quinta-feira, 1 de abril de 2010

Secret judgements of God. Old World Disease in Colonial Spanish America

Noble David Cook & W. George Lovell (Eds). Secret judgements of God. Old World Disease in Colonial Spanish America. Norman and London, University of Oklahoma Press, 1992, 285pp. The Civilization of the American Indian series, vol. 205.

Francisco Silva Noelli
Professor do Departamento de Fundamentos da Educação — Universidade
Estadual de Maringá

A partir do início do século XX houve interesse em identificar quais seriam as doenças introduzidas no continente pelos europeus e quais seriam as preexistentes, em estudos que tiveram a princípio escassa penetração no meio americanista. Também houve interesse em descobrir quais eram epidêmicas e quais seus efeitos na demografia indígena. Porém, seu incremento e aperfeiçoamento só ganhou ímpeto no final dos anos 30, quando iniciaram os estudos de demografia histórica realizados pela "Berkeley School". Desde então houve inúmeras pesquisas, com diversos acertos, muita "fantasia aritmética" e acirrados debates na tentativa de desenvolver os métodos mais adequados para analisar a demografia indígena e o seu imenso declínio após 1493, data da primeira epidemia nas Américas, na ilha de Hispaniola e, sobretudo, quando os europeus "oficialmente" puseram os pés pela primeira vez nas atuais praias brasileiras (1500), platinas (1513) e mexicanas (1519). Junto com os estudos demográficos cresceu a consideração sobre a importância das doenças epidêmicas vindas com os europeus, reconhecidas na atualidade como um dos principais vetores da redução populacional dos povos indígenas nas Américas após 1492.

A resenha em questão versa sobre um exemplo acabado e positivo desse desenvolvimento, especialmente sobre a questão epidemiológica. Trata-se de uma coletânea de trabalhos apresentados no 46º Congresso Internacional de Americanistas, realizado em 1988 em Amsterdã, enfocando o impacto das doenças do Velho Mundo nos povos indígenas em uma área que vai do México Central ao Chile, passando pela Guatemala, Equador, Colômbia e Peru, entre os séculos XVI e XIX. A introdução é de Woodrow Borah, que avalia o "estado da questão", apresentando as principais linhas de pesquisa e problemas em voga. Os três capítulos seguintes tratam das doenças e da depopulação nos primeiros cem anos de presença espanhola no México Central (Hans Prem), Guatemala (W. George Lovell) e Equador (Linda A. Newson). Outro sobre doenças na região de Bogotá — 1536-1810 (Juan A. & Judith E. Villamarín). Uma análise densa sobre a mortalidade em um povoado nas montanhas peruanas, entre 1580-1623 (Brian M. Evans). Estudos de caso sobre doenças, população e saúde pública na Quito do século XVIII (Suzanne A. Alchon) e sobre varíola, guerra e política imperialista no sul do Chile setecentista (Fernando Casanueva). Encerrando o livro há um balanço sobre as perspectivas interdisciplinares na pesquisa de doenças epidemiológicas e sua ação sobre as populações a partir do ponto de vista histórico (Noble D. Cook & W. George Lovell).

É um ótimo exemplo de como avançou a pesquisa interdisciplinar para identificar clinicamente doenças letais em "solo virgem" (Crosby, 1976: 289-90) e seus efeitos patológicos e demográficos nas fontes escritas ao tempo dos primeiros contatos, muitas vezes criptográficos aos olhos do nosso tempo, de natureza fragmentária e descontínua, características típicas do período que Nicolás Sanchez-Albornoz denominou "pré-estatístico" a respeito da maior parte da documentação colonial. O fio condutor de todos os capítulos é o objetivo de listar datando e localizando todos os eventos epidêmicos que foram registrados pelos espanhóis e pelos indígenas. Paralelamente há um esforço para revelar o tamanho da população daqueles primeiros tempos de contato e os sucessivos descensos sob o efeito das epidemias e de outros eventos depopulacionais que ocorriam simultaneamente (guerra, mita, encomienda).

Cabe destacar a tentativa de evidenciar todas as variáveis possíveis de serem enunciadas sobre a introdução e dispersão geográfica das doenças epidêmicas, iniciando pela consideração sobre a transmissão para áreas sem cobertura de fontes escritas em períodos anteriores ou contemporâneos da primeira presença de fato dos europeus em cada região. Nestes casos, a busca de informações deve ir além das fontes escritas, procurando resultados arqueológicos de análises paleoepidemiológicas em populações esqueletais anteriores ou contemporâneas dos europeus. Seria o único meio de verificar os efeitos de doenças e depopulação em áreas com documentação lacunar ou sem dados que contribuam para a identificação das doenças (por exemplo: Chile, Peru, Equador e América Central; cf. Reff, 1992; Verano, 1992). As fontes escritas indígenas também foram intensamente esquadrinhadas, a exemplo dos "anais" dos Cakchiquel na Guatemala (1519), redigidos cinco anos antes do primeiro contato direto com espanhóis em 1524, cujo conteúdo revela importantes descrições das epidemias, das doenças, dos seus efeitos clínicos e da ação sobre a demografia, com altas taxas de morbidade. O estudo de caso sobre a primeira pandemia americana, de varíola, que partiu do México (1519) para o sul atingindo a Guatemala em poucos meses (1519-20) e, em 1524, atingiu o Equador, pode ser considerado um exemplo paradigmático do estado em que se encontram as pesquisas interdisciplinares. Os contribuintes da coletânea, sobretudo os que analisam os séculos XVI e XVII, procuram verificar as epidemias em nível local, regional e o seu encadeamento em escala espacialmente crescente (até em nível continental). Também procuram detectar as epidemias que muitas vezes precederam os primeiros contatos face a face com os europeus, alterando significativamente os números e contagens realizados posteriormente pelos cronistas que relatam os primeiros contatos com os povos indígenas.

Estes estudos também constituem uma nova postura crítica em relação à primeira geração de estudos, especialmente os realizados nas décadas de 1960/1970, revisando o conteúdo das fontes a partir de um preparo interdisciplinar mais consistente em termos biomédicos, epidemiológicos, estatísticos e ecológicos, bem como no uso de diversas fontes, tanto as escritas por europeus e indígenas, quanto as arqueológicas. Ou seja, trata-se de uma nova concepção de pesquisa, que cerca o objeto temático de seus estudos com diversas abordagens, provindas da Medicina, Biologia, História, Arqueologia, Lingüística e Etnografia. Embora ainda existam diversos problemas derivados da falta de uma linguagem conceitual que dê conta deste gigantesco campo de pesquisas, pode-se dizer que as décadas de 1980 e 1990 testemunharam avanços mais consideráveis que os dos anos precedentes, nos quais imperava a luta entre os que defendiam as "altas" ou "baixas" estimativas demográficas. Agora a disputa para "estimar o desconhecido" (Denevan, 1976), antes baseada apenas na imaginação fértil sobre o tamanho de populações de áreas não estudadas, parece estar superada, dando lugar a estudos que procuram conhecer quais as fontes úteis para analisar eventos locais e regionais em grande detalhe. Como se pode verificar em todos os capítulos de Secret judgements of God, o principal consenso no presente é que houve um acentuado descenso demográfico geral, cujos números específicos de cada região devem ser desvendados através da pesquisa interdisciplinar.

Este livro, assim como vários outros publicados nas décadas de 80 e 90, contém uma perspectiva de pesquisa e uma abordagem interdisciplinar praticamente desconhecidas e ainda não realizadas sobre os povos indígenas do atual território brasileiro, relativa ao período 1500-1700. O período posterior (1800-1900), apesar do volume de documentos em maiores proporções que o período colonial, ainda não foi estudado. Mesmo sobre os povos atuais, em que pese a existência de estudos biomédicos dos anos 80/90, ainda há raros estudos sobre epidemias e seus efeitos no tamanho das populações indígenas. Estimativas consistentes para o tamanho da população indígena no início do século XVI, no atual Brasil, ainda permanecem inéditas, apesar dos esforços preliminares de Clastres (1973), Denevan (1976), Hemming (1978), Melià (1986), baseados em séries documentais incompletas ou, em alguns deles (Clastres e Hemming), sem dados reais ou corretamente aplicados a partir das fontes empregadas.

O esforço para identificar as doenças contidas nas fontes, demonstrado em Secret judgements of God, é igualmente desconhecido no Brasil. Ainda são raras as publicações com alguma evidência sobre doenças epidêmicas e seu impacto biológico nos indígenas dos séculos XVI, XVII e XVIII. Os escassos livros de História da Medicina no Brasil têm mais preocupação em revelar eventos ocorridos na Europa, questões acadêmicas e ilustres personagens (especialmente médicos e doentes famosos), sem analisar socialmente as questões de saúde/doença, tanto nas incipientes aglomerações quinhentistas quanto nas áreas indígenas vizinhas ou distantes. Da mesma forma, os aspectos da formação da sociedade colonial nos séculos XVI e XVII, sob a perspectiva saúde/doença, também são praticamente desconhecidos e o conjunto das publicações, incluindo as mais recentes de historiadores e antropólogos, revela esta ausência ( Baldus, 1954, 1968; Lapa, 1976, 1985; Hartmann, 1984; ABA, 1990, 1996; Fico & Polito, 1992 a, 1992 b; Bibliografia Anual, 1994-1998; Repertório Semestral, 1994-1998; Capelato, 1995; Bezerra & Santos, 1996).


Bibliografia

ABA
1990 Teses (1945-1990), pesquisas, antropólogos, Rio de Janeiro/Campinas, ABA/ UNICAMP.

1996 Cadastro de teses e dissertações defendidas em Antropologia, Rio de Janeiro, ABA.

BALDUS, H.
1954 Bibliografia Crítica da Etnologia Brasileira, São Paulo, Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo.

1968 Bibliografia Crítica da Etnologia Brasileira, Hannover, Kommissionsverlag Münstermann-Druck GMBH, vol. 2.

BEZERRA, H. G. & SANTOS, E. G.
1996 Quem é quem na História. Pesquisadores e pesquisas no Brasil. Goiânia, CEGRAF.

BIBLIOGRAFIA ANUAL, 1-4.
1994-1998 Ouro Preto, Centro Nacional de Referência Bibliográfica/Dep. História/ICHS/UFOP.

CAPELATO, M.
1995 Produção histórica no Brasil:1985-1994, São Paulo, Xamã.

CLASTRES, P.
1973 "Éléments de démographie améridienn", L'homme. Revue Française d'anthropologie, Paris, vol. 13(1-2): 23-36.

CROSBY, A. W.
1976 "Virgin soil epidemics as a factor in the aboriginal depopulation in America", William and Mary Quaterly, vol. 32(3): 289-99.

DENEVAN, W.
1976 The native population of the Americas in 1492, Madison, University of Winsconsin Press.

FICO, C. & POLITO, R.
1992 a A História no Brasil (1980-1989). Elementos para uma avaliação historiográfica, Ouro Preto, UFOP.

1992 b A História no Brasil (1980-1989). Série Dados, Ouro Preto, UFOP.

HARTMANN, T.
1984 Bibliografia Crítica da Etnologia Brasileira, Hannover, Komminsionsverlag Münstermann-Druck GMHB, vol. 3.

HEMMING, J.
1978 Red gold. The conquest of the brazilian indians, London, Macmillan.

LAPA, J. R. A.
1976 A História em questão, Petrópolis, Vozes.

1985 História e historiografia. Brasil pós 64, Rio de Janeiro, Paz e Terra.

MELIÀ, B.
1986 El Guaraní. Conquistado y reducido, Asunción, CEADUC.

REFF, D. T.
1992 "Contact shock in Northwestern New Spain, 1518-1764", in VERANO, J. W. & UBELAKER, D. H.(org.), Disease and demography in the Americas, Washington, Smithsonian Institution, pp. 265-76.

REPERTÓRIO SEMESTRAL, 1-8.
1994-1997 Ouro Preto, Centro Nacional de Referência Bibliográfica/Dep História/ICHS/UFOP.

VERANO, J. W.
1992 "Prehistoric disease and demography in the Andes", in VERANO, J. W. & UBELAKER, D. H.(org.), Disease and demography in the Americas, Washington, Smithsonian Institution, pp. 15-24.

Revista de Antropologia

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