terça-feira, 19 de janeiro de 2010

O possível e o impossível: contingências do ensino da psicanálise na universidade


O possível e o impossível: contingências do ensino da psicanálise na universidade

Ricardo de Sá

Psicanalista; membro do Tempo Freudiano Associação Psicanalítica; professor do Departamento de Psicologia/UFF. ricodesa@terra.com.br

Freud não explica: a psicanálise nas universidades, organizado por Anna Carolina Lo Bianco. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2006, 148 p.

O conjunto de artigos deste livro trata da delicada relação do discurso analítico com a universidade, partindo do pressuposto de que a função desse encontro não é a de explicar a psicanálise nem a de difundi-la para domínios mais amplos do que aqueles atingidos pela prática clínica. Assim sendo, de que modo e em nome de que é pertinente sustentar o ensino da psicanálise na universidade? São essas, basicamente, as questões que este conjunto de artigos se destina a responder.

Percebe-se que cada autor ilumina um ângulo do prisma multifacetado que se revela nesta relação. Certamente, não se trata de inserir a psicanálise na universidade para ensinar um saber que possa estar supostamente contido em seus conceitos. Isso introduz um impasse verdadeiro na prática do ensino da psicanálise que vemos perfilado ao longo dos artigos.

Escars, em " O leitor suposto" , entende que não é possível se pensar a transmissão da psicanálise sem lembrar que esta é operada sob transferência, visto que a posição de quem ensina determina a transmissão. Como efetuar, então, uma transmissão num dispositivo que privilegia o que há de universal no saber, ou seja, os predicados ao invés da enunciação do sujeito? Sua questão nos mostra que o ensino da psicanálise somente poderá atingir aquele que vier a recebê-lo a partir " de seu próprio inconsciente" . Sbano enfatiza o mesmo ponto, porém, valorizando a relação da psicanálise com a universidade hoje – um tempo em que a ciência e o capitalismo produziram efeitos incontestáveis. Seu reflexo mais contundente na universidade concerne ao fato de o professor não se responsabilizar mais pelos efeitos que seu endereçamento produz nos alunos. Zela apenas pela disciplina que ministra, corroborando, através da burocratização do ensino, a lógica do sistema de créditos que reduz a universidade a um posto de habilitação profissional. Mas, que efeitos essa mutação produz especificamente sobre o ensino da descoberta freudiana, dirigido aos alunos que ingressam hoje na universidade com suas dificuldades e resistências?

Para Julio de Castro, o ensino da psicanálise implica uma operação ética que lhe permite discernir duas dimensões que se articulam num perpétuo movimento de báscula: o ensino da psicanálise e a psicanálise do ensino. Ao nos conduzir às conseqüências dessa distinção, somos lançados mais uma vez à questão: o que se transmite do discurso analítico depende do ato de quem ensina.

Lo Bianco, baseando-se em Moisés e o monoteísmo (FREUD, 1938), utiliza a contraposição que ele estabelece entre uma tradição herdada e uma tradição comunicada para isolar o que é específico na transmissão analítica. Através dessa oposição, circunscreve o impasse do ensino da psicanálise na universidade. Se a intervenção analítica visa à emergência da verdade no real, torna-se incongruente com sua transmissão o recurso a um dispositivo que se apóia na comunicação de um saber. Para ela, a tentativa de fazer passar o saber recalcado no lugar da verdade ao lugar de agente visa positivar aquilo que é marcado pelo impossível.

Jeferson Pinto extrai dos impasses apontados por Lo Bianco alguns elementos que esclarecem a estrutura da relação do sujeito ao saber. O problema se impõe ao buscar ensinar uma prática que se funda na emergência singular do sujeito e que não encontra no saber universitário a possibilidade de uma formalização do caso-a-caso que a clínica exige. Por conta desta dissimetria, a psicanálise traz algo de novo para a universidade – uma posição " mais feminina" em relação ao saber. Ao tornar o sujeito mais afeito ao regime do contingente, ela possibilita fazer emergir uma verdade singular quando um saber se revela em fracasso.

Poli, ainda sobre a questão do saber, demonstra que essa intrincada relação universidade/psicanálise diz respeito, mais fundamentalmente, à ciência. As operações da ciência constituem o solo sobre o qual a psicanálise pôde emergir, na medida que a ciência foracluiu o que a psicanálise veio a recolher.

A que serve a psicanálise na universidade, uma vez que ela não depende desta para estar no mundo, posto que o trabalho de transmissão da qual ela depende é promovido e continua a ser realizado nas instituições analíticas? Isabela de Sá coloca a questão admitindo, porém, que a psicanálise não opera fora do mundo do qual ela tira suas conseqüências. Assim, ainda que saibamos que o discurso universitário é impróprio para a transmissão da psicanálise, não devemos esperar fazê-la operar apenas em um suposto território limpo. Na verdade, a psicanálise deve subverter o funcionamento universitário do sujeito mantido cotidianamente em nome da economia de seu próprio exercício.

Elizabeth Juliboni sustenta que o ensino de Lacan pôde transmitir a radicalidade da descoberta de Freud porque se estabeleceu como uma verdadeira barreira ao saber. Para tirar as conseqüências desta posição, ela percorre a teoria da linguagem de Lacan, destacando que é no fracasso inerente à comunicação que se inscreve um limite no interior da linguagem, sendo ele mesmo a causa que move a transmissão.

Por fim, o texto de Juliana Castro apresenta o cenário no qual está se desenrolando a globalização irreversível do ensino universitário e a conseqüente abolição do sujeito. Com a valorização da lógica empresarial e a adoção de instrumentos de gestão definindo protocolos de ensino, desaparece a heterogeneidade de lugares entre professor e aluno e a possibilidade de que o ensino seja transmitido a partir da transferência. Esta marcha progressiva dos fatos está a serviço da economia de responsabilização do sujeito, pois como alguém regulado por textos padronizadores, pronto a consumir um saber, poderá fazer-se sujeito a este saber?

Assim, encontramos em Freud não explica: a psicanálise nas universidades o questionamento do tema, porém, ao nos perguntarmos sobre as condições de seu ensino resta ainda interrogar em que implica entrar em contato com a descoberta de Freud pela porta da universidade.

Revista Ágora - UFRJ

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