sábado, 22 de maio de 2010

Être et don. Simone Weil et la philosophie


Fernando Rey Puente

Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais

Emmanuel Gabellieri, Être et don. Simone Weil et la philosophie. Éditions de l'Institut Supérieur de Philosophie Louvain-la-Neuve/Éditions Peeters: Louvain/Paris, 2003. 581p.

A obra de E. Gabellieri, Étre et don, constitui um marco fundamental para a ulterior análise da filósofa francesa Simone Weil (1909-1943). Infelizmente ainda pouco conhecida e traduzida no Brasil — onde a obra de H. Arendt, ao contrário, é amplamente difundida e discutida —, Simone Weil se afirma paulatinamente no âmbito internacional como um dos mais importantes filósofos do século passado. A recepção de seu pensamento em países tão diversos como o Japão, a Itália e os Estados Unidos é extremamente fecunda e as exegeses de sua obra realizadas nesses países são igualmente ricas e profundas. Na França, especialmente desde o início da publicação de suas obras completas no final dos anos 80, Simone Weil vem do mesmo modo recebendo a devida atenção do meio acadêmico, e o livro aqui resenhado é uma prova contundente disso. Na verdade, já desde a publicação pioneira de La métaphysique religieuse de Simone Weil, de M. Vetö, em 1971, começou a haver uma inflexão nas pesquisas consagradas à análise de sua obra. Até então, de modo geral, as pesquisas destacavam apenas os aspectos social e político, por um lado, ou místico e religioso, por outro, de sua produção sem se preocuparem em pensar a coerência de sua obra como um todo. A dimensão filosófica-conceitual presente nas exegeses anteriores ao livro de M. Vetö eram igualmente bastante limitadas, mas felizmente ao longo destes últimos anos as coisas começaram a mudar com a publicação de importantes livros em francês, inglês, italiano e japonês dedicados a realizar uma interpretação academicamente séria e filosoficamente relevante de sua obra. A produção de língua espanhola, embora menos expressiva, também tem começado a mostrar maior profundidade nos últimos anos. Dentre nós, contudo, ainda estamos num grande vazio.

O livro, ao longo de suas 581 páginas, está organizado do seguinte modo: Introdução geral, livro I ("O ser e o espírito"), dividido em dois capítulos — "O espírito e o mundo" e "O espírito e o social" —, livro II ("O ser a graça"), dividido em três capítulos — "Os limites do humanismo", "A força e a graça" e "Revelação e criação" —, livro III ("O ser e o dom"), igualmente dividido em três capítulos — "A dupla catharsis da religião e da filosofia", "Enraizamento e ação não-agente" e "Decreação e doação" —, e Conclusão geral, seguida de dois anexos, bibliografia e dois índices (temático e onomástico).

Lançando um olhar retrospectivo sobre seu próprio livro, Gabellieri afirma que o pensamento weiliano "não cessa de revelar, em seus diferentes domínios e planos, aporias intelectuais, à sua vez, expressivass de limites ontológicos irredutíveis" (p. 440). Desde os textos de juventude, segundo ele, já estariam definidas as antinomias ontológicas primordias que perpassam a totalidade da obra de Simone Weil: essência-existência, tempo-eternidade, singular-universal, liberdade-necessidade; depois seguir-se-iam as de caráter político-social: indivíduo-sociedade, contemplação-trabalho, força-justiça e, por fim, apareceriam as antinomias propriamente onto-teológicas: natureza-graça, desgraça-amor sobrenatural, Deus pessoal-Deus impessoal e incarnação-universalidade.

A análise desenvolvida pelo autor ao longo das quase seiscentas páginas que compõem o livro é bastante exaustiva e minuciosa, demonstrando o seu profundo conhecimento tanto da obra de Simone Weil, quanto dos exegetas mais qualificados da mesma. Um outro aspecto louvável do livro de Gabellieri é a preocupação constante que ele tem em estabelecer um confronto do pensamento de Simone Weil com o de outros pensadores, como, por exemplo, Descartes, Proudhon, Bataille, Arendt, Heidegger e Blondel. Vejamos, mais detidamente, como ele procede.

A "Introdução geral" tem o propósito de expor o status quaestiones da pesquisa mais importante sobre a pensadora francesa, bem como o de explicitar a intenção de seu projeto. Por esse motivo, Gabellieri se preocupa em explicitar, logo de início, os dois aspectos diretrizes de seu livro. Ao mesmo tempo, ele pretende realizar: a) uma análise levando em conta o aspecto cronológico de toda a obra de Simone Weil, a fim de evitar, de um lado, uma separação indevida de seu pensamento em dois momentos antagônicos, segundo o modelo que diversos intérpretes haviam empregado anteriormente para compreender a obra da filósofa e, de outro, uma análise profunda e adequada, mas apenas parcial, de um determinado momento ou de um determinado aspecto do pensamento de Simone Weil; e b) oferecer uma exegese focalizando a organização temática da mesma ao eleger as categorias ("ser" e "dom") capazes, segundo ele, de explicitar com maior clareza e de possibilitar a melhor reconstrução das intuições e reflexões filosóficas mais profundas e originais de Simone Weil, muitas vezes dispersas ao longo de inúmeros textos de circunstância e de pensamentos isolados.

O livro I, que contém dois capítulos, é fundamental para que se possa compreender a inserção das primeiras reflexões filosóficas de Simone Weil no âmbito de suas preocupações posteriores e normalmente mais conhecidas. Destacam-se nesse primeiro livro as análises a) do problema da percepção em confronto com o pensamento de Descartes e Espinosa e b) do problema do trabalho e da opressão social ante os quais ela tem como principais interlocutores Marx e Proudhon. As observações interessantes e dignas de menção contidas nessas páginas são várias. Eis alguns exemplos: 1) o modo como o autor assinala a presença dos conceitos tardios de decreação, ação não-agente, leitura e atenção nesses primeiros escritos, testemunhando assim, portanto, a coesão e coerência internas que perpassam a totalidade da obra; 2) a ênfase dada por Gabellieri a uma passagem da obra de Simone Weil, particularmente importante para ele, pois parece anunciar aquilo que ele pretende explicitar ao longo de toda a produção da pensadora francesa, a saber, que ela advoga a impossibilidade de um conhecimento direto e pleno do ser, mas que deste podemos ter, entretanto, um saber progressivo. Nas palavras de Gabellieri: "conhecer outra coisa tal como ela é em si seria percebê-la de modo total e sem progressividade. Ao contrário, saber o que ela é em si é saber que ela é um dado que resiste, mas que podemos ler e penetrar pouco a pouco a significação. Assim, eu não conheço o ser em sua plenitude, mas ao mesmo tempo ele não deve me ser desconhecido de modo irremediável" (p. 67); 3) a interpretação detalhada do confronto teórico entre Simone Weil e Descartes, em especial das provas do ego, do mundo e de Deus que ambos propuseram (cf. p. 80), bem como da relação ainda pouco estudada, mas bastante iluminadora — como o autor não nos cansa de advertir durante todo o seu livro — de Simone Weil com Proudhon, particularmente no que se refere aos conceitos de trabalho e de revolução (p. 93 et seq. e p. 144-154); 4) a confrontação óbvia com Marx relativa ao problema da opressão e da revolução; e 5) o interessante confronto entre Simone Weil e G. Bataille no que diz respeito à noção de revolução (p. 118-124) e a explicitação da divergência central com H. Arendt na medida em que para esta, diferentemente do que para Proudhon e Simone Weil, não é pela transformação do trabalho, mas pela ação, que é algo irredutível ao trabalho, que as mudanças sociais podem ocorrer.

Para Gabellieri, em suma, o que se revela nessas preocupações iniciais é que o mundo, para Simone Weil, é pensado ao mesmo tempo como obstáculo e como dom. Em suas palavras: "Ele é obstáculo pelo fato de que ele parece contradizer os fins do pensamento e da ação; e dom na medida em que a experência, não saída do poder humano, é recebida como o signo gracioso de uma realidade que o espírito, pela atenção e pelo pensamento, pode aprofundar progressivamente" (p. 101).

O livro II, que abrange três capítulos, apresenta algumas análises fundamentais. O terceiro capítulo retoma a discussão da diferença central entre a filosofia de Simone Weil e o pensamento político de H. Arendt no que se refere à análise da noção de trabalho, objeto de contemplação na primeira e mero processo vital próprio ao metabolismo animal para a segunda, resultando daí as preocupações divergentes de ambas em a) unir pensamento e ação no trabalho em S. Weil e b) discernir pensamento e ação do trabalho em H. Arendt (p. 174 et seq.). É a partir da análise da experiência operária de Simone Weil que o autor introduz o tema da desgraça (malheur), tão caro à pensadora francesa. A desgraça não anunciaria uma súbita mudança de cunho religioso ou místico da filósofa, antes brotaria da própria reflexão sobre a opressão e o tempo realizadas pela mesma em sua juventude. Simone Weil, depois da experiência de fábrica, teria perdido sua crença humanista de que seria possível preservar a dignidade pessoal sob qualquer criscunstância apenas pela força de vontade. A experiência da desgraça, e somente ela, evidenciaria para cada um de nós a nossa fragilidade e finitude radicais. Eis porque, segundo Gabellieri, a experiência da desgraça, para Simone Weil, teria um papel análogo àquele da consciência infeliz em Hegel ou da angústia em Kierkegaard ou Heidegger, ainda que nenhuma das soluções por eles propostas a satisfizesse (cf. p. 202-203). A grandeza do cristianismo para ela decorria então do fato de que ele não oferecia um remédio sobrenatural contra o sofrimento, mas sim um uso sobrenatural do sofrimento. Eis a razão também do crescente interesse dela pela tragédia grega e pelas situações de desgraça por esta expostas. É o momento também em que ela começa a recorrer crescentemente a Platão e no qual elege uma passagem do livro VI da República como mote central de seu pensamento. Trata-se da diferença entre o Bem e o necessário. A suposição de que o Bem possa estar presente neste mundo onde impera a necessidade e a força leva ao totalitarismo. Simone Weil adotará igualmente uma máxima platônica, qual seja, a de que é melhor sofrer uma injustiça do que cometê-la. Ambas as
apropriações de Platão a levaram a duvidar da possibilidade de agir segundo o Bem, exceto sob uma influência sobrenatural, pois naturalmente tendemos a exercitar a força que possuímos, lição que ela aprende com Tucídides, no célebre episódio do confronto dos atenienses com os habitantes da ilha de Melos, episódio esse constantemente rememorado por ela. Diante disso, só a graça poderia intervir favoravelmente, mas, antes de tematizá-la, Simone Weil refletirá sobre um conceito intermediário, o da beleza. Como ela explicita em um de seus Cadernos, em geral considera-se a estética um estudo particular, mas, na verdade, ela é "a chave das verdades sobrenaturais". O autor nos oferece uma interessante reflexão, mais ainda, uma interessante sugestão de pesquisa ao mencionar que deveria ser feito um estudo sobre as transposições sucessivas que o conceito de ritmo sofre ao longo da obra de Simone Weil, partindo de um estudo dos ritmos musicais e poéticos e de sua relação com o corpo (presente nas primeiras obras), passando pela relação da alma com o mundo (enfocada na relação de alienação provocada pela cadência desumana das máquinas) e, por fim, chegando a expressar a relação da alma com Deus (explorada nos textos finais) (p. 246, n. 70). A análise posterior que o autor nos oferece das experiências místicas de Simone Weil é pensada à luz de uma releitura da experiência estética, conectando assim dois temas tratados muitas vezes como desconectados. Simultaneamente a essa releitura da experiência estética, Simone Weil inicia uma crítica da noção de ciência moderna inspirada no modelo da ciência grega (cf. p. 290). Para a filósofa, o principal erro da ciência moderna é a substituição da analogia pela abstração algébrica. A ciência opera diante de uma contradição insolúvel (entre o singular e o universal), e a ciência moderna oferece uma falsa solução para essa contradição (perde-se em uma abstração vazia, a saber, raciocina apenas sobre os signos convencionais), nisso reside seu mal. Apenas a analogia, para Simone Weil, permite pensar ao mesmo tempo de forma absolutamente pura e absolutamente concreta. A finalidade da matemática deveria então ser a de revelar a ordem e a beleza do mundo. Como nos adverte Gabellieri, as críticas de Simone Weil à teoria dos quanta, por exemplo, são retomadas atualmente pelo epistemólogo R. Thom.

O capítulo cinco analisa as mútuas influências da teologia e da filosofia em Simone Weil. Aqui cabe destacar as penetrantes análises da apropriação que ela faz do platonismo e do pitagorismo (p. 308-322), páginas essenciais do livro que expõem de modo claro e preciso a metafísica da mediação que a pensadora desenvolveu a partir dessas influências e que constitui, segundo o autor, o cerne da filosofia de Simone Weil. Com suas palavras: "a doutrina pitagórica da mediação foi o princípio teórico que permitiu a Simone Weil articular definitivamente suas primeiras reflexões onto-teológias com a revelação do amor sobrenatural" (p. 368). Gabellieri nos proporciona também, ainda nesse capítulo, um interessante confronto entre o pensamento de Simone Weil e o de Maurice Blondel, assinalando passagens muito próximas nas obras desses dois autores franceses (p. 328-332). A seguir ele passa a um pertinente comentário sobre o intrincado problema do mal e da criação na obra de Simone Weil, dirimindo alguns equívocos que algumas exegeses haviam consolidado sobre esse tópico. As complexas especulações trinitárias de Simone Weil ocupam o restante do capítulo.

Por fim, o último livro da obra visa explicitar a tese central do autor. Mas antes disso ele precisa eliminar alguns equívocos e esclarecer alguns pontos finais. É o que fará ao longo do capítulo seis, ao explorar a complexa relação da autora com várias religiões. Por exemplo: o judaísmo, o cristianismo, o gnosticismo e as tradições orientais. Um ponto importante e que merece ser destacado é a resposta que o autor tenta dar à crítica veemente de E. Levinas contra o modo de Simone Weil analisar o Antigo Testamento (p. 390-396). Um outro aspecto contemplado nesse capítulo é a análise da crítica que Simone Weil faz a uma razão natural, donde as suas duras e às vezes injustas críticas a Aristóteles e Bergson. A ligação entre esses temas nos é oferecida pelo próprio autor: "Tudo se passa como se Aristóteles e Bergson representassem com Nietzsche, no plano filosófico, enquanto filósofos da 'vida' e da natureza, o análogo de Israel no plano religioso: uma idolatria do conatus vital e da força, revelando um fechamento idêntico para o sobrenatural" (p. 440). Ao final do capítulo, Gabellieri nos rememora a importância da contradição para a autora, pois só ela pode nos levar à transcendência, sendo então não mais uma simples razão, mas uma razão sobrenatural ou, em outras palavras, amor.

O capítulo sete procura mostrar de que modo nos textos finais o que está em jogo é uma dimensão política, ou seja, após a mística temos a aplicação da mesma no plano político. O que é perfeitamente conforme à exegese de Simone Weil da última etapa da alegoria da caverna de Platão, que não é a contemplação direta do Sol, mas sim o retorno à caverna. Por isso, o capítulo trata da ação não-agente e do enraizamento. De modo original, Gabellieri chama a atenção para a influência de J. Maritain sobre Simone Weil na elaboração de suas últimas reflexões filosóficas (p. 453-462). Retoma, mais uma vez, o confronto com H. Arendt enfocando a discussão da noção de "vida pública" em Simone Weil, cuja genealogia o autor, contudo, reconhece ainda estar por ser feita (p. 468-475).

O último capítulo do livro tem por título "Decreação e doação". Nele, finalmente, encontraremos exposta a tese central do autor, a saber, que os conceitos de "ser" e "dom" são os conceitos-chave para compreender a obra de Simone Weil. Ele começa sua exposição apresentando um aspecto pouco conhecido da noção de decreação em Simone Weil, a saber, que esta não possui um caráter destrutivo, mas sim de pleno consentimento à condição de criatura. Isso fica claro em uma passagem dos cadernos da filósofa, onde ela afirma: "consentir por amor a não ser mais, como nós devemos fazer, não é aniquilação, mas transporte vertical na plenitude do ser" (p. 496, ênfase de Gabellieri). Com isso, o autor aponta para a leitura parcial das exegeses desse conceito que sublinham apenas a negação do criado e não o consentimento, a re-criação e o amor sobrenatural. Ora, trata-se, na verdade, não de anular a criação, mas sim de finalizá-la, daí a noção de "re-criação". Esse movimento obedece então a uma lógica do dom: só possuímos aquilo a que renunciamos. A plenitude do ser é pensada, por conseguinte, em oposição a uma situação ontológica em que a comunhão entre si mesmo e Deus inexiste. Segundo Gabellieri, a decreação não é apenas uma imitação do ato de contração criacional de Deus, antes "ela é mais profundamente uma imitação do próprio amor trinitário, onde o ser é somente relação de consentimento e abandono ao outro" (p. 509). Assim, ele aproxima a posição de Simone Weil da de Gabriel Marcel e da de Maurice Blondel, segundo os quais o espírito não é um sum, mas um sursum. De posse dessas noções, Gabellieri pode finalmente interpretar a morte de Simone Weil em Londres não como um suicídio, mas como uma doação, e se perguntar ao final: "não mais poder viver quando o dom da vida tornou-se impossível, morrer literalmente de amor, como outros místicos puderam exprimir, não é esta a última verdade de Simone Weil?" (p. 519).

O autor conclui seu portentoso livro com algumas reflexões valiosas, mostrando, em primeiro lugar, a presença da idéia de dom desde os primeiros escritos até os textos finais, ainda que Simone Weil jamais se utilize desse conceito. Por isso, ele procura justificar o seu uso em detrimento de outros conceitos por ela utilizados como, por exemplo, os de bem, graça ou mesmo amor. Aliás, é precisamente esta "necessidade epistemológica do amor para um verdadeiro conhecimento do ser" e a conseqüente avaliação da filosofia como modo de vida que fazem da filosofia de Simone Weil uma alternativa radical às demais filosofias de nossa época.

Esperamos que esse livro possa levar os filósofos e estudantes de filosofia a considerar com maior cuidado e atenção uma das mais injustiçadas obras de filosofia escritas no século passado, mas felizmente, ao que tudo indica, inspiradora de novas reflexões filosóficas no século há pouco iniciado.

Kriterion: Revista de Filosofia

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