terça-feira, 3 de novembro de 2009

O charme da ciência e a sedução da objetividade


Daniel Faria*



BRESCIANI, Maria Stella Martins. O charme da ciência e a sedução da objetividade. Oliveira Vianna entre intérpretes do Brasil. São Paulo: UNESP, 2005.

Por que alguém dedicaria uma vida intelectual ao estudo da obra de Oliveira Vianna?

Esta pergunta pode vir à mente de quem encontrar o livro de Maria Stella Bresciani. A professora do Departamento de História da Unicamp, autora de importantes artigos e livros nas áreas de história contemporânea, história das cidades e história política, apresenta em seu novo trabalho o resultado de anos de pesquisas em torno da obra do citado autor. A historiadora dividiu seu trabalho em duas partes: a primeira dedicada aos lugares-comuns compartilhados entre o autor e outros "intérpretes do Brasil", como Sérgio Buarque de Hollanda, Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro, e a segunda voltada à análise do diagnóstico dos supostos males nacionais apresentados na obra do autor de A Evolução do Povo Brasileiro.

Para responder à questão inicial desta resenha, que diz respeito à abrangência historiográfica de um livro sobre um autor específico, muitas vezes simplesmente esquecido, é preciso se levar em conta o sentido político do próprio esquecimento no Brasil contemporâneo. Trata-se de uma estratégia política e intelectual recorrente, e até certo ponto eficaz, de ocultamento de práticas e discursos autoritários. Assim, por exemplo, a atual fase democrática do País parece, hoje, ter sido desde sempre anseio quase unânime da sociedade, com a única exceção dos militares. Na afirmação categórica de que vivemos definitivamente outros tempos, esquecemo-nos, por exemplo, de que os desaparecidos políticos da ditadura continuam desaparecidos na democracia.

No caso do livro de Maria Stella Bresciani, o tema do autoritarismo não perfaz o eixo central da discussão, isto apesar de a autora constantemente apontar as implicações políticas da obra de Oliveira Vianna – aliás, explicitadas pelo mesmo intelectual. E, sobretudo nos capítulos finais, mostrar o trânsito entre as imagens da "realidade nacional" e os projetos de instauração de uma sociedade solidarizada a partir de laços produzidos no mundo do trabalho.

Mais importante, no livro, é a indicação de que as diversas interpretações do Brasil devem ser lidas à luz dos projetos políticos peculiares aos seus autores. Projetos mais ou menos definidos, mas que sempre indicam o sentido pragmático das teorias apresentadas. Portanto, interpretações não entendidas como meras tentativas de descrição de uma dada realidade. E mais importante ainda é o fato de tais interpretações se constituírem a partir de alguns lugares-comuns encontrados em intelectuais das mais diversas perspectivas políticas. Lugares-comuns que perpassam obras de autores como Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Paulo Prado, Darcy Ribeiro e Oliveira Vianna.

Destes lugares-comuns apontados pela autora participam as idéias de que a natureza dos trópicos é adversa à civilização, de que a população brasileira tem características sociais, culturais e psicológicas contrárias à imagem da maturidade política cidadã atribuída ao liberalismo, de que as elites intelectuais do País limitaram-se a importar modelos teóricos e idéias européias, sendo portanto incapazes de enxergar a "realidade nacional". Monta-se assim um quadro de carências constitutivas da história brasileira, as quais teriam como dimensão afetiva, na visão da autora, o ressentimento com relação ao país que insistiria em "não dar certo". Aos lugares-comuns e ao ressentimento soma-se ainda a autoproclamada tarefa dos intelectuais como aqueles que deveriam indicar o caminho a seguirmos, apontando falhas e vícios de formação do País e desvelando as possibilidades da realidade encoberta.

O jogo dos lugares-comuns é exposto, no livro de Maria Stella Bresciani, a partir de incursões nas obras dos supostos intérpretes do Brasil, associadas à análise das tradições intelectuais que forjaram o vocabulário e os procedimentos ali encontrados (dentre as quais destacam-se os estudos sobre usos e costumes do século XVIII, a obra historiográfica de Taine e a psicologia social de fins do século XIX e começo do XX). A autora discute, ainda, o modo como as idéias apareceram nos estudos dos intérpretes do Brasil mediante o recurso a imagens de forte impacto emotivo, mas em discursos simultaneamente dotados da expectativa da certeza conferida à ciência. E esta parece ser a sedução da objetividade, o charme do método que dá foros de verdade a conclusões que seriam de fato pressupostas pelos intelectuais.

A obra de Oliveira Vianna entra no livro como exemplo de articulação complexa deste jogo de idéias e sentimentos, sustentada pela imagem da neutralidade científica que nada mais é senão a projeção da aposta numa intelectualidade desinteressada como redenção da política. Mas, e isto é fundamental, não como exceção à regra, ou fuga aos padrões das interpretações do Brasil. Talvez por isso, sobretudo na primeira parte do livro, o leitor tenha a sensação (aliás, pertinente e repleta de implicações) de que a obra de Maria Stella Bresciani não é um estudo sobre Oliveira Vianna. O autor participa como voz privilegiada de um conjunto de vozes ainda hoje consideradas "intérpretes do Brasil": o foco do livro é o jogral dos lugares-comuns encontrados nas mais diversas interpretações.

À primeira vista, esta preocupação em discutir tais lugares-comuns, na estratégia da autora, que optou por desfazer uma trama intelectual recompondo os fios de um percurso de idéias, teorias e sentimentos, pode parecer voltada unicamente para o passado, este outro lugar. Isto porque um dos lugares-comuns de nossos dias nos ensina que não existem mais intérpretes do Brasil, dada a atual fragmentação do conhecimento e a desconfiança com tudo que remete à totalidade. O problema é que, mesmo que as interpretações do Brasil tenham perdido a centralidade de que elas outrora desfrutaram, seus lugares-comuns seguem informando a historiografia – e comparecendo aos discursos políticos, porque tais interpretações ainda existem: o livro de Darcy Ribeiro é de 1995, e cito como exemplo não discutido pela historiadora, não sem uma certa dose de razão, os livros de Roberto DaMatta, de certa repercussão nos meios intelectuais e midiáticos.

Alguns exemplos: a projeção da imagem das elites importadoras de idéias liberais e européias segue pautando os mais diversos estudos de histórica cultural da Primeira República, segue indicando modos de ler autores como Machado de Assis e os modernistas; a imagem da incapacidade política da população segue indicando as qualificações do "populismo" no Brasil contemporâneo, e assim por diante.

Recentemente, o debate sobre as cotas nas universidades reacendeu as polêmicas em torno da tradição modernista e da obra de Gilberto Freyre – constantemente "resgatadas" (em metáfora anódina mas reveladora de um projeto de retomada dos lugares-comuns). Nestes casos, imagens sobre as supostas origens da nação, sobre as relações entre a casa-grande e a senzala, sobre a cultura nacional "antropofágica" são constantemente mobilizadas no sentido de sustentar as mais diversas opiniões. Tudo isso indica que os lugares-comuns discutidos pela autora estão bem presentes.

Diga-se de passagem que, em se tratando de questão racial, Oliveira Vianna é também considerado expressão mais ou menos isolada de um racismo superado pela antropologia cultural, que teria sido aqui inaugurada por Gilberto Freyre. Em seu livro, Maria Stella Bresciani analisa detidamente as formulações de Oliveira Vianna para a questão racial. Sua análise aponta para uma discussão que ainda merece um maior aprofundamento: o conceito de cultura precisa ser avaliado com o mesmo rigor que o de raça, uma vez que, remetendo aos costumes e usos de uma população (estes, traçados pela escrita de um observador dotado da sedução do método dito científico), instaura o mesmo tipo de imagens para o desenho de uma sociedade em sua vida não-política. Os conceitos de raça e cultura trazem a marca de uma mesma filiação romântica, tão bem discutida pela autora na análise da historiografia voltada para usos e costumes, o que poderia levar à conclusão de que uma antropologia culturalista não é incompatível com uma atitude politicamente racista.

Discutindo lugares-comuns, Maria Stella Bresciani desfaz certezas, realizando aproximações surpreendentes. Remetendo-nos ao conhecido prefácio de Antônio Cândido a Raízes do Brasil, em que o autor afirmava a centralidade de três intérpretes do Brasil dos anos 1930 para sua formação intelectual (Sérgio Buarque, Gilberto Freyre e Caio Prado Júnior), a historiadora mostra como o texto, que tinha certo teor de testemunho, foi erigido como evidência. Evidência que teve como resultado o isolamento da obra de Oliveira Vianna por parte dos estudiosos da tradição intelectual do Brasil, como se ela fosse meramente desviante.

Apenas como mais um exemplo neste sentido, cito uma passagem da minha pesquisa de doutorado. Freqüentando a biblioteca de Mário de Andrade no IEB/USP, fiquei surpreso com a quantidade de obras de Oliveira Vianna presentes no acervo do autor. De tudo o que li sobre Mário, nada indicava a existência de qualquer diálogo com as obras daquele cientista social – talvez porque a apresentação de tal diálogo imediatamente abalaria as certezas sobre o outro lugar concedido ao autoritarismo na memória modernista.

Podemos, enfim, retomar a questão inicial: por que alguém estudaria com tal afinco a obra de Oliveira Vianna. O livro de Maria Stella Bresciani dribla as expectativas iniciais do leitor. Alguém educado nos lugares-comuns das interpretações do Brasil, recorrendo às obras de Gilberto Freyre ou Sérgio Buarque, talvez parta em busca de constatações, de confirmações dos pressupostos já naturalizados sobre a identidade nacional. O mesmo não ocorre tão imediatamente quando o assunto é Oliveira Vianna, este encontra o leitor em estado de alerta, predisposto à dúvida. Isso faz com que se perceba que as constatações são esperadas nos outros autores por terem se tornado lugares-comuns. A dúvida votada exclusivamente a Oliveira Vianna se dissemina pelas outras interpretações do Brasil. E esta é a grande mudança de sentido realizada pelo livro aqui resenhado, de constatações a lugares-comuns: verdades construídas historicamente, mas naturalizadas como fundamento do senso comum.

Após a leitura do livro de Maria Stella Bresciani, talvez alguém pudesse ser levado a pensar que a alternativa seria a construção de outra identidade nacional, não ressentida, mas afirmadora e otimista. Isto apesar de a autora deixar bem claro que não se trata disso. As inquietações apresentadas em seu trabalho vão noutro sentido, o de se repensar criticamente na naturalidade da nação como fundamento contemporâneo da política e como horizonte da historiografia – enfim, como justificativa última para a existência de intelectuais, pessoas devotadas à atividade algo exótica de ler e escrever.


* Pós-doutorando pela Unicamp, com o projeto "Política e escrita no Brasil dos anos 1930-1940: a antitradição alienada do modernismo", financiado pela FAPESP. Cep:13083-970. e-mail: krmazov@hotmail.com

Revista Historia - UNESP

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