quinta-feira, 1 de abril de 2010

Rubro Veio – o imaginário da restauração pernambucana


Evaldo Cabral de Mello. Rubro Veio – o imaginário da restauração pernambucana. 2a. ed., Rio de Janeiro, Topbooks, 1997, 47

Stélio Marras
Mestrando do Departamento de Antropologia – USP

"Não ando longe de pensar que, nas nossas sociedades, a História substitui a Mitologia e desempenha a mesma função, já que para as sociedades sem escrita e sem arquivos a Mitologia tem por finalidade assegurar, com um alto grau de certeza – a certeza completa é obviamente impossível –, que o futuro permanecerá fiel ao presente e ao passado."
(Claude Lévi-Strauss)1

Evaldo Cabral de Mello empreende esforço admirável para apresentar ao leitor o debate e as críticas que se foram seguindo ao longo dos decênios e séculos em torno das obras da crônica e da historiografia pernambucanas, estas que estão na base do imaginário nativista que as manipula, recorta, obscurece, enfatiza ao sabor dos tempos, à urgência que o tempo reclamava. Destarte, o autor investe-se do juízo de historiador assinalando a série de interpretações enviesadas da apropriação nativista da história.

O fato é que uma coisa apenas se realiza supondo-se a outra – ele não identificaria os meandros da decupagem nativista se não dominasse, de antemão, a matéria-bruta (digamos assim) do conhecimento de causa. Exatamente por isso afirma que as "entrelinhas (...) resultam tão ou mais eloqüentes que as linhas; o não-dito tanto ou mais que o dito"(:113). Rubro Veio dedica-se justamente à análise da apropriação da história pernambucana ao tempo em que, assim o revelando, revelará o negativo da imagem – esta última fase despende de uma química muito própria, que é a química do historiador. O ponto é que Evaldo Cabral de Mello quer surpreender o imaginário da restauração pernambucana acompanhando-o pari passu na diacronia. Esse trabalho que enreda a microscopia da minúcia historiográfica à macroscopia que identifica – sempre a partir do primeiro material – os elementos repetitivos; esse trabalho, caros colegas de profissão, deveria nortear-nos a todos.

Foram as crônicas luso-brasileiras que "versaram as guerras holandesas" as que serviram de fonte para a historiografia nativista. O autor de Rubro Veio aqui considera as finalidades políticas das obras; coloca a crônica ou o texto historiográfico contra o contexto em que foi produzido. Assim é que, do texto ao contexto e de volta ao texto2, entende que, por exemplo, o livro de Manoel Calado, o Lucideno, "respira a experiência direta dos acontecimentos"(:89) e, da mesma forma, compreende o "seqüestro" de que foi vítima o mesmo Lucideno – quer dizer, o livro não disse o que o nativismo extemporâneo esperava que dissesse, ou, o que no final dá no mesmo, disse o que não se esperava. Pois são as condições objetivas que regiam a difusão das obras, as forças em campo, como as facções eclesiásticas ou o poder de convencimento da narrativa junto aos interesses do Estado – isto que Cabral de Mello exemplarmente ensina enxergar.

Isto se vai percebendo logo nas primeiras das 473 páginas do livro. O corpo documental de que se serve e a argúcia com que articula tantas fontes – e tantas de natureza e procedência tão diversas – deverão impressionar qualquer jovem historiador. Para quem se interessa por Pernambuco colonial e imperial o autor é certamente imprescindível3.

Identidade

O imaginário da Restauração, dada a sua força e atuação, significou por conseguinte a "experiência fundadora da identidade provincial" (:20). Rubro Veio defende a tese de que, forjada a resistência anti-holandesa, um imaginário muito próprio, pernambucano, precipitou-se historicamente das lutas contra os invasores flamengos, da luta contra os mascates e depois contra o Estado reclamando independência. A designação de "nobreza da terra" substitui o que, 60 ou 70 anos antes na colônia, eram as "pessoas principais". Com isso, a idéia de "nobreza da terra" muito deve às guerras holandesas que forçaram uma consciência identitária, "fazendo vir à tona, com mais vigor do que seria o caso na rotina da vida colonial, as diferenças entre o local e o metropolitano"(:165). Mas, passado o século XVII e a urgência do momento contra os mascates, essa pretensão nobiliárquica haveria de ser desfigurada, ou melhor, deslegitimada no século seguinte, quando a oposição praieiros e "guabirus" reordenaria o imaginário, submeteria-o a novo recorte inflando-lhe algumas imagens em detrimento de outras.

Destarte, pela época da Independência, cujo inimigo brasileiro agora era Portugal, aparece uma "nostalgia do Brasil holandês", e "descobria-se a modernidade da experiência holandesa", esta que se via nos benefícios do "protestantismo, as vantagens do regime republicano e representativo de que gozava a metrópole, os proveitos da liberdade de comércio, que lhe haviam dado uma incomparável prosperidade, e a energia e a capacidade de iniciativa de uma raça que mantivera sua pureza étnica"(:382-3). Nassau é entronado.

Abre-se aqui ocasião para reflexões propriamente antropológicas. Senão, vejamos.

Esse acervo de símbolos, imagens e valores comuns, o imaginário da Restauração, emerge da memória social em momentos de confronto, e põe-se a reclamar uma identidade própria que, por sua vez, não é autodefinidora, quer dizer, não se erige no vazio, não fora de um contexto situacional. Aqui, é o estruturalismo da lingüística de F. Saussure e R. Jackobson, ou da etnologia de Lévi-Strauss, que melhor explica o fenômeno.

De fato, um elemento apenas ganha significado em contexto, seu sentido está conforme sua disposição relacional. O caso dos pernambucanos parece-me paradigmático. A situação de confronto e contraste, primeiro contra os batavos e depois contra os portugueses radicados na província (os mascates), define-se como uma situação de etnicidade. A idéia do que seja pernambucano, bem mostra Cabral de Mello, varia ao longo do tempo. Com efeito, varia conforme o contexto. É a rede significante, mutável historicamente, que confere sentido e significado ao elemento nela inserido – no caso, a idéia do que seja ser pernambucano.

Manuela Carneiro da Cunha delineia claramente os mecanismos que implicam no processo da etnicidade4. Esta é, pois, situacional, contrastiva, opositiva e política. Ora, vimos com Cabral de Mello o quão politicamente forjou-se o imaginário restaurador. Com isto, depreende-se que a identidade pernambucana muito derivou das situações de etnicidade a que os pernambucanos teriam se submetido ao longo das sucessivas situações conflitivas em que se viram enredados. Então, para o caso em tela, dir-se-á que as demandas étnicas postas pela situação constrastiva (contra os flamengos, contra os reinóis, contra os mazombos, contra os mascates, contra o Império) forneceram os tijolos, talvez os mais firmes, a construir a identidade pernambucana.

Realmente, o que se queria por "nobreza da terra" ligava-se ao colonizador aristocrático Duarte Coelho, cuja aristocracia, na já aludida prova real da história, é deveras suspeita. Mas este não é critério pertinente ao imaginário pois, a despeito da verdade histórica, "desde a segunda metade do século XVII, a nobreza dos colonos duartinos se constituíra num dos mais glosados tópicos do imaginário nativista"(:179). E esta verdade é inelutável. Mais do que isso, a crença nela gera a força motriz que empenha o espírito pernambucano na sua gesta – a restauração e o reclame de privilégios.

O popular e o estamental nos entremeios do imaginário restaurador

O autor adverte que fará uso do conceito de imaginário segundo a acepção de C. Castoriadis "no seu L’Institution imaginaire de la societé (Paris, 1975), para quem o imaginário não desempenha o papel de uma superestrutura ideológica, de um epifenômeno, mas corresponde a uma dimensão constitutiva e reprodutiva das próprias relações sociais, isto é, ao processo pelos qual os grupos sociais se instituem como tais". Ainda na formulação de Castoriadis, Cabral de Mello adota o entendimento de que "nesta expressão pode-se englobar uma ampla faixa de conteúdos ideológicos que inclui desde a invenção absoluta, como a falsificação histórica, até os simples deslocamentos de significado, mediante os quais o simbólico, linguagem do imaginário, vai criando uma sucessão interminável de conotações"(:17).

Contraponto da imaginação popular "que representou o período holandês com as cores do maravilhoso e até do sobrenatural"(:34) mas em confluência com a "memória estamental e corporativa" que, juntos numa só moldura, conformariam o imaginário restaurador de fato, o autor faz alusão logo no prefácio ao historiador italiano contemporâneo Carlo Ginzburg quando se refere à idéia da "circularidade cultural" entre o erudito e o popular, as "fecundas trocas subterrâneas" que afinal esvaziam a abordagem dicotômica entre alta e baixa cultura.

Quanto ao imaginário, idéia muitas vezes evasiva – eis um problema, parece-me, insuficientemente problematizado. O fato é que esse produto do conceitual antropológico, tão útil e fecundo, é também escorregadio quando dele se aproxima e quer-se apalpá-lo. Com efeito, o termo pode muito bem prestar-se a escamotear conflitos de interesse entre setores sociais que, não obstante, se reduzem semelhantes sob esse mesmo "guarda-chuva". Abaixo dele, pobres e ricos, brancos e pretos, livres e escravos se irmanam num mesmo compósito de imagens, fluido e sem limites bem definidos, desvanecendo assim divergências profundas entre eles. (Veja que bom instrumento para uso enviesado do conservadorismo – não inspirará cuidados?)

Quando se pensa em imaginário – seja o de uma nação (o imaginário brasileiro, por exemplo), seja o concernente ao de uma região (a pernambucana, no caso em questão) – supõe-se sua constituição afirmada em elementos de igualdade que amalgamam sob si o grande monocultor escravagista e o homem livre sem eira nem beira ou, para uma outra oposição, a burocracia pública e os clérigos. Seria o caso pernambucano?

Pois, quem são esses nativistas?

Eis o que me causou certo desassossego na leitura do livro. A quem serviu esse imaginário? Por quem foi elaborado? Não seria razoável afirmar que o "sentimento nativista" seja propriedade exclusiva da açucarocracia, da "nobreza da terra" ou da Igreja Católica contra-reformista. Ora, mas nessa sociedade de clivagens sociais tão marcadas – como já desde a sua formação luso-brasileira na colônia escravocrata –, é enorme o abismo que separa os interesses entre os poucos que instituem e detêm a ordem econômica e política e os que não se enquadram aí.

Por exemplo, qual a abrangência social do "tempo dos flamengos"? Ou por outra: será possível estender e homogeneizar a memória social desse tempo? "Não é possível avaliar a memória do ‘tempo dos flamengos’, em termos do conjunto da população pernambucana, mas cabe assinalar desde logo que certas camadas ou grupos sociais mantinham acesa a recordação da experiência (...)" (:33)

Cumpre saber em quais camadas se aloja preferencialmente essa memória. Não haverá de ser acusado de imaginoso ou conspiratório quem entender que o sentido forte e prático dessa memória atende aos interesses da "nobreza da terra", por suas pretensões nobiliárquicas, e aos das ordens religiosas, seu "desejo de fazer valer junto às autoridades régias os serviços, materiais e espirituais, por todos prestados à restauração"(:34). Veja que o autor está atento em anotar a apropriação política de cada um dos setores sociais que evocavam o sentimento nativista. Sem embargo, não há muito que relativizar ou dissimular: trata-se de um construto que serve diretamente a fins políticos socialmente localizados, imediatos e urgentes. Está em jogo o controle social da açucarocracia pernambucana que se vê ameaçada no século XVII pelos flamengos e no XIX pelos mascates; da parte das ordens religiosas, é a missão da contra-reforma que está em campo contra os protestantes holandeses, e o status de poder que angariaram na Colônia. Numa palavra, a restauração constituía a gesta da "nobreza da terra".

Um exemplo do próprio Cabral de Mello. O autor alude às festividades que alimentavam o episódio da restauração. Eram as "festas da restauração", como as criadas em torno de Nossa Senhora da Estância e Nossa Senhora dos Prazeres. A primeira logo sucumbiu no esquecimento. Já a última, de forte irradiação popular, afinal desvincula-se da origem para a qual foi criada – "à memória dos soldados que haviam tombado nos montes Guararapes em 1648 e 1649" – e torna-se "um culto marial à imagem da Virgem" (:52).

Ainda, o imaginário da restauração elegeu a "tetrarquia" que teria logrado vencer os holandeses; eram eles: "o reinol Vieira, o mazombo Vidal, o índio Camarão, e o negro Henrique Dias"(:196). Cada qual teria dado sua "contribuição dos grupos étnicos às lutas contra os flamengos e a unidade supra-racial que simultaneamente forjara a restauração e fora forjada por ela" (:53-4). Parece harmonioso e livre de preconceitos, mas não se tratava de uma situação exatamente confortável incluir no "panteão restaurador" a figura de um preto, de um índio ou, quiçá, de um mestiço – "o imaginário nativista não soube ou não quis entronizar um herói mestiço no ‘panteão restaurador’"(:223). Homens pardos e mestiços dos contingentes que lutaram contra os holandeses sequer eram reconhecidos como homens de cor, pois que tal atributo feriria o imaculado e aristocrático "panteão"5.

Pois então, como daí supor que o imaginário restaurador – certamente tendo seus maiores efeitos circunscritos nas esferas estritas da oligarquia escravagista do açúcar – pudesse valorizar o amálgama das raças? Quer dizer, Cabral de Mello destaca essa idéia como um topos recorrente no discurso nativista mas, tal discurso como tal imaginário, ambos se punham a serviço da açucarocracia. Parece-me, muito mais, que o elogio multirracial (talvez menos recorrente do que queira o autor) surge de forma muito tímida e certamente enviesada, já que se trata de recrutar homens – livres e escravos, negros e mestiços, todos desclassificados – a fim de somar contingente para os conflitos armados.

Esse imaginário restaurador, objeto da lente de Cabral de Mello, enche-se da "representação ideológica" não evidentemente da senzala, mas da casa-grande do açúcar. É o autor que nos diz da gestação do "discurso político do primeiro nativismo pernambucano, isto é, a representação ideológica elaborada pela açucarocracia"(:105); que: "Desde 1654, a bandeira da restauração tornara-se a bandeira das reivindicações categoriais"(:154).

Pergunto-me: que categoria legítima tinham os "homens livres" e escravos a reivindicar coisa qualquer? Na formação social brasileira – lembram-nos argutamente Maria S. de Carvalho Franco6 ou Laura de Mello e Souza7 –, esse contingente de "homens livres", descolados da estrutura colonial bipolar, não eram nem senhores nem escravos, mas "desclassificados". É certo que os movimentos insurretos populares da Colônia e do Império seriam originários dessa gente que vivia mais ou menos à margem da grande e monolítica estrutura política e econômica do Brasil. Menos certo, creio eu, é imaginá-los engajados de corpo e alma numa missão restauradora do Império luso.

Numa palavra, de tudo o que no livro escapa do tema e toca à "populaça", nada registra – não com convicção – um engajamento ideológico dessas fileiras à causa nativista8. A noção de "imaginário", segundo entendo, supõe certa agregação social para além de conflitos de classes ou categorias sociais. Bem, diga-se a verdade, Cabral de Mello apropriadamente focaliza um imaginário específico, "o imaginário restaurador", e com isso já restringe a amplitude social, pois que a restauração e mesmo o nativismo agendavam interesses certamente pouco entusiasmantes para os desclassificados. O problema está no silêncio do autor sobre o problema. Temo que a leitura um pouco menos atenta poderá entender que o imaginário nativista pernambucano arregimentou o "povo" para a sua causa. E isso, a despeito evidentemente das exceções, não convenceria facilmente.



Santo Antônio, santo mediador

Mas, perguntar-se-ia: o abismo que separa a casa-grande da senzala não encontraria nenhuma comunicação, nenhuma continuidade? Bem, não é isto o que tento dizer aqui, pois que, se o dissesse, estaria reafirmando a já tão mau propalada – e devidamente – dicotomia entre, por exemplo, o erudito e o popular, ou a alta e a baixa cultura, como se fossem esferas autônomas e incomunicáveis. Brilhantemente, Gilberto Freyre já cuidou de identificar o trânsito entre senhor e escravo – a bem da verdade, entre senhor e escrava e entre senhora e escravo, trânsito sexual que funda o mito (no sentido antropológico do termo) da harmoniosa miscigenação racial brasileira.

Entretanto, sem dissimular, o problema é assim mesmo escorregadio. Diga-se de uma vez: que uma e outra categoria social se viam juntas num mesmo universo simbólico, uma e outra (uma e outras, seria melhor) se faziam no espelho, é coisa que não deve levantar suspeita. O ponto é que, não por isso, elas estavam congregados nos mesmos interesses. Pois, se fosse assim, no limite, terminaríamos achando que o escravo afinal aceitava de bom grado sua posição – o que seria uma sandice. Com isso resta dizer que o abismo social que os separa – e a seus interesses – não exclui o universo simbólico que, se não os irmana, ao menos os põe juntos aos olhos teóricos.

Mas não seria pouco. Pensemos, com o texto de Cabral de Mello, algum ponto mediador entre "nobreza da terra" e "povo". E certamente aí a religiosidade deve cumprir papel decisivo. Com efeito, o autor notadamente observa a "preeminência no catolicismo popular" da figura de Santo Antônio. (:311). "Devido à popularidade de Santo Antônio no Pernambuco ante bellum, seu patrocínio da insurreição restauradora impôs-se naturalmente à sensibilidade religiosa da gente da terra"(:308).

Santo Antônio estava no centro do "imaginário religioso da restauração"(:320). Da popularidade que logrou angariar nos segmentos sociais além-casa-grande, passou logo à "santo militar", indo à frente nas batalhas com aparições e fantásticos milagres. Eis a comunicação que faltava. Pois a classe clerical, com seus padres e beatos, muito provavelmente mediou as esferas – terá sido a classe tradutora. Santo Antônio de fato parece ligar mundos rigorosamente distintos em seus interesses radicais.

Não se retira a veraz tese amalgamadora de Casa-grande e senzala de Gilberto Freyre, que este não é o caso (e as dimensões, de qualquer maneira, não se excluem). Dizendo melhor (mas quem melhor o diz é o próprio Gilberto Freyre), é no domínio sexual, mas tanto quanto no religioso, que mais nitidamente e, sobretudo mais intensamente, vê-se operar a miscigenação. O trato com o terreno estritamente político requer mediações próprias. Isto é o que resta assinalar aqui.

História e Mito

O imaginário da restauração expressa, nada menos, as formas nativistas de historiar o evento da invasão holandesa. Cabral de Mello considera o período de 1654 à 1854, período cronológico de que trata o livro, durante o qual vigorou a força da visão de mundo nativista e, "além do qual divisa-se a definitiva integração da província na ordem imperial e a agonia do nativismo como força política (...)"(:21).

Neste registro, ponho-me a pensar no imaginário nativista como ascensão e queda de um mito. E, por conseguinte, na história como material produzido para uso mítico. Lévi-Strauss trata exatamente desse uso no capítulo designado "História e dialética" n’O Pensamento Selvagem9. Hayden White, de sua vez, e no coro contemporâneo que se incumbiu de desqualificar o conhecimento moderno – identifica n’Os trópicos do discurso10 uma espécie de um impulso inato do historiador para a mitologização; afinal, todo e qualquer autor olha o passado segundo suas próprias concepções, essas eivadas de representações, juízos de valor e ideologias. Situação irremediável, nem ao menos se lhe é dado acesso ou controle disso, pois que tais determinações situar-se-iam no "inconsciente" (freudiano).

O ponto é: em que medida, rigorosamente, podemos falar da história como mito ou impulso para mitologização? Ao cabo, penso que o problema leva imediatamente à retomada do que conceitua-se mito. Pois, forjado para emoldurar a apreensão dos parâmetros indígenas, no contraponto das referências não-ocidentais, o termo retorna para seus criadores e os submete agora às suas realidades, que são realidades históricas. A imagines mundi do Ocidente se realiza na história?

Por ora, não devo avançar além das interrogações.

Notas marginais

Menos entusiasmante pareceu-me um certo economicismo mecânico que Cabral de Mello parece usar na interpretação – para citar pontualmente o episódio que me gerou o incômodo – da distinção entre Bahia e Pernambuco quanto à permeabilidade social que ambas províncias receberam os mascates. (Estaria o autor justamente caindo na armadilha fácil da sobrepujança do domínio econômico na interpretação da vida social?)

Porque, diz ele: "Para compreender por que na Bahia houve acomodação e em Pernambuco, conflito [referindo-se ao embate pernambucano da Guerra dos Mascates], seria necessário dispor de uma informação mais aprofundada sobre o que se passava ao nível dos mecanismos de apropriação do excedente da produção escravista"(:158). E ressente-se de que "Infelizmente o estudo da pesquisa histórica não proporciona uma descrição segura no tocante a duas variáveis essenciais, a evolução do preço dos escravos e do crédito no Recife e em Salvador na segunda metade do século XVII e começos do XVIII". A resposta ao problema viria de "séries estatísticas suficientemente completas e homogêneas"(:159). A despeito do equívoco, logo em seguida dá sinais de remissão: "Estas limitações que se antepõem ao conhecimento histórico, sanáveis umas, outras talvez insuperáveis, não devem inibir encetar a investigação ali onde ela pode dar resultados imediatos" e, entre outras possibilidades, cita aquilo a que "os historiadores costumam designar por ‘atitudes mentais’, ‘representações coletivas’ e ‘imaginário social’. Mas, vã desculpa, torna ao porto seguro de sua seara: "Em todo caso, a comparação dos modelos baiano e pernambucano indica que uma teoria do conflito entre a grande lavoura e o comércio no Brasil colonial deve partir do reconhecimento da pluralidade de situações que prevaleceram nos principais centros de produção escravista"(:159).

Pergunto-me por que se deve necessariamente partir dessa relação do "centro de produção escravista" e o comércio colonial para interpretar o aceite do mascate numa e noutra capitania? Por que esta variável teria assim tanto poder de determinação? Aqui, já não estamos tocando no central do livro – trata-se de uma observação de margem –, mas é inevitável pôr em suspensão os predicados desse paradigma, até já suficientemente combatido, esse o de atribuir os efeitos sociais a causas estritamente de ordem econômica, "sobreposições" diretas que, no mais das vezes, muito dissimulam e pouco esclarecem.

Outro ponto levantado por Cabral de Mello na altura da página 326 interrompe-me a leitura devota. Sem escolha, devo aplicar uma ligeiríssima – mas tão desconfortável – aferroada no autor – entenda-se que é o que me cabe por dever de "convicção" (mas o faço para de uma vez dar fim ao tom azedo já começado). Pois bem, ali, meio sorrateiramente, Cabral de Mello distingue a historiografia contra o "escrúpulo etnográfico" de um "certo relativismo, que não afeta, contudo, a convicção última do historiador de que é possível separar o natural e o sobrenatural, a verdade objetiva da ganga do extraterreno". Bem, o protesto particularmente antropológico contra tal entendimento bem podia iniciar seu discurso repetindo a corretíssima sentença de Clifford Geertz segundo a qual o imaginário é tão real quanto o próprio real. Mas, de minha parte, apenas gostaria de ilustrar o oposto com o próprio – farto e instigante – material de que faz uso o autor no Rubro Veio

O exemplo é com Santo Antônio. Se ele de fato não teria realmente aparecido à frente do exército restaurador, ele contudo – isto a seguir os relatos que o autor colheu e vigorosamente ordenou – estava muito vivo e real na mente dos que julgaram tê-lo visto. E se o santo teve o papel que Cabral de Mello nos faz acreditar ter tido, então será mais do que justo deduzir que Santo Antônio cumpriu missão fundamental a inflamar o ânimo e a coragem daqueles que se embrenharam na mata contra os batavos. Quer dizer, o "sobrenatural" acha-se aqui inextricavelmente vinculado ao "natural".

Mas, dito isto, a crítica resigna-se e diminui-se perante o livro que é, afinal, uma dessas obras raras a cumprir a dupla finalidade de pôr-se acessível à leitura leiga ao tempo em que ensina – cá para os de dentro – o que deve ser uma pesquisa laboriosa, extremamente bem fundada e, como se fosse pouco, muito bem redigida.

Notas

1 Mito e significado, Lisboa, Edições 70, 1981, :62-3.

2 Para usar da fórmula de Robert Darnton, professor de História em Princeton (EUA) que se utiliza de métodos da Antropologia para a sua "história de tendência etnográfica". Assim escreve na apresentação de O grande massacre de gatos (Rio de Janeiro, Graal, 1986, :17): "O método antropológico da História tem um rigor próprio, mesmo quando possa parecer, a um cientista social tarimbado, suspeitosamente próximo da literatura. Começa com a premissa de que a expressão individual ocorre dentro de uma estrutura fornecida por nossa cultura. Ao historiador, portanto, deveria ser possível descobrir a dimensão social do pensamento e extrair a significação de documentos, passando do texto ao contexto e voltando ao primeiro, até abrir caminho através de um universo mental estranho."

3 Note-se pelas suas publicações: Olinda restaurada – Guerra e açucar no Nordeste, 1630-1654 (1975), O nome e o sangue – Uma fraude genealógica no Pernambuco colonial (1989), A fronda dos mazombos (1995).

4 Aluna e discípula do mentor estruturalista C. Lévi-Strauss, dialoga com autores como M. Weber, F. Barth e G. Balandier, entre outros, e assume um ponto de vista teórico sobre a temática etnicidade/identidade. Cf. Negros estrangeiros, São Paulo, Brasiliense, 1985.

5 Henrique Dias, negro, tinha posição inferior no panteão, como Camarão, este de raízes indígenas. Nas palavras de Loreto Couto (Desagravos do Brasil e glórias de pernambuco), cronista do séc. XVIII e fonte de primeira ordem para o imaginário da restauração, Henrique Dias reunia lá seus méritos pois ainda "que sendo preto soube com o esforço do ânimo e maravilhosa constância emendar o defeito da natureza" (:225).

6 Homens livres na ordem escravocrata, São Paulo, IEB, 1969.

7 Os desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII, Rio de Janeiro, Graal, 1982.

8 O viajante Varnhagen, extemporâneo, escreve na segunda metade do séc. XIX que as guerras holandesas teriam prodigiosamente feito aproximar classes frente ao inimigo comum, como o senhor ao escravo ou reinóis e nativos – anota Cabral de Mello à página 367. Não sei de onde o viajante tirou a idéia, se leu algum documento hoje inacessível ou se andou repetindo o que porventura ouvira, mas parece muito mais uma conjectura teórica do que uma assertiva fundada em investigação.

9 Campinas, São Paulo, Papirus, 1989.

10 São Paulo, Edusp, 1996.

Revista de Antropologia

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