quinta-feira, 1 de abril de 2010

O Rio de Janeiro dos viajantes.(o olhar britânico 1800-1850)


Martins, Luciana de Lima. O Rio de Janeiro dos viajantes.(o olhar britânico 1800-1850), Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001, 207 pp.

Miriam Lifchitz Moreira Leite
Professora Aposentada do Departamento de História USP
Assessora do Laboratório de Imagem e Som em Antropologia Visual USP


A década de 1990 contou com enorme safra de trabalhos diversificados sobre os viajantes do século XIX, já considerados como cientistas ou artistas de uma fase das Ciências Físicas e Naturais, implantadas internacionalmente, com propostas de conhecimento dos continentes e oceanos do globo. Tratados individualmente, como autores e pintores, já contribuíam assistematicamente para o conhecimento histórico ou geográfico das regiões percorridas. Considerados coletivamente, como estudiosos de regiões menos conhecidas do globo, começaram a ser analisados política, econômica e socialmente. Passaram a ser fontes de conhecimento da perspectiva de suas regiões de origem e como instrumentos de colonização e exploração dos países visitados.

Quase sempre as expedições de reconhecimento de novas áreas do globo incluíam cientistas e artistas, profissionais e diletantes, mesmo porque é durante o século XIX que ciência e arte passam a se distinguir, e as ciências naturais iniciam sua profissionalização e especialização. Muitos dos trabalhos realizados foram feitos por amadores e a História Natural dos naturalistas da primeira metade do século XIX incluía toda a Natureza ¾ desde Astronomia, Climatologia, Hidrografia, Botânica, Zoologia, Geologia, sem deixar de lado o estudo do Homem encontrado, costumes, línguas e recursos de sobrevivência.

A presença de pintores e desenhistas nas expedições era indispensável, dadas as dificuldades de descrever e nomear homens, plantas e animais desconhecidos. As palavras dos viajantes nem sempre correspondiam ao vocabulário nativo do país visitado e as espécies encontradas tinham de ser reproduzidas idênticas e em todos os mínimos detalhes a fim de que fosse possível a compreensão do que nunca tinha sido visto. Procurava-se fazer uma cópia, o mais exata possível, do que o pintor aprendia a enxergar.

Essas reproduções sofriam, porém, deformações feitas pelos gravadores, em madeira ou metal, a fim de permitir a inclusão das ilustrações nos livros de viagem. Esses artesãos, não apenas os artistas, ainda que tenham visto aquelas espécies, ou contemplado aquelas paisagens, involuntariamente adaptavam os desenhos a seu gosto e a sua formação estética. Muitos dos desenhistas e pintores tomaram consciência e expressaram as dificuldades de leitura de imagens desconhecidas pelo leitor, incluindo não apenas legendas a desenhos e cenas, mas ainda longos textos descritivos.

Os livros dos viajantes do século XIX constituíram um gênero literário extremamente popular, tendo se multiplicado em obras infantis, livros didáticos de geografia e cosmografia, livros juvenis de aventuras e mistérios. Aos poucos foram se destacando os de melhores textos e de maior beleza iconográfica e se transformaram em obras raras, disputadas em leilões de antiquários por bibliófilos.

Contudo, o interesse maior pela literatura de viagem provém das contribuições científicas e artísticas dadas para o conhecimento geográfico, histórico e etnográfico e de inter-relações entre os diferentes povos do mundo, através de meios de transporte e instrumentos de pesquisa com que contavam no século XIX e do patamar de saberes em que se apoiavam para observar e reproduzir condições de vida, contornos litorâneos e diferentes perspectivas geográficas.

Desde a capa, o livro de Luciana de Lima Martins, que acaba de ser publicado, sobre o olhar britânico sobre o Rio de Janeiro, é belo. Uma paisagem de Augustus Earle, com a mão espalmada do viajante denotando o espanto diante da Vista do Alto de Cacavada (possivelmente Corcovado), está envolta em contornos cartográficos da região, sobre uma contrastante base do homem deitado de costas, delineado pelas pedras da baía de Guanabara.

Contém um estudo penetrante dos olhares de artistas, naturalistas e jardineiros sobre esse porto estratégico para a construção do Império Britânico, como ponto de abastecimento das frotas e manutenção das naus a vela, entre 1800 e 1850. Procura explorar e compreender as imagens gráficas, não só como registros, mas como processos cognitivos a partir de esboços, gravuras, cartas náuticas e fragmentos, criando o que chama de geografia imaginativa, para a releitura da iconografia brasileira. Além de procurar lidar com as tecnologias visuais e de observação, lida com a paisagem baseada no mapeamento e em ciências em formação como a geologia, a geografia e a botânica.

Analisada em conjunto, a iconografia do Rio de Janeiro adquire sentido diante de cartas, diários, reportagens que deixam transparecer dúvidas e ambigüidades dos supervisores marítimos que descrevem perfis e marcos litorâneos dessa passagem para o Oriente. Os jardineiros enviados por Joseph Banks (diretor dos Kew Gardens) vinham encarregados de obter novas espécies da flora tropical, acompanhando os naturalistas. E enquanto os naturalistas se surpreendiam com o emaranhado e o selvático da flora tropical, os jardineiros recolhiam e adaptavam plantas, e os paisagistas tentavam inserir a paisagem tropical em suas convenções pictóricas acadêmicas. Entre os naturalistas destacados pela autora estão William Burchell e Charles Darwin e, entre os pintores paisagistas, Augustus Earle e Conrad Martens.

O livro de Luciana de Lima Martins traz um novo olhar para questões mal formuladas, fundamenta e documenta suas observações e proporciona ao leitor indicações de outros caminhos a percorrer nas instituições britânicas a que teve acesso. O leitor, contudo, sente falta de maiores detalhes sobre os cientistas e os artistas citados e não se satisfaz com as reproduções apresentadas no livro. Freqüentemente sente falta de recursos maiores para uma leitura adequada.

Revista de Antropologia

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