sexta-feira, 23 de abril de 2010

Orfeu e Poder. Movimento Negro no Rio e São Paulo


Osmundo de Araújo Pinho

Corações e Mentes do Movimento Negro Brasileiro*

MICHAEL HANCHARD, Orfeu e Poder. Movimento Negro no Rio e São Paulo. Rio de Janeiro, EdUERJ/UCAM-Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001, 243 p.

O Centro de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Candido Mendes em parceria com a Editora da UERJ disponibiliza, através do Projeto Traduções, o acesso, para o público brasileiro, ao polêmico e vigoroso livro, publicado originalmente em 1994,1 do cientista político african-american Michael Hanchard. O autor entrevistou, entre 1988 e 1989, 31 ativistas no Rio de Janeiro - dentre estes Joselina da Silva, Abdias do Nascimento e Benedita da Silva - e 28 ativistas em São Paulo - dentre estes João Batista de Jesus Félix, Sueli Carneiro e Hamilton Cardoso. O livro principia pela questão: por que não existiu, no Brasil, nenhum movimento negro de massas depois da Segunda Guerra Mundial, tal como tem existido na África, no Caribe ou nos Estados Unidos? O autor argumenta que o processo de construção de determinada hegemonia racial tem se materializado como a impossibilidade de identificação racial para os afro-brasileiros, o que impede a mobilização de massas.

Esta forma de hegemonia racial promove a discriminação racial ao mesmo tempo em que nega sua existência, dá suporte à reprodução da desigualdade entre brancos e negros, assim como promove a falsa premissa de igualdade racial. Sua conseqüência principal é a incapacidade dos ativistas negros de mobilizar os sujeitos em bases raciais, uma incapacidade que existe em função da dificuldade de se reconhecer, no cotidiano, padrões de violência e exclusão como sendo racialmente específicos. Estas conseqüências levam os militantes ao paradoxo de terem de subverter, através de procedimentos contra-hegemônicos, este processo sem serem eles próprios envolvidos pelas ambigüidades e contradições da ideologia dominante.

O termo "raça" refere-se, neste livro, ao uso de diferenças fenotípicas como símbolos de distinção social. Significados raciais são, nesse sentido, culturalmente e não biologicamente construídos, distinguindo-se, a partir da inserção nestas categorias, lugares sociais dominantes e dominados. "Raça" é, assim, síntese de diferenças fenotípicas, mas também de status, de classe, de diferenças, em suma, políticas. De modo que podemos dizer que relações de raça são relações de poder. A partir deste ambiente, constituído por "relações raciais", modos de "consciência racial" emergem. Tal consciência é definida como o resultado dialético do antagonismo entre grupos sociais justamente definidos como raças no curso de um processo histórico.

Hegemonia, em termos gramscianos, pode ser definida como a dominação exercida através de meios ideológicos e não apenas através da força bruta. Classes dominantes universalizam seus interesses através de uma visão de mundo forjada de acordo com suas aspirações. Esta visão é difundida como universal e comum a todos os grupos sociais, inclusive os econômica, política e socialmente subordinados. A questão que então se coloca para grupos subalternos é como forjar uma contra-hegemonia que sirva como instrumento de combate no plano ideológico e que desfaça a ilusão de consenso e comunidade de interesses produzida pela hegemonia (ideologia dominante). Sendo assim, para Gramsci, práticas culturais (simbólicas) são o aspecto central da luta política. Contudo, argumenta Hanchard, práticas culturalistas têm sido um impedimento para o avanço da luta política negra no Brasil na medida em que significam uma reprodução de tendências culturalistas presentes na ideologia da democracia racial existente. Culturalismo é definido como a equação entre práticas culturais e a negação (ocultação) dos aspectos normativos e políticos do processo cultural tal como ele se desenvolve habitualmente. Em políticas culturalistas, práticas culturais operam como um fim em si mesmo, símbolos e artefatos afro-brasileiros e afro-diaspóricos tornam-se reificados (são tornados coisas) e commodified (são tornados mercadorias). Cultura torna-se um repertório inerte e não algo enraizado em processos culturais dinâmicos e em ambientes sociais desiguais. Contra-hegemonia é, por fim, o processo por meio do qual significados dominantes são solapados, perdendo seu sentido e valor, e novos significados emergem, a partir desta luta, com valores próprios.

O mito do excepcionalismo racial brasileiro tem conduzido, por outro lado, à percepção de que o caso brasileiro de relações raciais é único no mundo. Este idéia está bastante desenvolvida em Gilberto Freyre, mas também em diversos autores estrangeiros. Este mito implica o reconhecimento de uma variante específica para a escravidão brasileira, mais branda em relação a outros países. O autor "desmascara" esse excepcionalismo demonstrando que existiu, também aqui, a institucionalização de práticas racialmente discriminatórias no que diz respeito a imigração, educação e políticas públicas, assim como toda a violência intrínseca ao regime do trabalho forçado. A partir de dados de sua pesquisa empírica, Hanchard argumenta que discursos, tanto populares, como de elite, conjugam a idéia de harmonia racial ao suposto excepcionalismo. A principal conseqüência disso é que o cidadão comum não consegue identificar, no Brasil, problemas de raça, produzindo-se uma ausência de reconhecimento de que problemas de violência, discriminação e desigualdade de base racial existem de fato entre nós. Os elementos-chave para a não-politização e o enfraquecimento da consciência racial no Brasil seriam, para Hanchard: a) a assunção de que, devido à democracia racial, não existe discriminação de raça no Brasil, ao menos não na intensidade de outros países; b) a contínua reprodução e disseminação de estereótipos negativos com relação aos negros e de imagens positivas associadas aos brancos, o que resulta em dificuldades para a ação coletiva organizada; c) coerção e ameaças para os negros que pretendem ir de encontro a padrões assimétricos de relações raciais.

Hanchard analisa as tentativas históricas de organização política dos negros no Brasil e chama a atenção para as transições na ênfase ideológica e na ação política dos diversos movimentos negros históricos. O autor procura destacar a transição de movimentos integrativos ou assimilacionistas, característicos da primeira metade do século XX, para o afro-marxismo contemporâneo, emergente a partir dos anos 70, definido como tendo desenvolvido uma crítica global à sociedade e não mais mobilizado por uma demanda meramente reinvidicativa. A questão cultural foi decisiva neste período formativo do moderno movimento negro e parece central na crítica que Hanchard dirige a estes grupos. Expressões como black, blackness e negritude passaram a dominar o vocabulário da época. Grande parte dos grupos concentrou sua ação simbólica sobre raízes africanas, baseando sua prática a partir daí, de modo que a negritude passou a ser a pedra fundamental para a definição de determinado sujeito político negro. Este processo associou-se à onda black soul na ênfase para a aparência, os cabelos, etc.

Externamente, as maiores dificuldades para os ativistas, no sentido de construírem um movimento de massas, foram a ausência de recursos, a hegemonia racial e o culturalismo prevalecente nos discursos dominantes sobre raça. Este último ganha papel de destaque na abordagem do autor. A "fetichização" de elementos culturais, tão marcante na produção de vários intelectuais que trataram da problemática racial no Brasil, transferiu-se para o conjunto da ideologia nacional e colonizou a consciência nacional/racial brasileira, de modo que certa economia política da representação racial (negra) restou profundamente contaminada pela perspectiva exotizante e alegórica dos Estudos Afro-Brasileiros, o pano de fundo político-cultural para a auto-representação negra e suas transformações preservaria esse fundo culturalizante, assim é que os elementos mais assimilados pelos novos agentes sociais afrodescendentes, a partir da expressão cultural negra internacional, foram os mais eminentemente culturais. Dimensões práticas como boicotes, piquetes, desobediência civil e a luta armada foram ignorados. Mais importante, não teriam existido versões brasileiras de boicotes, piquetes, desobediência civil ou luta armada.

Práticas culturais não mobilizam as pessoas por si próprias, devem ser parte de um processo mais amplo, ao mesmo tempo material e ideológico, a fim de ter coerência. Isto pode explicar o paradoxo da nacionalização de uma retórica transnacional e a inabilidade de nacionalizar uma resistência organizada. Enquanto o Movimento encontra espaço para mobilizar discursos de negritude, pan-africanismo, black power, etc., não encontra espaço para nacionalizar formas de resistência popular que estes movimentos-discursos produziram em seus contextos de origem. Estes discursos ou referências funcionam então mais como "mito" do que como história. Traços do passado podem ser glorificados ou caricaturados sem que se altere seu sentido, significados do passado tornam-se, entretanto, politicamente relevantes apenas onde intervêm em debates e práticas enraizados no presente. A historiografia "subalterna" teria, nesse sentido, efeito muito limitado no Brasil.

Seria um erro considerar que uma política afro-diaspórica conduzirá automaticamente à consciência racial; é preciso historicizar o presente ou seja, documentar as formas de desigualdade racial que operam no plano macro e no cotidiano. Um política de coalizão, a historicização de desigualdades recorrentes e a emergência de uma consciência de massas definiria o que poderíamos chamar de tarefas de um grupo social emergente cujo papel é comandar não apenas a economia, mas os contornos éticos e políticos da sociedade. Este grupo emergente é o que Gramsci chama de Bloco Histórico, uma unidade de estrutura e superestrutura enraizada em um processo dialético. A tarefa do Bloco Histórico é liderar a consolidação de elementos culturais, políticos e econômicos no interior de uma aliança contra-hegemônica. Este é um processo no qual se criam alianças entre diferentes grupos de caráter ou ação cultural, econômica e política.

A emergência de consciência por intermédio de leituras e debates públicos não deveria substituir o desenvolvimento de instituições com o propósito de organizar as pessoas. Assim como o Movimento mudou, no curso destas últimas décadas, corações e mentes de tantos brasileiros, deve também mudar seu próprio coração e a sua mente. Se pretende expandir suas bases deveria situar-se fortemente no debate público nacional. Nesse sentido, diz Hanchard, deve tornar-se menos diaspórico e mais nacional, construindo uma alternativa nacional concreta e enraizada em instituições fortes. Para isso, uma política de coalizões e alianças é fundamental. Alianças entre movimentos contraditórios não são, em si, contraditórias e seria uma prova de maturidade e responsabilidade histórica a criação de uma consciência entre os ativistas da necessidade de buscar-se coalizões institucionais.

O autor aponta, por fim, duas contradições para a formação de um Bloco Histórico no Brasil: 1) diferentes grupos raciais subordinados no Brasil entram em relações de produção que são fundamentalmente diferentes; afro-brasileiros como membros da classe trabalhadora e da pequena burguesia possuem modos heterogêneos de consciência. Ora, a consciência emerge na medida em que se prevêem desafios e ameaças similares para cada grupo considerado, se a homogeneidade existisse apenas no nível da consciência ou das representações voluntarísticas seria apenas um fenômeno transitório, 2) brancos de esquerda ou de direita compartilham a mesma matriz cultural, de modo que perspectivas da política afro-brasileira problematizam a oposição clássica direita e esquerda e enfraquecem, as possibilidades de aliança.

O autor demonstrou coragem e interesse genuínos pelo seu tema de estudo, envolvendo-se em polêmicas radiantes após a publicação de seu livro em inglês.2 Como já foi apontado várias vezes, o ponto de vista do autor parece preso a uma determinada inflexão de abordagem que procura estabelecer um plano de comparação um tanto quanto normativo. Por outro lado, entretanto, Hanchard parece acertar na mosca quando revela quão determinados pelas próprias injunções que pretendem desmontar estão setores expressivos do Movimento Negro brasileiro. Eu diria mesmo que certa posicionalidade afro-brasileira, política e crítica, manifestada, por exemplo, em iniciativas cada vez mais amparadas por parceria governamentais, parece seduzida por um culturalismo enraizado e um tanto quanto mistificante. A ênfase na cultura, definida como "a cultura negra", repertório de itens, valores e práticas ainda é amplamente dominante. Ora, como Hanchard coloca, não podemos esquecer que este cânone de cultura foi construído em grande parte como depósito de lutas e embates político-culturais no mais das vezes capitaneados por intelectuais e outros agentes sociais envolvidos na imobilização do negro como protagonista político e na mumificação de suas práticas culturais como "sobrevivências africanas". Certamente não devemos imaginar que a ação política pela emancipação racial no Brasil deva se orientar preferencialmente pelo ocorrido em contextos nacionais distintos. Parece claro, entretanto, que chegou o tempo de uma mudança qualitativa no discurso e na ação da política racial brasileira, exatamente neste momento em que parecemos nos aproximar de uma encruzilhada, sinalizada pela Conferência em Durban e pela discussão generalizada sobre políticas de ação afirmativa. Sem dúvida o livro de Hanchard oferece contribuição valiosa para essa reavaliação e é nesse sentido que o Projeto Traduções, do Centro de Estudos Afro-Brasileiros, oferece este livro ao público leitor mais amplo no Brasil.

Notas

1. Orpheus and Power. The Movimento Negro of Rio de Janeiro and São Paulo, Brazil, 1945-1988. Princeton, Princeton University Press, 1994, 203 p.

2. Cf. p. ex.: Luiza Bairros,, "Orfeu e Poder: Uma Perspectiva Afro-Americana sobre a Política Racial no Brasil", Afro-Ásia, nº 17, 1996, pp. 173-186; Peter Fry, "O que a Cinderela Negra tem a dizer sobre a 'Política Racial' no Brasil", Revista USP, nº 28, 1995, pp. 122-135; Michael Hanchard, "Cinderela Negra? Raça e Esfera Pública no Brasil", Estudos Afro-Asiáticos, nº 30, 1996, pp. 41-60; Michael Hanchard, "Resposta a Luiza Bairros", Afro-Ásia, nº 18, 1996, pp. 227-234.


*Uma versão anterior desta resenha foi preparada em 2000 como texto para discussão em seminário do Grupo de Estudos Relações Raciais no Brasil e no Mundo, formado por estudantes e militantes afrodescendentes da Unicamp. Gostaria, neste sentido, de agradecer a participação de todos os envolvidos, em especial a Magali Mendes e Robson Luís Machado Martins.

Centro de Estudos Afro-Asiáticos

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