quinta-feira, 1 de abril de 2010

A travessia da Calunga Grande. Três séculos de imagens sobre o Negro no Brasil

Carlos Eugênio Marcondes de Moura. A travessia da Calunga Grande. Três séculos de imagens sobre o Negro no Brasil. (1637-1899), São Paulo, Edusp, 2000, 694 pp.

Lilia Katri Moritz Schwarcz
Professora do Departamento de Antropologia - USP


Contam os historiadores que, com a descoberta do Novo Mundo, o imaginário ocidental se voltou ¾ entre encantado e assustado ¾ para esse novo continente. Por certo a atitude era, no mínimo, ambígua. Afinal, se com relação à natureza as representações insistiam na edenização ¾ na idealização de um paraíso perdido recém-descoberto ¾, já no que se refere aos "naturais" a maior parte das imagens reafirmavam uma certa detração ou, ao menos, a estranheza diante desses homens sem "fé, lei ou rei". Polígamos, politeístas e, sobretudo, com suas "vergonhas à mostra", esses habitantes das américas representavam quase a não-humanidade, ainda mais quando sujeitos à mistura advinda da introdução maciça de trabalhadores negros, que, de forma compulsória, chegavam da África, alternando ¾ ainda mais ¾ padrões e costumes.

A viagem era longa; maior ainda o fastígio. Calunga grande é o mar, a enormidade de seu destino e de seu horizonte. Calunga pequeno é a terra que recebe esses corpos e os transforma em semente. Mas no caso da escravidão, reinventada no Novo Mundo, a terra tragou os corpos desses milhares de cativos, que foram antes transformados em prisioneiros, brutalizados pela violência desse sistema que supôs a posse de um homem por outro. É esse mundo "estranho" que captou a curiosidade de uma série de pintores, viajantes ou meros observadores, que retrataram os trópicos e suas gentes, tal qual um espetáculo ou, às vezes, como um intrincado laboratório racial.

Em torno dessas imagens de negros é que Carlos Eugênio concentrou sua pesquisa, ou melhor, esse amplo levantamento da iconografia, inscrita nas mais variadas fontes. O resultado é o levantamento exaustivo de centenas de relatos de viagem, telas, óleos, gravuras, esculturas, desenhos de artistas em trânsito e, a partir do século XIX, de fotografias ou caricaturas impiedosas, impressas nas revistas ilustradas.

Com efeito, são mais de três séculos dispersos por entre autores e técnicas variadas, que revelam um conjunto impressionante de imagens que se destaca ¾ diferente do que se possa à primeira vista imaginar ¾ por sua riqueza e diversidade.

Duas mil e seiscentas imagens foram levantadas, apesar de só 500 terem sido reproduzidas. Nelas, se é o mundo do trabalho que ocupa a maior parte da iconografia, referendando a idéia de que no Brasil "trabalho era coisa de escravo", são também os costumes que explodem nos detalhes, as vestes que aparecem como quem não quer, os instrumentos e expressões que surgem nos cantos das telas ou nas pinceladas mais apressadas.

Dividido em três grandes momentos, o livro acompanha, de forma cronológica, esse olhar, sobretudo estrangeiro, que retrata, mas também recria e imagina.

No primeiro momento do livro estão concentradas as imagens caudatárias do período da invasão holandesa, em Pernambuco. Mas esse roteiro de imagens começa um pouco antes e em outro local: recua a 1686 e incorpora uma alegoria ao Continente Africano. Como toda alegoria a tela mistura pitoresco e representação, realidade e fantasia. Nela está estampado não só o assombro diante do desconhecido, como a importância que era dada à documentação. Por sinal, essa é a tônica de toda a primeira parte, que introduz mapas e uma cartografia (muitas vezes imaginária) e termina com mais uma alegoria que, dessa feita, representa o encontro entre a América (Brasil?) e a África.

Seguindo esse desfile de ilustrações chegamos à mais remota imagem da iconografia afro-negro no Brasil. Île de Tamaracá é o primeiro quadro pintado por Franz Post no Brasil, e data de 1637. Modelo inaugural, a tela deve ser entendida de forma coesa com o conjunto da obra desse artista, que veio ao país quando tinha apenas 24 anos.

Preocupado em documentar a natureza, Franz Post captou e deixou ficar nos detalhes ¾ às vezes minúsculos ¾ os carros de bois, índios, escravos nas mais diferentes situações, alguns nobres brancos, e muitos animais. Se a produção desse pintor é exemplar, ela deve muito ao incentivo de Johan Maurits, príncipe de Nassau, que trouxe toda uma missão consigo, que incluiu ¾ em diferentes momentos ¾ Albert Eckout, o alemão Zacharias Wagener, entre tantos outros. O fato é que, nessa primeira série, um conjunto significativo da produção holandesa se apresenta, indicando como são estreitos os limites entre a descrição e a imaginação.

A empreitada continua, atentando agora para a rara iconografia do século XVIII. Nesse momento, e em função da política mais restritiva, imposta aos viajantes estrangeiros pelo governo ultramarino ¾ visando proteger as minas de diamante e de ouro dos contrabandistas ¾, pouco se fez e menos ainda sobrou como testemunho de época. Tantas restrições só fazem aumentar o interesse e a atenção para a pintura ¾ quase ingênua ¾ de Carlos Julião (1740-1881), cujo álbum Ditos figurinos de brancos e negros dos usos do Rio de Janeiro e Serra do Frio foi publicado após 1776.

Mas é no século XIX que se concentra o grosso das imagens desse livro. Negociantes, diplomatas, militares, naturalistas, cartógrafos, viajantes, pintores e aquarelistas, quase todos de passagem pelo Brasil, poucos residindo de forma temporária e ainda menos de maneira definitiva, legaram uma imensa documentação, sobretudo quando comparada aos demais períodos: são 1063 imagens do século XIX, para 115 do século XVII e apenas 63 do século XVIII.

A qualidade das obras varia (mesmo porque desse terceiro conjunto constam nomes conhecidos como Thomas Ender, Debret, Rugendas etc.), assim como a abordagem e a técnica. Afinal, nesse século o registro iconográfico foi repentinamente renovado, não só a partir da utilização do daguerreótipo e depois da fotografia, como em função de sua maior veiculação em periódicos de grande circulação.

Além disso, nesse contexto, destaca-se ainda a grande diversidade no tratamento das imagens. Muitas vezes são as telas mais comprometidas com o retrato, e o relato que se quer fiel, que se impõem. Em outros momentos, surgem as imagens mais satíricas, como as do viajante dinamarquês, Harro-Harring, que passou longe do retrato mais idealizado e preferiu o desenho impiedoso que condena a escravidão. Isso sem falar das caricaturas, que estabelecem uma relação ambivalente entre o artista, o público e aquele que é retratado: se, de um lado, satirizam e criticam, de outro, aproximam e, por meio da ironia, criam uma certa convivência e proximidade.

Mas essa é por certo uma outra história, mesmo porque não há como traduzir em palavras a riqueza desse livro, cujas imagens compõem um texto por si só. Antes de ser pretexto ¾ um complemento narrativo ¾ nesse caso, é a iconografia que vai criando um léxico próprio, uma maneira particular de entender e representar esse país.

Significativa é, apenas, a pequena referência às pinturas acadêmicas que, apesar de não privilegiarem os temas sociais e, sobretudo, a escravidão (considerada, nesse contexto, como uma "mancha" a ser disfarçada), de maneira inversa e muitas vezes sem pretender, retratam e domesticam uma imagem negra, que se transforma em quase branca. No entanto, a tarefa de Carlos Eugênio é sobretudo meritosa, e é fácil apontar lacunas, sempre presentes diante de um levantamento tão extenso e (positivamente) pretensioso.

O livro vai se fechando com as últimas imagens de negros retornados à África e que comemoraram a Abolição mesmo em Lagos, na Nigéria. Estrangeiros no Brasil e brasileiros na África, esses ex-escravos que, a partir dos anos 1830 fazem a travessia de Calunga Grande no sentido contrário, tiveram suas imagens imortalizadas nas fotografias. São os povos de Angola, os povos de fala Iorubá, numerosos na Bahia e em Pernambuco, que lá procuram - finalmente - "por sua semente".

Dessa maneira, "se não fosse muito já era quase". A travessia da Calunga grande a um só tempo desfaz uma lacuna imensa da bibliografia, assim como abre um veio amplo para futuras pesquisas e investigações.

Para quem sempre disse que esse país era carente de imagens, esse livro é antes uma dádiva, um grande presente, que revela como, por mais que Rui Barbosa tenha pretendido, não foi possível apagar "a marca negra de nosso passado". Com efeito, em meio a um duplo ato falho, o político pensava fazer da história e de seu registro um motivo de exclusiva vontade. Por sorte, pouco apagou, mesmo porque os legados não se inscrevem exclusivamente em registros cartoriais e só oficiais.

Aí reside a imensa realização de Carlos Eugênio Marcondes de Moura que percorre três séculos acompanhado das imagens e faz da sua apresentação um maravilhoso e sensível cinematógrafo, cuja coerência é dada pelo olhar, que desvia, recorta, seleciona e impõe interpretações.

Revista de Antropologia

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