terça-feira, 23 de março de 2010

A História para Geisel


A História para Geisel
Suzeley Kalil Mathias'

Ernesto Geisel
organizado por Maria Celina D'Araujo e Celso Castro.
Rio de Janeiro, Editora da Fundação Gerulio Vargas, 1997. 494p.



Contra a corrente de um país sem memória, a Editora da Fundação Getúlio Vargas publicaEmesto Geisel, livro que resulta de uma série de entrevistas concedidas pelo ex-presidente a Maria Celina D' Araujo e Celso Castro, pesquisadores do CPDOC, e que evoca um dos períodos da história nacional que mais gostaríamos de esquecer. Esta atitude de Geisel vem somar novo paradoxo a uma figura sempre diferente. O homem calado, que sempre viu com maus olhos o trabalho dos jornalistas, que se recusava a comentar suas atitudes na vida pública, deixa para a posteridade um depoimento de 33 horas. Este testemunho vem se somar aos seus discursos presidenciais e às poucas entrevistas dadas a acadêmicos amencanos. 1
E certo que quem procurar por revelações vai se decepcionar. Sequer é esta a proposta do depoente ou dos organizadores. Se o depoimento não traz novidades substanciais, a partir dele é possível compreender melhor a instituição - armada e seus homens. E possível perceber com clareza como a organização militar age e se reproduz. E possível entender como chegamos a 1964 e como tratar de não viver situações semelhantes. Com o depoimento, vemos desfilar diante de nossos olhos a história política do Brasil deste século, o projeto nascido nos quartéis na década de 20 e tornado realidade a partir de 30. Trata-se, assim, de um resgate da política brasileira feito por um de seus mais importantes atores.
Pelo depoimento, confirma-se também o poder de Golbery do Couto e Silva e sua relação íntima com o grupo moderado das Forças Armadas. Golbery merece o qualificativo de 'mago da distensão'. É o nome mais citado por Geisel:
ao longo das 494 páginas da entrevista, o nome de seu companheiro de estrada aparece 70 vezes, descontadas as citações numa mesma resposta. E não é só nos capítulos dedicados ao governo, mas desde antes de 1964. Confirma-se, também, como se deu a relação entre governo e Igreja Católica no período da distensão,articulação que, novamente, coube a Golbery.
Na mesma linha, destaca-se o papel de Petrônio Portela como articulador da distensão no Congresso e do controle de Geisel sobre o Alto Comando das Forças Armadas, e sua importância para a contenção da 'linha dura' militar.
Mostra-se o profundo respeito que Geisel tinha por João Figueiredo, baseado na carreira do companheiro. Foi este o motivo que o levou a encará-lo como o melhor candidato à sua sucessão, dada a impossibilidade de indicar Aureliano Chaves, um civil. Mas Geisel também revela uma ponta de mágoa com as atitudes de seu sucessor e, principalmente, com a mudança de rumo de seu projeto, representada pela saída de Golbery do governo.
Ressalve-se que em nenhum momento o projeto distensionista de Geisel é relacionado à crença na democracia. Suas preferências políticas, como nos informa sua fala, dizem respeito a um cálculo que tem por base a preservação da instituição castrense. Assim, tomando-se os riscos de sua ação, a escolha de Figueiredo parecia ser, dentro do plano autoritário de transição para governos civis, a que oferecia maiores possibilidades de acerto.
Particularmente no que se refere às personagens que marcaram o processo de transição do regime militar para o regime civil no Brasil, a atitude e as avaliações de Geisel são bastante corajosas. O general não se furta a opinar sobre diferentes pessoas, revelando suas 'mesquinharias' e sua relação com os militares, fatos que muitos procuraram apagar de suas biografias.
O próprio Geisel, sem nenhum sentimento de culpa, ssume seus erros e desacertos. Porém, mesmo estes parecem funcionar como uma peça planejada no jogo político executado.
Esse excessivo cuidado em demonstrar que tudo o que foi realizado por ele, o foi segundo um planejamento estratégico articulado, torna, por sua vez, muito mais acentuadas as lacunas presentes em sua fala. Uma das mais importantes, porque poderia esclarecer um aspecto bastante relevante da origem do projeto de distensão do regime autoritário, refere-se ao processo de sucessão de Médici, ou seja, a como Geisel chegou à presidência da República. Nesse assunto, o general repete as versões conhecidas sem acrescentar dados que possam indicar como de fato se deu a escolha.
Nessa mesma direção, outros problemas poderiam ser melhor explorados.
Entre estes, talvez o mais delicado - e, por isso mesmo, o que vem causando celeumas no meio jornalístico - seja o referente à repressão e à tonura. Estes são assuntos de vital imponância para o entendimento das ações dos militares no período em que estiveram no governo, mas foram, em nosso entender, negligenciados no depoimento.
Talvez por isso alguns comentários ao livro lamentem as inclinações autoritárias do depoente. Essas lamúrias, no entanto, somente fazem sentido nos ombros de quem não conhece a história recente do país. Como imaginar Ernesto Geisel não defendendo seus feitos, justamente ele, que sempre se componou como chefe? Como pensar que um militar -e Geisel, como é largamente mostrado no livro, foi antes e acima de tudo um homem do Exército - não vá defender métodos que aos olhos de todos parecem apavorantes, mas que a seus olhos parecem necessários para ganhar a guena? E isto o que aparece por todo o texto:
o chefe, o estrategista, o homem preparado para a guena que usa todos os meios para vencer a batalha. Foi assim que ele exerceu todos os cargos em sua vida. Foi assim que ele quis entrar na história.
Cenamente a tonura, sob todas as suas formas, deve ser condenada. Do mesmo modo, devemos lembrar que jamais houve guerra civil no Brasil, apesar da insistência dos organismos de repressão em qualificar os jovens mais exaltados, e que paniram para a luta allllada, como terroristas. Todavia, esses assuntos são pontuais em Ernesto Geisel, não permitindo uma análise acurada do período ou dos atores. O que não se pode é, a partir de frases soltas, exigir uma postura democrática de quem se define como autoritário. Respeitar isto é o adequado, e foi o que fizeram os entrevistadores.
A novidade do livro, assim, é o fato de ter-se conseguido o depoimento, mas não o conteúdo deste. Pelas palavras de Geisel, confirma-se muito do que pensamos sobre o regime militar e sua distensão. O ex-presidente mostra que tudo o que fez tinha a presidi-lo o militar; foi isso que o fez "enquadrar" a linha dura e acabar com o AI-S, representante máximo da ditadura militar. Fez isso não por ser democrata, o que também não era predicado de seu sucessor ou de seus companheiros de farda, mas porque redundaria em benefício para a instituição armada. Fez isso não porque confiasse nos civis, mas porque entendia que este era o sentido da 'revolução'.
Com este livro temos, finalmente, a ceneza de que a distensão "lenta, gradativa e segura" foi uma operação militar. Uma ação planejada e executada por um chefe militar para que os militares saíssem do poder sem fracassos, sem tropeços e, ao mesmo tempo, para garantir o projeto castrense para o país. Neste último caso, sem mágoas, Geisel revela sua derrota: o Brasil não é mais um país estatizante, nacional-desenvolvimentista, e que sonha em ser potência.
Se, de um lado, a fala de Ernesto Geisel nos faz lembrar de fatos dos quais não temos saudade, de outro, mostra que junto com os governos militares enterramos um projeto de país. Um projeto que muitos acreditam ter nascido natimorto, mas ainda um projeto. Fica a nost􀃋gia de um tempo em que sonhávamos que seríamos uma grande potência. Em um momento da nossa história como o arual, em que sofremos com a falta de um projeto de país, ou, se este existe, como quer o governo, padecemos pela falta de compreensão do mesmo, incomoda notar que o Brasil ainda não conseguiu rimar democracia com desenvolvimento.
Se por vezes as posições do ex-presidente parecem paradoxais, a rígida lógica argumentativa de sua fala não deixa, em momento algum, transparecer alguma espécie de saudosismo. Ao contrário, ele não se arrepende e assume que foi por meio do exercício de toda a autoridade que iniciou o processo de transição para os governos civis. Como conseqüência desse processo, auxiliou afinal a fechar a porra de um ciclo de nossa história.
Ernesto Geisel, todavia, não é só uma reunião de depoimentos. Também não é uma biografia do general Geisel o que o livro nos apresenta. Trata-se de um texto bem escrito, recheado de notas de pé de página que nos informam sobre os fatos e nos permitem compreender a conjunrura que sustenta o discurso do depoente.
O livro também traz um índice remissivo e uma cronologia que, pretendendo acompanhar a vida de Geisel, combina informações que nos revelam a história brasileira deste século. Tudo isso mostra que o livro não foi feito com um intuito memorialista, mas sim historiográfico. A própria divisão do livro é significativa: aliada ao índice remissivo, ela permite a consulta de temas ponruais e que podem ser contrastados com outra literatura.
Além de rudo, conforme informam os organizadores na Introdução, o livro representa o coroamento de uma série de entrevistas com militares - já publicadas -, cuja finalidade é fornecer aos estudiosos, acadêmicos ou não, da história recente do país a visão daqueles que foram seus principais condutores.
Podemos dizer que o texto, conforme está organizado, responde perfeitamente a esses objetivos, e assim só nos resta saudar todos aqueles que contribuíram para que a obra viesse a público, em particular seus organizadores, Maria Celina D' Araujo e Celso Castro, que provam uma vez mais que temos grandes pesquisadores no cenário nacional.
A grande lição que nos deixa o livro é que há fatos que, embora relutemos em lembrar, não podem ser esquecidos. Se na vida privada a memória pode excitar, na história ela é aquilo que leva, muitas vezes, à correção de erros e à prevenção de fracassos. E esta a grande mensagem de Ernesto Geisel, um livro primoroso que não pode ser confundido com uma simples reunião de lembranças de um velho militar.

Nota
Os discursos do ex-presidente estão
re11oidos em cinco volumes: Discursos:
1975, BrasOia, Aerp, 1976;
Discursos: 1976, Brasília, Aerp,
1977; Discursos: 1977, Brasília,
Aerp, 1978; Discursos: 1978,
Brasília, Aerp, 1979; Discursos: 1979,
Brasília, Aerp, 1979. As entrevistas foram
concedidas a Alfred Stepan (Os militares:
da abertura à Nova República, paz e Terra,
1986, p.46-51) e a Paul Boecker (Latin
Amcrica's s/rUggle for democracy, as
recounted by its leadm, Nova York, Markus
Wiener Publish, 1990, p. 267-73).


Revista Estudos Históricos - CPDOC-FGV

Nenhum comentário:

Postar um comentário