segunda-feira, 19 de abril de 2010

Como funciona a democracia: uma teoria etnográfica da política


Roque Pinto

GOLDMAN, Marcio. Como funciona a democracia: uma teoria etnográfica da política. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006. 368 p.

O livro Como funciona a democracia, de autoria de Marcio Goldman, pretende uma abordagem da democracia sob o ponto de vista etnográfico, como bem sugere seu subtítulo. Ele parte de uma pesquisa empírica localizada em Ilhéus, cidade litorânea, situada na porção sul do estado da Bahia, região que já foi um dos mais florescentes centros de produção e exportação de cacau em todo o mundo.

No seu prefácio, o autor apresenta uma instigante discussão sobre a experiência de campo, discutindo os limites da racionalidade e do sistema de crenças que balizam a prática antropológica. A introdução da obra, por sua vez, é composta por um longo debate sobre o fazer etnográfico e as investigações em Antropologia voltadas para a política. Embora dos seis capítulos do livro cinco sejam intitulados por instituições ou eventos específicos: "Memorial da Cultura Negra", "Centro Afro-Cultural", "Eleições", "Carnaval", não há uma repartição do objeto investigado em secções estanques; ao contrário, a leitura segue um mesmo foco descritivo, embora Goldman descarte deliberadamente uma abordagem diacrônica.

Mas, ao contrário dos vários estudos regionais sobre a cidade e a zona cacaueira do seu entorno, o autor não procura respostas na genealogia dos potentados locais, geridos por jagunços e coronéis, mas sim na imbricada teia rizomática onde se refundam segmentos do movimento negro, famílias de santo de Candomblé, linhagens políticas e blocos afro, e como essas redes estabelecem coalizões estratégicas com a estrutura de poder no âmbito da municipalidade.

O autor transplanta para a ambiência ilheense o conceito de segmentaridade, mormente utilizado no contexto africano a partir da obra fundacional de Evans-Pritchard sobre os Nuer, objetivando capturar os movimentos pendulares de aproximação e distanciamento de grupos afro e de facções do movimento negro da conservadora política partidária local. Goldman apreende um problema amplo – a democracia – sob a ótica da micro-política dos compromissos capilares, das redes de influência de origem familial e vicinal, das estratégias de seduções e de compras de lealdades, mas, no entanto, rejeita sabiamente a perspectiva de uma análise intuitiva e rasa do seu objeto como um mero caso de fisiologismo político numa "região atrasada".

Todavia – para quem está familiarizado com o campo etnográfico de Ilhéus – ressente-se, no texto, a ausência de alguns grupos historicamente estabelecidos, como os clãs que gravitam em torno do nome de alguns cacauicultores (coronéis), notabilizados pela fortuna de outrora, os quais, embora se lhe tenha corroído o poder econômico e a capacidade de mando, seguem mantendo um peso considerável no sistema local de hierarquias, conservando o prestígio como uma importante moeda de troca. Desse modo, seria inevitável a negociação com tais forças políticas para quem pleiteia uma posição destacada na arena local. Assim, tal qual apresentada pelo autor, tem-se uma imagem de que as linhagens políticas na cidade se descolariam da sociedade mais ampla, numa impressão de autonomia que não se verifica empiricamente.

Contudo, avaliando-se globalmente a obra, vê-se uma bem sucedida combinação de descrição etnográfica com uma análise sociológica que se esforça, com sucesso, para "desnuerizar" a noção de segmentaridade e ampliá-la para seu uso no contexto urbano. Experimenta-se, portanto, uma leitura vigorosa, um texto fluido, que conserva a dinâmica do presente etnográfico e que, embora fruto de uma pesquisa pormenorizada, mantém a cor e o sabor locais da vida vivida, com todas as sutilezas que lhe são peculiares.


Roque Pinto. Professor de Antropologia da Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus-BA, atualmente desenvolve trabalhos nas áreas de Religiões Afro-americanas, Antropologia Urbana e Turismo, além de investigações nas interfaces entre Literatura, Etnografia e Identidade. Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia, doutorando em Antropologia pela Universidad de La Laguna, nas Ilhas Canárias. É membro, na categoria de pesquisador, dos grupos O Som do Lugar e o Mundo e Cultura, Cidade e Democracia: Sociabilidade, Representações e Movimentos Sociais. roquepintosantos@yahoo.es

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