quinta-feira, 1 de abril de 2010

O som e o sentido. Uma outra história das músicas


José Miguel Wisnik. O som e o sentido. Uma outra história das músicas. São Paulo, Companhia das Letras, 1999, 285 pp.

Hélio Ziskind. O som e o sent. Uma trilha para O som e o sentido. CD integrante do livro.

Rose Satiko Gitirana Hikiji
Doutoranda do Departamento de Antropologia — USP


Wisnik apresenta O som e o sentido. Uma outra história das músicas como "um livro para músicos e não-músicos", que "fala do uso humano do som e da história desse uso". São acordes iniciais que seduzem o ouvido antropológico a adentrar a obra. Cabe alertar que para os "não-músicos" a audição não será sempre melódica; às vezes, bastante ruidosa. Porém, a reedição do livro, lançado inicialmente em 1989, é ótima oportunidade para o encontro com as "vozes, silêncios, barulhos, acordes, tocatas e fugas" de diferentes sociedades e tempos.

O som e o sentido é "uma outra história" porque não se restringe a uma lista e periodização de estilos e autores. É uma outra história "das músicas", abrange não somente a música tonal européia, mas as músicas de povos africanos, indianos, orientais e indígenas, entre outros, além da música ocidental de vanguarda do século XX.

No primeiro capítulo "Som, ruído e silêncio", Wisnik desmonta o som em seus elementos constitutivos. Esclarece a física (onda sonora, freqüência) e introduz a antropologia do som: aproxima música e corpo, pulsação musical e pulso sangüíneo, respiração. Lembra que as categorias de andamento (andante, largo, allegro, vivace) são fundamentadas em disposições físicas e psicológicas; corpo e música estariam relacionados desde as partículas mínimas do som (o pulso) aos exercícios interpretativos na execução musical. "O feto cresce no útero ao som do coração da mãe", "o ritmo está na base de todas as percepções", nota. Dessas imbricações se entende o "grande poder de atuação [da música] sobre o corpo e a mente, sobre a consciência e o inconsciente, numa espécie de eficácia simbólica" (: 30, grifo do autor em referência ao conceito de Lévi-Strauss].

Antropologia do ruído

O antropólogo Anthony Seeger, que conheceu os Suyá a partir de sua música, mostra como esta é fundamental para a organização do grupo, tanto para a construção como para a interpretação de processos sociais. Segundo o autor, os Suyá cantam porque através do cantar eles podem restaurar e criar ordem em seu mundo. Cantar é para o grupo um modo essencial de articular suas experiências de vida com os processos sociais (Seeger, 1987).

Lévi-Strauss já ressaltara a oposição entre ruído-natureza e música-cultura: "a natureza produz ruídos, e não sons musicais, que são monopólio da cultura enquanto criadora dos instrumentos e do canto" (1991: 30). Tal ordenação do universo, em oposição ao caos, proporcionada pelo fazer musical é tematizada por Wisnik :

Cantar em conjunto, achar os intervalos musicais que falem como linguagem, afinar as vozes significa entrar em acordo profundo e não visível sobre a intimidade da matéria, produzindo ritualmente, contra todo o ruído do mundo, um som constante (um único som musical afinado diminui o grau de incerteza no universo, porque insemina nele um princípio de ordem). (: 27)

Wisnik lembra ainda que o som é impalpável e invisível, características que permitem a atribuição das propriedades do espírito à música: o som torna-se "o elo comunicante do mundo material com o espiritual e invisível" (: 28). Daí o uso mágico do som em diversas culturas.

Para Wisnik, a música constitui-se no "jogo entre som e ruído". Por isso propõe uma "antropologia do ruído". Ruído: "o som do mundo", "freqüências irregulares e caóticas com as quais a música trabalha para extrair-lhes uma ordenação". Um único som afinado, música: ordenação do mundo, acordo que projeta o fundamento do universo social.

É justamente por alojar a "luta cósmica e caótica entre som e ruído" que a música pode ser vivida como experiência do sagrado nas sociedades pré-capitalistas que praticam (ou praticaram) música modal (Wisnik inclui entre essas todas as tradições orientais e, dentre as ocidentais, a música grega antiga, o canto gregoriano e as músicas dos povos da Europa). O autor mostra como essa luta é vivida como rito sacrificial: nos mitos e instrumentos musicais primitivos (feitos de ossos, peles e chifres) é construída a trama simbólica que une sacrifício, vida e morte (e aqui retoma a análise de Lévi-Strauss — em O cru e o cozido — do mito arecuná que atribui ao sacrifício a origem do som e da cor).

A antropologia do ruído, proposta por Wisnik, percorre o trajeto que passa pelo canto gregoriano (que, negando o pulso e o colorido dos timbres, afasta o ruído), pela música tonal moderna (por exemplo, a música sinfônica que evita a percussão/ruído) e a música do século XX, que aceita o barulho/ruído como integrante da linguagem musical (desde Stravinski, na Sagração da Primavera a John Cage, com seus "silêncio/ruídos encadeados").

Partindo da desconstrução do que se chama em teoria musical "escala" — "as escalas são paradigmas construídos artificialmente pelas culturas" (: 71) —, Wisnik propõe uma viagem ao mundo modal, ou seja, as tradições musicais de povos africanos, indianos, chineses, japoneses, árabes, indonésios ou indígenas das Américas. Em tais tradições, a música é marcada pela circularidade, repetição e por seu uso ritual. No mundo modal — que "não se baseia na ordem da representação, mas na ordem do sacrifício" — a escala não é apenas metáfora social, mas "instrumento ritual de manutenção da ordem contra as contradições que a dissolveriam" (: 77). O exemplo chinês revela a estreita relação entre uma escala musical e um modelo cosmogônico e político (a escala pentatônica chinesa corresponde, segundo Wisnik, ao jogo da ordem social, cujo equilíbrio ela reproduz e contribui para manter).

Também é analisada pelo autor a relação entre tempo social e tempo musical: no mundo modal, a produção comunal do tempo faria a "música parecer monótona" àquele que está fora dela. A circularidade musical característica da música modal estaria diretamente relacionada ao modo de produção do tempo, que por sua vez é intimamente ligado à forma de propriedade da terra.

Essa correlação estreita entre música e sociedade é dissecada por Wisnik com o "caso do trítono". Como mostra o autor, a estabilidade presente na escala pentatônica (a escala de cinco notas — fá, sol, lá, dó e ré) será balançada com a introdução das notas si e mi (que constituirão, somadas às anteriores, a escala diatônica). Esse acréscimo provoca o surgimento de dois intervalos de semitom e um intervalo de três tons (o trítono), que será o responsável por um verdadeiro problema moral e metafísico (além de musical) na Idade Média. Vale a pena acompanhar o caminho percorrido pelo autor para compreender como uma simples nota — o si, no caso — pôde causar tamanha confusão, ao ponto de ter seu nome proibido: o si, inominável, é o próprio diabolus in musica (: 83).

Serão vários os territórios musicais do mundo modal explorados por Wisnik. Interessará sem dúvida aos antropólogos o caso balinês, no qual a conhecida característica não acumulativa dessa sociedade reflete-se em uma música que evita a evolução, o acúmulo e a cisão, através da repetição.

Por fim, a proximidade da música modal com a música contemporânea, apontada no fim do capítulo, serve como reflexão anti-evolucionista e sugestiva da sincronicidade do momento atual.

Wisnik apresenta a passagem do mundo modal ao tonal como o momento da resolução do problema do trítono e também da transição do feudalismo ao capitalismo. O campo tonal corresponde ao que conhecemos como a música "erudita" européia, classificada em períodos como barroco, clássico ou romântico. Situa-se entre o desenvolvimento da polifonia medieval e o atonalismo. Diferencia-se da música modal quanto ao pulso (que é constante, métrico, em oposição aos contratempos do campo modal) e à utilização da tônica, que abandona a posição fixa e ganha movimento, através de modulações.

Compreender a "resolução do trítono" significa percorrer o desenvolvimento da harmonia, a "dimensão `vertical' no seio das múltiplas horizontalidades melódicas" (:118). Tal trajeto será efetuado partindo-se da música polifônica do século IX e chegando a Bach, dez séculos depois. Talvez aqui esteja um dos terrenos mais árduos para os "não-músicos". No entanto, o esforço para percorrê-lo ilumina a compreensão musical de forma única, pouco difundida inclusive entre estudantes de música, que dominam a linguagem (sabem até solfejar o trítono) sem conhecer sua história e implicações.

Para antropólogos, surge como um oásis, depois da dura travessia pelo "pacto" com o inominável, o diálogo que Wisnik trava com Lévi-Strauss, "o antropólogo que queria ser músico" (:168). A aproximação entre música tonal e narrativa mítica, efetuada por Lévi-Strauss em Mitológicas, O cru e o cozido e O homem nu, será retomada por Wisnik. O autor mostra então como a música tonal perde o caráter ritual intrínseco à música modal, mas "`encarna' o mito na estrutura sonora" (:163). O mito "cabe" na música tonal graças ao seu caráter "narrativo". Vale seguir Wisnik para compreender a bela metáfora que usa para definir a obra de Lévi-Strauss: uma "grande fuga, em que a música e o mito contracantam, contemplados pela linguagem" (:169).

Em seguida à reflexão sobre a música tonal, que também percorre as obras de Beethoven, Chopin, Mahler e Wagner, Wisnik mergulha na música do século XX, mais especificamente, no sistema dodecafônico desenvolvido por Schoenberg em 1923. Para o autor, essa é a antítese do sistema tonal, uma vez que rejeita seu "princípio", o movimento cadencial de tensão e repouso.

A música dodecafônica caracteriza-se pela construção de séries de doze sons (os doze semitons da escala cromática) de forma que se retarde o maior tempo possível o retorno de um som já escutado, conforme a define seu criador. Assim, foge da repetição e dificulta a memorização. "Não se presta à escuta linear, melódica, temática" (:174). Esse sistema evita ainda os intervalos estruturados da ordem tonal. Com isso, o trítono (ele mesmo!) ocupa um lugar central no dodecafonismo.

Também o ruído ganha espaço na música de vanguarda da metade do século: ele explode em clusters (como pancadas no piano), glissandi (deslizamentos do tom sem subdivisão cromática), músicas aleatórias etc.

A outra vertente musical que marca a segunda metade do século é o minimalismo que, ao contrário do dodecafonismo, elege como mote a repetição exaustiva. Tal oposição será abordada em termos sociológicos pelo autor. Enquanto o dodecafonismo corresponderia à "experiência urbano-industrial da simultaneidade, da fragmentação e da montagem", o minimalismo representaria o "caráter serial-repetitivo do mundo pós-industrial informatizado", caracterizado pela repetição em larga escala, pelo simulacro (:175).

A música popular se faz ouvir no último capítulo do livro. Por um lado, Wisnik aponta os caminhos opostos que percorrem hoje a música de concerto e a de mercado: a primeira nega a escuta linear, a repetição e o pulso rítmico; a segunda os afirma. Por outro lado, o autor nota que as "escutas atuais são múltiplas". E na multiplicidade encontra possibilidades, que se desenvolvem diferentemente conforme a estação sintonizada. Da música rítmica à canção, da música negra norte-americana ao rock. Sons entre "o concerto e o desconcerto do mundo".

Os sentidos que vem dos sons

Acompanha o livro o CD O som e o sint, de Hélio Ziskind. Longe de um "anexo", a obra musical dialoga intensamente com a escrita. Primeiramente, ao ilustrar com exemplos sonoros várias discussões e terminologias musicais empregadas por Wisnik (cabe notar que o faz sem cair no didatismo, constituindo-se como um segundo discurso, que certamente pode ser lido/ouvido independentemente). Mas, além disso, a "trilha" composta para o livro transporta o ouvinte/leitor para os territórios sonoros descritos por Wisnik. E o faz por meio de associações aparentemente insólitas — mas impregnadas de sentidos — entre as músicas modais africanas ou chinesas e a de John Cage, em uma viagem através de uma sonata de Beethoven, com paradas em estações bachianas e wagnerianas, ou ainda aproximando batuque e "xerox", pulsos contemporâneos.

O uso do sampler e de sequenciadores — o sint — explora as possibilidades da montagem (de fragmentos de sons, palavras, frases musicais) no arranjo, com a finalidade da análise musical. Mas, como nos loops criados no CD, a música vira análise que vira música... E a música atua sobre "corpo e mente, consciente e inconsciente". Tanto sentido.

Bibliografia

LÉVI-STRAUSS, C.
1991 O cru e o cozido, São Paulo, Brasiliense.

SEEGER, A.
1987 Why Suyá sing. A musical anthropology of an Amazonian people, Cambrige, Cambridge University Press.

Revista de Antropologia

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