quinta-feira, 1 de abril de 2010

A casa de Dona Yayá


Comissão de Patrimônio Cultural da USP. A casa de Dona Yayá. São Paulo, Edusp/ Imprensa Oficial, 1999, 176 pp.

Fraya Frehse
Doutoranda do Departamento de Antropologia - USP

Se, ao longo de todo o século XX, os moradores de São Paulo foram inevitavelmente levados a se acostumar - mais ou menos - com uma dinâmica urbanística que há no mínimo cem anos modifica os espaços da cidade, varrendo desta lugares nos quais se ancora a memória de cada um, não é, ao contrário, nem um pouco costumeiro que esses mesmos moradores encontrem nas livrarias coletâneas que abordem monograficamente esses espaços. Pois é esta a novidade que a Comissão de Patrimônio Cultural (CPC) da Universidade de São Paulo oferece ao público leitor - com certeza não apenas paulistano - como terceiro número dos Cadernos CPC. Diferentemente das duas publicações anteriores, que inventariam os bens pertencentes à USP (Comissão de Patrimônio Histórico da USP, 1997 e 1999), trata-se de problematizar, sob os mais diversos pontos de vista - histórico, memorialístico, arquitetônico, arqueológico -, um único desses legados. É a casa onde durante quarenta anos permaneceu confinada uma riquíssima senhora da elite econômica e política paulista, última herdeira de uma fortuna milionária: Sebastiana de Mello Freire, popularmente conhecida como Yayá.

Como assinala o Pró-Reitor de Cultura e Extensão Universitária da USP, Adílson Avansi de Abreu, na "Apresentação" do livro, é a primeira vez que se publica em conjunto a série de análises resultantes do trabalho de pesquisa e intervenção da CPC junto a um dos muitos "lugares da memória" da Universidade assistidos pelo órgão desde a sua fundação, em fins de 1986. E o objeto, a meu ver, foi absolutamente bem escolhido, pelo desafio instigante que suas peculiaridades sociológicas, antropológicas e arquitetônicas representam para o debate mais amplo sobre patrimônio.

Na verdade, a chamada "Casa de Dona Yayá" já tinha sido trazida a público antes. Nove páginas do segundo Caderno CPC ocupam-se dela, caracterizando-a histórica e arquitetonicamente (idem, 1999: 150-9). Mas só agora o imóvel se torna foco exclusivo do estudo multidisciplinar de onze autores, escolhidos pelo Colegiado da CPC para formular, em textos e/ou imagens, soluções para a casa. O fato é que a propriedade, incorporada, junto com os outros bens do espólio de Sebastiana, ao patrimônio da Universidade como herança vacante em 1969, e tombada há dois anos pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat), atualmente não conta com um uso definido e tampouco se encontra em bom estado de conservação. A implementação de todo um projeto de restauração, iniciado pela CPC em 1988, mas também a possibilidade de concretização de uma reforma completa, foram suspensas em 1997, por questões jurídicas e dificuldades financeiras da Universidade. Em face dessa situação, o propósito da publicação é colaborar para, como ressalta o Pró-Reitor, "orientar o restauro e a desejada definição de finalidade do imóvel" (: 11).

A casa situa-se à Rua Major Diogo, no 353, no Bexiga, tradicional bairro de atividades gastronômicas e culturais. O terreno e a edificação que atualmente se vêem pouco têm em comum com as dimensões e a aparência da antiga chácara que havia naquele local quando Sebastiana ali foi instalada, em 1921. Até este ano, o terreno de 33 mil m2 possuía uma ampla casa de 16 cômodos repletos de pinturas murais art nouveau e uma rebuscada fachada neoclássica, bem ao gosto do proprietário anterior do imóvel, o então relativamente próspero comerciante de secos e molhados João Guerra. Hoje em dia, diferentemente, o terreno soma apenas cerca de 2.600 m2, enquanto a casa - que ganhou, além de paredes brancas, um solarium de tijolos, grades e vidro anexo ao alpendre frontal para transformar-se no hospício privado onde Sebastiana permaneceu reclusa dos 34 anos até a sua morte (1961) - se encontra bastante depredada.

Considerando esse contexto, a CPC organizou a coletânea de dez textos e um ensaio fotográfico em três grandes partes, prenunciadas, após a "Apresentação", por um capítulo introdutório da professora de história da arte Maria Cecília França Lourenço, atual coordenadora da Comissão e, aliás, organizadora também dos outros dois Cadernos. Nele, a autora enfrenta aquilo que penso ser a questão de fundo a permear todos os demais trabalhos constitutivos da publicação: ela reflete "sobre alguns fatores pelos quais o tema Casa de dona Yayá encanta" (: 14).

Em primeiro lugar, seria fundamental a díade entre "a resistência e a contrariedade de expectativas, que representam ela, a casa e o entorno, mantendo-se através dos tempos em condições tão adversas" (: 15). Com efeito, a leitura revela que a questão da "resistência" é um elemento sub-reptício à economia geral do livro. Enquanto os capítulos da parte inicial iluminam inúmeras dimensões da personalidade e do cotidiano de Yayá antes e depois do enclausuramento, destacando que esta permanece viva até os 74 anos apesar de todas as adversidades, a segunda apreende em particular a casa como patrimônio arquitetônico de mais de cem anos de idade, a fim de que o último bloco situe a personagem e a casa no Bexiga hoje - bairro que, sempre em modificação e cada vez menos arborizado, tem de lidar com a memória da casa e com a área verde do terreno em que a edificação se situa.

Para Lourenço, o assunto "casa de Yayá" encantaria também por permitir "aprofundar a construção e a derrogada de mitos sobre memória e patrimônio" (: 18). Naquilo que possui de trágico e, portanto, de humano, a história dessa mulher que permaneceu encarcerada durante quase meio século se enraizou na história da edificação. As grades de ferro e os vidros duplos instalados nas antigas janelas; as portas pesadas que, dotadas de visores de corte transversal, foram afixadas nos batentes embranquecidos para possibilitar a passagem apenas de comida; o solarium construído em 1951 para prover mais circulação a uma reclusa proibida de sair ao jardim: intervenções como essas dialogam com todo um "imaginário" que, segundo a autora, tem de ser necessariamente considerado por quem avalia o bem cultural. São concepções socialmente difundidas acerca da mulher - em especial da mulher rica que foge aos desígnios de sua condição social, na São Paulo da primeira metade do XX -, mas é também todo um imaginário sobre a loucura.

Por tudo isso, estudar o imóvel implica, segundo a autora, ampliar o sentido das noções de patrimônio e memória. A primeira teria de ser assumida como "musealização do objeto e/ou de conjuntos materiais capazes de problematizar formas de viver e de pensar, valores desejáveis ou ultrajados, assim considerando como bem cultural tudo o que possa atestar a luta e a passagem do humano pela Terra". A memória, por sua vez, seria "seleção e construção de nexos capazes de nos fazer avançar, neste caso contra o preconceito e as marcas datadas de valores de época" (: 14).

As definições aludem a uma segunda gama de questões que perpassa a coletânea do início ao fim. Se os trabalhos "Sobre a personagem Dona Yayá" aludem à necessidade de se conservar a memória da complexa trama existencial que ali se costurou durante décadas, "Sobre o edifício" enfatiza, com base nessa constatação, que o que faz da casa um patrimônio é mais do que apenas o fato de ser uma antiga chácara - o que já seria muito -, de abrigar murais nas paredes e ornamentos na fachada. É também a memória dos dramas registrados no início do livro. O subconjunto final de estudos, por sua vez, equaciona esse duplo-jogo entre a vida dos homens e a das coisas sobre novas bases. À discussão sobre os "possíveis usos para o imóvel" subjaz o dilema: preservar as paredes ecléticas e a fachada neoclássica da antiga casa de chácara, ou as paredes assépticas e, em particular, o solarium para os supostos banhos de sol de Yayá?

Essa pergunta polêmica, enfrentada mais ou menos explicitamente no terço final de A casa..., suscita no leitor um outro questionamento, não menos complexo: o que, por meio da preservação, lembrar? Que memória construir? Aquela referente ao investimento estético dos primeiros proprietários da chácara, ou a memória sobre a miséria de Yayá e de toda uma sociedade?

Mapeada, em linhas gerais, a estrutura do livro, cabe apontar para questões pontuais que os seus capítulos levantam para a reflexão sobre a história de Sebastiana, da casa e - por que não? - da São Paulo da primeira metade do XX.

Obviamente o empenho básico dos trabalhos da primeira parte da coletânea é fornecer ao leitor o maior número possível de dados biográficos sobre a herdeira dos Mello Freire. Mas os autores fazem mais: discorrem sobre a sociedade que produziu histórias como a de Yayá. Certamente merece destaque, nesse sentido, o texto da historiadora Marly Rodrigues. Resultado de uma pesquisa histórica mais abrangente sobre Sebastiana e sua casa, realizada a pedido da CPC (Rodrigues, 1988), o estudo parece ter sido tão relevante para o órgão que chega a ser caracterizado, no capítulo de Lourenço, como aquele em torno do qual os outros "pareceres" da coletânea foram "especialmente elaborados" (: 12). Uma extensa análise documental (entrevistas, laudos médicos, autos de interdição, a legislação brasileira referente à herança, inventários, jornais de época e fotos) fez a historiadora colocar em cena uma grande quantidade de personagens, que povoam a história em meio ao destino de isolamento traçado para Yayá. São familiares que morrem durante a infância da senhora; amigas de adolescência que dela cuidam até a morte. Mas são também personalidades da vida pública nacional, como o político liberal e governador paulista Albuquerque Lins (1908-1912), tutor de Yayá e que autoriza a sua interdição na casa; o médico Franco da Rocha, idealizador do então recente hospital psiquiátrico do Juquery (1895), e que se recusa a participar da junta médica que aprovaria definitivamente a reclusão doméstica da paciente; ou o diretor do hospício do Rio de Janeiro Juliano Moreira, que vem pessoalmente à Rua Major Diogo examinar Sebastiana.

A presença dessas e de outras personagens faz o leitor se questionar a respeito da sociologia dessa história aparentemente tão particular, na São Paulo do início do XX. O que teria norteado a escolha precisamente da chácara do Bexiga como local de internamento da doente - propriedade que Sebastiana precisou alugar e que posteriormente comprou -, se a senhora possuía muitas outras propriedades na cidade e em Mogi das Cruzes? Além disso, teria havido outros motivos, que não apenas os "circunstanciais" (: 31), para que médicos então tão renomados quanto Franco da Rocha se recusassem a examinar a doente?

A análise de Rodrigues deixa entrever também a cristalização social, ao longo do tempo, de imagens variadas acerca de Yayá. À visão daqueles que a conheceram ou que conviveram com suas amigas próximas, contrapõem-se as impressões difundidas pelo senso comum, não raro com a ajuda da imprensa sensacionalista da época da interdição. Essas imagens coexistem ao lado de outras, também persistentes, ligadas à loucura, e que colocam em pauta a intrincada questão antropológica de como a sociedade lida com esse fenômeno e, particularmente, como dele se apropriou, na São Paulo da primeira metade do século XX.

Complementar ao texto de Rodrigues pelos dados biográficos que oferece, é o de Helena Marzano Grant, incorporado ao livro quando este já estava no prelo. Descendente da família à qual pertenceram a madrinha e duas amigas íntimas de Yayá que desta cuidaram durante toda a vida, a jornalista alterna, em seu depoimento, evocações memorialísticas com a apresentação de um material documental até então inédito. Isso a leva a introduzir no debate sobre a história de Sebastiana uma personagem pouco presente no estudo de Rodrigues pelo tipo de fontes de que esta dispõe: Yayá "ela-mesma" antes do enclausuramento. Afinal, Grant apresenta, entre outros, uma fotografia tirada pela própria Sebastiana, além de trechos de suas cartas pessoais e de seu diário.

Percebe-se que alguns dados biográficos mencionados por Grant contradizem aqueles levantados por Rodrigues (assim, por exemplo, a menção ao fato de que Franco da Rocha teria sido o primeiro médico de Yayá - : 71). Mas isso não retira do texto o caráter de instigante objeto de representações dos descendentes daqueles que rodearam Sebastiana ao longo da vida. Frases como "Na verdade, os que cuidavam de Yayá não tinham outro interesse, senão o de diminuir o seu sofrimento" (: 74) e "Eliza Grant era tão correta" (: 76) suscitam a impressão de que a familiar dos Grant sente a forte necessidade de se posicionar - também ela - em relação a uma querela que marcou a vida de suas parentes: se interesses financeiros mediaram ou não a dedicação dessas mulheres a Sebastiana.

Os textos de Rodrigues e Grant compõem, ao lado do estudo do jornalista Francisco Ornellas, um quadro amplo de referências sobre Yayá. Nesse último trabalho especificamente, a ênfase recai sobre um aspecto até então não explorado no livro: o patrimônio imobiliário da filha dos Mello Freire. A análise que o autor faz do inventário e dos bens da família apresenta um dado incrível: Sebastiana foi "detentora, sem dúvida, do maior patrimônio imobiliário de Mogi das Cruzes durante toda a primeira metade do século XX e proprietária de pelo menos 75 imóveis na Capital do estado, boa parte dos quais situada no supervalorizado triângulo formado pelas praças da Sé, República e Paissandu" (: 78). Esse aspecto, entretanto, não teria impedido que, um ano após a morte, restasse a Yayá apenas uma sepultura anônima no Cemitério da Consolação.

É certo que haveria muito mais a dizer: entre outras coisas, que Ornellas acompanha a trajetória dos bens de Sebastiana até a aquisição destes pela USP; e que nesse percurso descobre que uma das amigas que mais teria se engajado pela senhora reivindicou em 1967 o "recebimento de 5% do valor dos bens da herança, sob o título de pagamento por serviços prestados a Yayá durante o período de 42 anos" (: 82)...

Mas deixemos esses detalhes para o próprio livro. É a trama deste que nos interpela constantemente com a questão sintetizada pelo historiador José Sebastião Witter: "Seria dona Yayá louca mesmo ou ela era uma mulher diferenciada para a época? Não casou, não vivia numa única cidade, dividindo o seu tempo entre a chácara de Mogi das Cruzes e a casa de São Paulo. Além disso, era possuidora de uma fortuna razoável..." (: 61).

Essa interpelação, recorrente durante a leitura do livro, se explica não apenas pela originalidade da história de Sebastiana. Decisiva é a conjunção dessa profunda atipicidade com aquilo que Maria Lúcia Bressan Pinheiro, arquiteta e parecerista do processo de tombamento da edificação, chama, no segundo bloco da publicação, de valores de "tipicidade" da casa; ou seja, "valores representativos do estádio cultural da sociedade paulista, naquele momento" (: 149-50) que foi a virada do século XX em São Paulo. A casa se distinguiria por ser um remanescente das antigas sedes de chácara paulistanas do período, além de uma construção que refletiria, em sua arquitetura e particularmente nos seus ornamentos decorativos, a atuação dos mestres-de-obra italianos na cidade da época.

A edificação é, portanto, uma valiosa porta de entrada para a compreensão de todo um padrão arquitetônico, vigente entre os membros de uma burguesia paulistana em ascensão entre fins do XIX e o início do XX. Esse aspecto é explorado nos textos, fotografias, plantas e desenhos com os quais outros três arquitetos além de Pinheiro contribuem para a segunda parte de A casa .... Nesse sentido, destaca-se a discussão que Júlio Katinsky faz de dois aspectos ligados ao processo de urbanização de fins do XIX, enquanto descreve a edificação de Yayá com base em suas peças mais antigas. O primeiro deles é o ecletismo enquanto estilo arquitetônico na cidade da época. O arquiteto ressalta a escassez de pesquisas sobre a tipologia das habitações ecléticas conforme o capital econômico e cultural dos seus proprietários. Corrobora o argumento com uma útil bibliografia sobre "Ecletismo", anexada ao final do livro.

Katinsky desenvolve também uma interpretação peculiar a respeito da presença das chácaras na cidade de fins do XIX. Apoiando-se nos relatos do viajante francês Auguste Saint Hilaire, afirma que os proprietários desse tipo de construção enxergariam nela a possibilidade de, por um lado, escapar ao rigor legislativo do "aparelho exator"; por outro, de vivenciar uma "maior flexibilidade e adaptabilidade ao meio" (: 94-6). A explicação abre espaço para polêmicas, em especial por se propor a entender a permanência, em fins do XIX, de chácaras próximas do centro urbano paulistano com base numa fonte histórica originada a partir de observações que Saint-Hilaire fez de uma São Paulo ainda colonial, entre 1819 e 1820 (Saint-Hilaire, 1976).

De qualquer forma, o argumento deixa intuir a profusão de detalhes contidos nesse e também em outros estudos do segundo terço de A casa de Dona Yayá. Impressionante é a minuciosa descrição que Regina Tirello, arquiteta e restauradora que coordena o Canteiro-Escola de Pinturas Murais CPC, faz da descoberta paulatina, por sua equipe, dos murais artísticos e estratos arquitetônicos da casa. São páginas em que texto e imagens se revezam a fim de que o leitor acompanhe passo a passo como foi se dando a "profícua experiência de trabalho interdisciplinar" (: 103), até o momento - indefinido, no texto - de sua interrupção.

Mencione-se também o belo ensaio fotográfico da arquiteta Angela Garcia. Por sua forte dimensão documental, as imagens apresentam ao leitor uma ótima síntese do que pode ser o imóvel enquanto via privilegiada de acesso à história de Yayá. Nas fotografias externas e internas da casa, nos registros panorâmicos do terreno e na reprodução de pequenos detalhes, muito é ruína, é tragédia. E é também potencialidade, já que resiste - num terreno cada vez menor, num bairro cada vez mais cinza.

A última parte da obra possui um caráter eminentemente político. Os arquitetos responsáveis pelo projeto de restauro e reforma então interrompido descrevem minuciosamente a sua proposta de intervenção; uma das ex-coordenadoras da CPC, por sua vez, discorre sobre as diversas utilizações que o imóvel vem sofrendo desde a sua incorporação à USP. Ao final, o presidente da "Sociedade de Defesa das Tradições e Progresso da Bela Vista" oferece um depoimento sobre a posição de sua associação quanto aos futuros usos da casa. Em suma: uma vez assinaladas, nos dois blocos anteriores do livro, as diversas facetas da personagem Yayá e de sua casa, é possível apresentar propostas que contemplem essas duas dimensões; ou seja, A casa de Dona Yayá.

Menos do que aqui atacar ou defender tal ou qual proposição para o imóvel, importa assinalar que, para além delas, existe ainda uma outra: a edificação estimula a própria reflexão sobre a São Paulo virada do século que gestou destinos como o de Sebastiana e da moradia que a abrigou. É um universo urbano que, tal como a Yayá descrita por Lourenço, condensa em si uma "conexão de contrariedades". Contém um bairro que, então recém-aberto (1879) - tornado, pois, mais visível socialmente -, presta-se a tornar (quase) invisível uma senhora que, por sua condição social, estava fadada a uma visibilidade então pouco comum para uma mulher. Além disso, é uma cidade que, submetida a um intensíssimo processo de urbanização - propulsor da fundação do Juquery, distante do centro urbano - inventa um manicômio bem peculiar a apenas poucos quilômetros da área central. E isso para que seja encarcerada, na própria casa, uma das filhas mais nobres dessa cidade, descendente de um político paulista abastado, e detentora de bens imóveis situados nas mais nobres áreas paulistanas.

E por fim: é uma sociedade que expulsa para os (modernos) hospitais psiquiátricos a diferença que a loucura representa dentro da (não-moderna) casa patriarcal, por desejar adotar novos (e europeus) costumes; e não hesita em inverter a direção da expulsão quando o que está em jogo é uma personagem que desafia o passado e o presente de seu tempo. No mundo social profundamente hierarquizado que é São Paulo na terceira década republicana, uma mulher rica e órfã que, aos 32 anos, se nega a casar e supostamente tem crises nervosas, é tida como uma excrescência quase atemporal. Por isso mesmo, acaba por fazer com que renasça, no cerne mesmo do processo de transformações modernizadoras, o espaço que este mesmo processo visa abolir: a casa patriarcal.

Cabe notar que interdições - mesmo que não domésticas - de indivíduos abastados por questões de herança parecem ter sido comuns na época, como demonstra Rodrigues à luz do exemplo do filho do antigo proprietário da casa de Sebastiana. Em 1920 Fernando Guerra foi "declarado interdito" em meio a sintomas de disritmia e à vontade de se casar com uma moça negra. Mas a interdição só vigorou até que se realizasse o inventário do seu pai (: 54).

E eis que a história de Yayá deixa de ser única para incentivar a pesquisa de outros casos, a compreensão de outras lógicas. O tema não mais se restringe às paredes e aos tijolos de uma antiga casa de chácara do Bexiga. Aproximamo-nos de questões com as quais a Antropologia lida no mínimo desde que Durkheim demonstrou que o espaço não pode ser desvencilhado do mundo social que o produz e é por ele produzido (Durkheim, 1994: esp. 12-28). Entender o espaço é entender os homens que nele viveram, que nele encontraram sentido. E isso mesmo que tenham transformado esse espaço em lugar de um aparente sem-sentido. Mesmo que nele tenham confinando uma mulher como Yayá.

Bibliografia

COMISSÃO DE PATRIMÔNIO CULTURAL DA USP.
1997 Obras escultóricas em espaços externos da USP, São Paulo, Edusp.
1999 Bens imóveis tombados ou em processo de tombamento da USP, São Paulo, Edusp/Imprensa Oficial.

RODRIGUES, M.
1988 A casa de dona Yayá, São Paulo, Ícone Pesquisas de História.

SAINT-HILAIRE, A. DE.
1976 Viagem à província de São Paulo, Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/Edusp.

DURKHEIM, E.
1994 Les formes élémentaires de la vie religieuse, Paris, Quadrige/PUF.

Revista de Antropologia

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