domingo, 2 de agosto de 2009

SUBÚRBIO


FERNANDO BONASSI

O estranho no ninho
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
o escritor e roteirista premiado, Fernando Bonassi, 35, saído da Escola de Comunicação e Artes (USP), com raízes na Moóca, não quer ser apenas o documentarista da triste miséria, no corpo e na alma, que toma conta do cotidiano da classe média baixa paulistana. Ainda que o conheça de perto, busca o olhar do estranho no ninho, visível em ''Céu de Estrelas'', misto de tragédia passional e crônica de polícia, levado ao cinema por Tata Amaral.
Apesar de jovem, Bonassi já publicou muito. No conjunto, ainda é ''Subúrbio'', de 1994, o volume mais bem realizado de sua produção. Romance desdobrado em duas partes, a primeira dedica-se a armar a cela de modorra e hostilidade em que convivem, na periferia paulistana, presos um ao outro, dois velhos, homem e mulher, esquecidos de todos e de si mesmos, especialmente do tempo em que foram um do outro.
O imobilismo exacerbado pelo silêncio, o nada de novo sob o sol agravado pela falta de perspectiva, estão inscritos nas coisas (a casa, exígua e abandonada, as roupas puídas, a despensa disparatada) e na rotina, feita de rituais gastos e constantes humilhações, que evidenciam, pelo avesso, o sem sentido do tempo anterior aos fatos narrados.
Calados os desejos, o que resta para além da decrepitude é a guerra surda do casal. A sugestão de mudança vem na segunda parte, na pele de uma menina, sopro de vida que faz aflorar no velho as vontades amortecidas, apenas para conduzi-lo à revelação final da extensão de sua desgraça.
A correção, quase sociológica, com que se monta o retrato, não exclui certa previsibilidade e uma dose de redundância, decorrentes em grande parte da própria matéria da história. O acúmulo de lugares-comuns do subúrbio _catálogos de queixas, cacoetes, frases feitas e objetos_ efetivamente contribui para sugerir o travamento que toma conta destas vidas embotadas. O lento e, depois, vertiginoso movimento da história, a partir do encontro velho-menina, é ilusório. Apesar da tragédia pessoal, reencaminha as coisas para o seu velho estado de sempre. Prejudicado pelo excesso eventual nas descrições, na calibragem do grau de redundância necessário à sua economia narrativa, ''Subúrbio'' mostra um narrador habilidoso, que poderia ter exercitado mais o corte, num livro que representa bem um universo de atrofia simbólica.
O sentido do diálogo, apanhado no ar, enxuto e exato, lembra Dalton Trevisan (as falas são suporte de insatisfação ou perversão, mais que meio de comunicação), também observador do patético e do sórdido nos bêbados de botequim, da pequenez das tragédias domésticas e do imaginário dos aposentados de pijamas. Mas não é neste romance que o parentesco aparece mais acentuado, senão nas recentes ''100 Histórias Colhidas Na Rua'', microcontos que concentram, com ênfase especial no grotesco e na violência nauseante, a mesquinharia patética do mesmo universo. Poucos ultrapassam a contundência da meia página, compondo, em mosaico, um caderno de esboços da vida como ela é.
É sintomático que a publicação destes instantâneos tenha se prolongado na colaboração semanal à imprensa. Para que não seja engolida pelo noticiário, a ficção deve ser mais que mero reflexo ou denúncia necessária.
A escrita seca, o registro diagramático do ''fait divers'' deslocado para os cadernos de cultura são em si um comentário crítico, como também é o recorte incisivo, caricato, de aspectos reveladores das ''ocorrências''.
Isto não impede, contudo, que o ar de família que liga as várias histórias acabe por criar a sensação anestesiante do já visto, diluindo-as num painel que atenua o choque, à maneira da recorrência da notícia de jornal.
Já ''O Amor é Uma Dor Feliz'' foi concebido com endereço certo: o público ''juvenil'', esta abstração menos convincente ainda do que o segmento infantil (Bonassi colabora na Folhinha e em bem-sucedidos programas para crianças da TV Cultura). No romance recém-lançado, escolheu a narração em primeira pessoa, confessional, destoante da secura de linhagem graciliânica, objetivista, de ''Subúrbio'' e das ''100 Histórias''. Assim, o percurso de um adolescente dá as deixas para a identificação catártica e imediata com o inconformismo arredio e defensivo do protagonista _ingresso na faculdade, primeira transa, primeiro emprego.
Está ele às voltas com o choque entre dois mundos, aparentemente estanques e igualmente decepcionantes. O que fica para trás é a mesmice doméstica sofrida de uma família proletarizada; o que se anuncia é a convivência desconfiada com os filhos da elite, numa universidade.
Paradoxalmente, a colagem não filtrada de reminiscências pessoais faz o livro menos pessoal e seu protagonista menos acabado do que os velhos anônimos de ''Subúrbio''. Sua identidade desmancha-se na oferta generosa de referências objetivas, claramente decifráveis (como uma Escola de Informação e Artes, encobrindo, sem querer esconder, a de Comunicação e Artes), concessão à avidez dos leitores pela história que ''de fato'' se passou, supostamente mais impregnada de verdade. Bonassi cede aqui à tentação de subornar possíveis leitores reticentes (rótulo que se aplica à idéia feita da ''juventude'') com a reafirmação dos mitos que alimentam a auto-imagem dos jovens.
Comercialmente promissora, esta vertente não acrescenta muito ao narrador urbano, que, transitando entre as telas e as páginas, segue amadurecendo em raia própria.

Fábio de Souza Andrade é professor de teoria literária na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autor de ''O Engenheiro Noturno - A Lírica Final de Jorge de Lima'' (Edusp).

Folha de São Paulo

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