espírito absoluto. Segundo Hegel, este momento da consciência humana finita significa a consciência de que a divindade é produto da criação poética e demonstra que a antropomorfização dos deuses gregos pelos poetas, ao mesmo tempo que indica a elevação do divino sobre as formas naturais, também determina os deuses a seus elementos arbitrários, como às paixões. A escultura é o tipo de arte propriamente ideal na forma de arte clássica porque unifica o aspecto antropomórfico à idealização, por isso é mais ideal que a poesia e é a forma propriamente ideal de beleza.
O capítulo 4, intitulado "Tematização do destino e humanização total do divino por meio da arte ideal", aponta para uma contradição interna ao próprio conceito de ideal na Estética hegeliana. Esta contradição sugere uma tensão interna entre o conteúdo infinito e a forma finita da obra de arte plástica, que retorna ao conceito de destino. De acordo com a autora, é o conceito de Fatum, como um poder cego que paira sobre os destinos individuais, que corresponde ao conceito de destino na análise da poesia épica. Nesse capítulo, além dessa análise, Márcia Gonçalves também recorre à tragédia como fonte do conceito reflexivo de destino. O objetivo propriamente dito da autora é mostrar que o fato de a arte suprassumir a harmonia do belo ideal favorece, à mesma, a dinâmica viva de sua verdadeira funcionalidade, a de ser a arte reveladora da contradição da vida humana e, conseqüentemente, matéria para o filosofar.
No último capítulo, "O nascimento da subjetividade na arte trágica como princípio da beleza individual e como suprassunção da idéia abstrata de destino", a autora apresenta a interpretação hegeliana da tragédia grega como forma de arte poética que dá início à representação da subjetividade, elemento essencial da forma de arte romântica. O drama, segundo Hegel, é a forma de unificação entre a poesia lírica (subjetividade) e a poesia épica (objetividade). É por meio da definição hegeliana de páthos (objetivo e subjetivo) que a autora descreve o fundamento da ação trágica e toma como base a compreensão do conceito hegeliano de destino. Estes elementos conduzem à análise e à comparação ao drama moderno e levam à conclusão da superioridade da beleza trágica em relação à beleza plástica e à beleza épica, pois a beleza trágica revela ao espírito sua não-liberdade e, por isso, possibilita sua verdadeira liberdade ou autoconsciência.
Uma das características do livro de Márcia Gonçalves é a apropriação da estética hegeliana de elementos fantasiosos e intrigantes, que só podem ser percebidos nas entrelinhas da Estética de Hegel. Ao mesmo tempo, a autora expõe, de forma minuciosa e didática, os aspectos relevantes da Estética e nos faz reconhecer um Hegel menos complicado, ainda que complexo aos leitores menos familiarizados à linguagem do autor. Apesar da forma de tese de doutorado, o que a princípio pode assustar como espécie de introdução à leitura de Hegel, a análise da autora torna-se mais leve, principalmente por privilegiar a poesia. As descrições dos mitos e dos dramas também satisfazem a pureza do texto hegeliano e dão leveza às problemáticas. Como fonte de pesquisa, tanto introdutória como para os estudiosos de Hegel, o livro de Márcia Gonçalves destaca-se pela abrangência do tema e em relação à bibliografia dedicada à matéria.
1 GONÇALVES. O belo e o destino, p. 13.
2 GONÇALVES. O belo e o destino, p. 139.
Kriterion: Revista de Filosofia
Oi! Passei para dar uma olhada num dos melhores blogs de História que conheço.
ResponderExcluirParabéns
Cris