terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Nos bastidores de Hollywood*


Nos bastidores de Hollywood*

João Bosco Hora Góis

Professor Adjunto da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense. Pesquisador do CNPQ e da FAPERJ

O hoje já clássico trabalho de Vitor Russo, The closet celuloid: homosexuality in the movies1, trouxe à tona a discussão sobre o local da homossexualidade nos filmes produzidos em Hollywood. Nele foram destacados aspectos essenciais do modo como gays, lésbicas e transgêneros eram apresentados à sociedade americana e platéias de cinema por todo o mundo: tipificados como estranhos ao universo social dos Estados Unidos, personagens homossexuais, por inúmeras décadas, quando apareciam, eram geralmente afeminados, mentalmente perturbados e fadados a fins trágicos. Essa caracterização contribuiu para o despertar de várias outras discussões sobre o papel do cinema na manutenção da invisibilidade homossexual, na reprodução de inúmeros preconceitos e no incentivo a homofobia, assim como possivelmente incentivou a tomada de ações por parte de grupos gays nos Estados Unidos e alhures, visando uma redefinição das imagens projetadas a nosso respeito.

No que pese o seu inestimável valor, a obra de Russo é marcada pelo mesmo tipo de perspectiva vitimizadora que permeou muito da reflexão feminista até boa parte dos anos de 1980. Ao salientar a dimensão opressiva das imagens homossexuais em grande parte dos filmes americanos, tal obra deixa intocado um aspecto essencial daqueles mesmos filmes: o papel ativo que gays, lésbicas e transgêneros jogaram na sua produção. Em outros termos, deixou de salientar que a constituição da indústria cinematográfica nos Estados Unidos tem sido também produto da participação de significativo contingente de diretores, atores, figurinistas, editores, etc. homossexuais. Outrossim, deixou sem exame apropriado o fato de que em diferentes períodos – dos loucos anos 20 até os mais liberais anos 60, passando pelas décadas de 30 e 50 e seus tons mais repressivos – gays e lésbicas foram capazes de exercer influência decisiva em diversas áreas da produção de filmes naquele país. O exame dessas questões constitui o tema principal de Bastidores de Hollywood. A Influência Exercida Por Gays e Lésbicas no Cinema 1910-1969, trabalho de William J. Mann.

O livro traz algumas contribuições importantes as quais, embora referentes diretamente ao contexto americano, podem ser incorporadas à agenda brasileira de reflexões sobre as relações entre produção cinematográfica, imagens e homossexualidade.

A primeira dessas contribuições reside no esforço de recuperação da memória da experiência homossexual no campo das artes ainda com tanta freqüência obscurecida ou considerada secundária ao fazer artístico. No caso de artistas de Hollywood, particularmente aqueles das primeiras décadas, tal obscurecimento tem se mostrado resistente ao longo dos anos. Sobre isso Mann afirma que

(...) um debate raivoso e negações acaloradas ainda acompanham qualquer abordagem de um relacionamento homossexual entre Cary Grant e Randolph Scott (...) Um perfil televisivo de César Romero no ano 2000 ainda nos parece um artigo de revista do ramo dos anos 40, jamais mencionando que era gay e mencionando a sua dedicação à irmã' como o motivo pelo qual jamais se casou. Vanity Fair – logo ela – publicou recentemente artigos nos quais se procurou situar Claudette Colbert e Adrian (Adrian!) como heteros. (...) Até mesmo o autor de um recente livro sobre Roman Novarro hesita nitidamente em insinuar um relacionamento romântico sexual entre o astro e o jornalista Herbert Howe, apesar da prosa efusiva de Howe, e as lembranças de outros de que houve o romance. (...)

(p.xix-xx).

Uma segunda contribuição do livro diz respeito ao debate sobre a subversão das normas e a flexibilidade do poder. É verdade que o domínio das artes constitui um campo com regras específicas que regulam a dinâmica da aceitabilidade estética, como bem salienta Pierre Bourdieu.2 Com grande freqüência uma das normas constitutivas desse campo é a "compulsoriedade da heterossexualidade", seja uma heteressosexualidade efetiva seja dissimulada. Ao mesmo tempo este campo apresenta espaços de constestação de suas normas, assim como também reserva áreas internas, ainda que periféricas, nas quais se movimentam agentes que não se coadunam com os padrões estabelecidos, mas que se beneficiam deles e contribuem para a sua manutenção. Embora Mann não inscreva sua análise nesse tipo de orientação teórica, seus achados corroboram essa perspectiva. Referindo-se ao status dos homossexuais na indústria cinematográfica dos anos 20, por exemplo, ele afirma que esta não só

os tolerava, mas eles eram na verdade integrados na própria estrutura do florescente sistema de estúdios. Se os magnatas estavam tentando recriar os valores e ideais da classe média, sabiam que os gays eram aliados importantes nessa tentativa. Não importava quem ou o que eram fora das telas; só importava é que sabiam como elaborar bem o produto acabado. (...) Para os magnatas imigrantes grosseiros, os homossexuais tinham a educação e a experiência social que eles não possuíam. Em Hollywood os gays eram até necessários – fosse para acompanhar as senhoras a eventos sociais ou para desenhar cenários e trajes que assombravam a classe média americana . Sua utilidade assegurava uma tolerância de seus estilos de vida, dando-lhes liberdade de levarem suas vidas com um grau de integridade, autenticidade e aceitação social que jamais poderiam ter encontrado se tivessem permanecido em suas cidades natais e aprendido outros ofícios.(...) (p.49)

Foi de posse de parcelas de poder e capacidade de livre circulação que artistas homossexuais também asseguraram, com maior ou menor grau de discrição, a presença homossexual nos filmes produzidos.

Sem dúvida, momentos posteriores mostraram-se bastante restritivos à circulação de imagens e à expressão pública de comportamentos homossexuais, notadamente a partir da elaboração do "Código de Produção" cinematográfica – uma exigência de segmentos conservadores quando do movimento de reordenamento das normas de gênero na sociedade americana pós-depressão de 1929 – e do movimento de perseguição às atividades consideradas contrárias aos valores americanos capitaneadas pelo senador Joseph McCarthy após a Segunda Guerra Mundial, conforme Mann deixa bem caracterizado nos capítulos intitulados "O Espírito da Guerra" e "Socialistas, Comunas e Transviados". Nessas duas conjunturas, nas quais a homossexualidade tornou-se objeto de sanção em diferentes esferas (pensemos na demissão sistemática de homossexuais do Departamento de Estado Americano sob pretexto de preocupação com a segurança nacional), participar de, e produzir, filmes com a presença de personagens homossexuais ou mesmo a menção a homossexualidade tornou-se atividade perigosa e às vezes ilegal.3 Os mecanismos de controle de exibição incluíram a censura prévia e o banimento daqueles/as envolvidos neste fazer. Assim, artistas em ascensão viram suas carreiras acabarem subitamente, outros já renomados foram deslocados para lugares secundários do estrelato, e vários aspirantes sequer puderam ter sua primeira chance. Mas mesmo em tais contextos muitos homossexuais conseguiram assegurar nichos de poder e manifestar-se como tais, como fica explícito nos capítulos "Teorias Autoriais", "Trabalho Transviado" e "Os Ousados". Nesses momentos, desafiando censores e outras autoridades, produtores e diretores, conseguiram, através de diferentes recursos estéticos, manter a presença gay nos filmes produzidos, ainda que isso tenha requerido uma redefinição do tipo de homossexual apresentado.

Outra contribuição de Mann é apontar para as características das formas de sociabilidade homossexual em Hollywood. Uma das questões por ele destacada é o fato de que tal subcultura se formou na região em função do grande fluxo de indivíduos homossexuais vindos de pequenas cidades e de outros centros urbanos, os quais em grande medida tinham em comum a busca da independência e da possibilidade de vivenciar de forma mais livre seus desejos sexuais. Bares, restaurantes, festas privadas eram algumas das instituições dessa subcultura, as quais sobreviveram mesmo em momentos os mais repressivos. Sobre isso Mann afirma:

Na verdade, os bares gays já faziam parte do cenário hollywoodiano desde 1929, quando Thomas Gannon abriu o Jimmy's Back Yard na Ivar Street na véspera de do Ano Novo. Com a Lei Seca ainda em vigor, os estabelecimentos oficialmente não serviam álcool, mas os contrabandistas e os traficantes de cocaína mantinham os freqüentadores bem abastecidos. Harry Hay se lembraria de ver os nomes de Hollywood entre a multidão nesses clubes, entre eles Haines e Edmund Lowe. (...) Outros lugares parecidos incluíam o Freddy's e o Allen's, ambos alvo de batidas devido à sua fabricação caseira de gim. "A gente vivia de orelha em pé, para descobrir qual seria a casa nova que abriria, mais ou menos a cada seis semanas", disse Hay (p.182). [Salientando a persistência de uma subcultura homossexual nos anos 30, ele diz] (...) apesar dos problemas, os veados e lésbicas têm tanto jogo de cintura quanto qualquer outro grupo. Aliás, em 1937, um repórter trabalhando disfarçado escreveu um artigo bastante minucioso para o Los Angeles Evening News intitulado: "Namoro Noturno: Os Homossexuais", no qual observou, "São uma tribo, com rituais e redes de informação próprias. Conhecem-se entre si por meio de sinais secretos até mesmo quando sua tragédia é oculta do público". A vida gay continuava, embora no submundo. (p.306)

Embora a experimentação sexual e o lazer fossem componentes centrais dessa subcultura, o trabalho de Mann nos permite ver que eles não esgotavam a sua dinâmica e estrutura. Além disso, a subcultura gay hollywoodiana estruturava-se em torno de uma rede de apoio social, econômico e afetivo aos seus membros. Nela, relações amorosas foram estabelecidas, carreiras foram impulsionadas, amizades duradouras foram construídas.4 Nesta reflexão, Mann claramente segue os passos e consolida as observações de George Chauncey no seu magistral Gay New York. Gender, urban culture, and the making of the gay male world – 1890-1940.5 Neste trabalho, Chauncey deixa claro que, ao contrário de diversas afirmações, uma cultura tipicamente homossexual não foi uma invenção do pós-Stonewall. Ele mostra que já na década de 1920 florescia em New York uma rede de bares, casas de banho, casas de dança, restaurantes que atendiam a uma clientela exclusiva ou majoritariamente homossexual, permitindo a eles um padrão de interação significativo o qual também extrapolava a questão da gratificação sexual.

Ao seguir essa linha de análise Mann também põe em causa uma outra hipótese corrente sobre a homossexualidade no início do século: a do inevitável enrustimento ou isolamento dos gays. Não se trata de negar que os homossexuais tenham sido forçados a esconder, pelo bem das carreiras, suas orientações sexuais. Sem dúvida, salienta Mann, que não assumir-se e mesmo forjar uma identidade heterossexual era estratégia comum na Hollywood gay em boa parte do período histórico abarcado pelo seu livro. Tal estratégia, contudo, dividia espaço com formas mais difusas de inserção social, nas quais casamentos obviamente arranjados não impediam a freqüência a bares gays, por exemplo. Complexificando essa questão, a possibilidade de transitar pelos diferentes níveis, de "assumir-se", estava ligado diretamente ao grau de estrelato do artista. Referindo-se a um artista da década de 1920, Mann afirma:

O importante é o fato de que a indústria certamente sabia que Taylor tinha relações com homens e mulheres, e mesmo assim Taylor tinha grande influência, autoridade e prestígio. Podia arriscar-se a se sentar ao lado de outro homem na primeira fila aplaudindo Mary Garden. A indústria tolerava e protegia seu "segredo". (p.64)

Assim, ele sugere que o processo de aceitar-se como homossexual e viver coletivamente como tal antecedeu bastante as lutas liberacionistas homossexuais iniciadas na década de 1950 e aprofundadas nos anos de 1960 e 1970.

Não se pode dizer que o livro de Mann constitui uma leitura agradável. Apesar do autor afirmar na introdução a existência de um padrão de história familiar presente entre os sujeitos estudados, a descrição excessiva de aspectos biográficos não problematizados de uma série de indivíduos pouco relevantes à discussão proposta é um dos aspectos negativos do texto, tornando-o quase entediante. Já a tradução, que, às vezes, chega a ser jocosa, além dos erros de ortografia e concordância, obscurece algumas passagens ao não produzir as equivalências entre a linguagem sub-cultural gay americana e sua equivalente brasileira. A ausência de estabelecimento de relações mais consistentes entre a produção dos filmes e o contexto histórico também empobrece o trabalho, ainda que se leve em conta que o mesmo não tenha sido escrito por um historiador profissional. A despeito disso, o livro sugere tópicos de investigação e dá contribuições relevantes para o campo dos chamados "estudos gays e lésbicos" e possivelmente tornar-se-á uma referência para os interessados nos caminhos – difíceis – trilhados por gays, lésbicas e transgêneros nos estúdios e telas de cinema e alhures.


* Resenha de MANN, William J. Nos Bastidores de Hollywood. A influência exercida por gays e lésbicas no cinema 1910-1969. São Paulo, Landscape, 2002. (Tradução: Celina Cavalcante Falck. Revisão de Walter Corrêa.)
1 New York, Perennial Press, 1987.
2 BOURDIEU, Pierre. Distinction: a Social Critique of the Judgment of Taste. Cambridge, Harvard University Press, 1987.
3 Para um exame da experiência homossexual sob o macartismo cf. DUBERMAN, Martin. About Time: Exploring the Gay Past. New York, Meridian, 1991.
4 Obviamente, isso não elimina os aspectos excludentes e nada protecionistas da subcultura homossexual como o próprio Mann e outros autores demonstram. Não elimina, por exemplo, a clara distinção assumida por muitos homossexuais entre aqueles tidos como verdadeiramente sofisticados e aqueles de origem proletária.
5 New York, Basic Books, 1994. Outras pesquisas nesta direção incluem D'EMILIO, John. Sexual politics, sexual communities. Chicago, University Press, 1983 e NEWTON, Esther. Cherry Grove, Fire Island. Sixty years in America's first gay and lesbian town. Boston, Beacon Press, 1993.

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