sábado, 8 de agosto de 2009

Os Desbravadores: a Petrobrás e a Construção do Brasil Industrial

Sede da PETROBRAS - RJ


GABRIEL COHN

Os Desbravadores: a Petrobrás e a Construção do Brasil Industrial
Carmen Alveal
Relume-Dumará/Anpocs, 243 págs.

Fazia falta um livro como este. Uma análise cuidadosa e conduzida com rigor analítico sobre a Petrobrás. E quando aqui se diz Petrobrás, leia-se Petrobrás mesmo, e não política energética ou qualquer outro tema no qual ela figurasse meramente como parte, ainda que importante. A empresa estatal brasileira de petróleo é de fato o sujeito da análise que a cientista política e economista chilena Carmen Alveal apresenta neste livro, que tem por base tese apresentada ao Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e premiada pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs). Que se trata de tese, e das boas, é a primeira coisa que se descobre na leitura, pela sólida construção e fundamentação. Mas também se descobre pela inconfundível linguagem um tanto pedregosa; um obstáculo que certamente vale a pena superar, pelo muito que o texto tem de inovador e instigante.
A referência mais ampla do livro é ao Setor Produtivo Estatal e a mais restrita é à atuação (e não tanto à formação ou à organização) das elites empresariais do Estado no Brasil. O período de referência é o posterior a 1964, quando, segundo a autora, se criaram as condições para o fortalecimento dessa contrapartida empresarial do poder do Estado que é o ``Leviatã produtivo". Mas o centro das atenções está nesse ``ator" especial, a própria Petrobrás. E esta, dada a natureza da análise, identifica-se com os seus quadros dirigentes. Trata-se de ator no sentido forte, de sujeito. Vale dizer, de uma entidade não só capaz de definir sua própria identidade como de construir um projeto estratégico ou uma estratégia própria. Sobretudo, de uma entidade que, na expressão da autora, opera como ``um agente consciente da centralidade ou relevância" do seu papel histórico. É a busca dessa centralidade pela Petrobrás como ator político que forma a trama básica do livro.
O livro narra e submete à análise os esforços mais ou menos bem sucedidos dos quadros dirigentes da Petrobrás no sentido de assegurar uma posição de protagonista para a empresa no jogo das interações de que participa, com as instituições do Estado e com setores empresariais privados. Mostra ainda como essas interações se dão num cenário que se vai alargando do campo nacional para o internacional. Sobretudo, demonstra a gradativa mudança dessa posição central para uma posição de intermediação, ainda que privilegiada, de relações envolvendo os outros atores. O movimento vai da centralidade à mediação, num processo em que o ator principal, essa empresa-sujeito, vai redefinindo suas estratégias na tentativa de manter a iniciativa em jogos cada vez mais complexos e em condições cada vez mais difíceis.
Não se trata de reconstrução histórica. Afora algumas rápidas alusões, a criação e os primórdios da empresa não interessam à autora. Na realidade, as referências históricas constituem as únicas passagens do livro em que ela relaxa o seu rigoroso controle sobre os dados e as fontes. Aceitar, como faz, que os nacionalistas não queriam menos do que a autosuficiência no setor é atribuir-lhes ambição demasiada; e mesmo em nota de rodapé é arriscado mencionar sem mais que Vargas pudesse ter sido ``suicidado" pela Standard Oil. Mas não é a história que importa. Importam os cenários de formulação e implementação de estratégias, por atores cujo poder relativo se modifica ao longo do tempo (se se quiser encontrar dimensão histórica na análise, será esta) e dos quais um _exatamente a Petrobrás_ luta pela centralidade da sua posição em cada momento da sua trajetória. Para reconstruir esse esforço a autora se vale com muita criatividade da imagem de ``Jano bifronte" dos atores estatais, que têm uma face voltada para outros atores do Estado e uma segunda face, voltada para atores da sociedade. Do adequado direcionamento dessas suas duas faces, os atores estatais retiram as condições para sua autonomia de movimentos e para se apropriar de recursos de poder.
Um dos pontos fortes do livro encontra-se na demonstração de como o auge da centralidade da Petrobrás nos cenários em que se movia ocorreu nas conjunturas em que foi capaz de beneficiar-se de duas circunstâncias. A primeira consistia na possibilidade de fazer uso de recurso que a sua condição bifronte lhe propiciava: a tática da ``face oposta", pela qual exibia para seus parceiros privados sua face estatal e para seus parceiros estatais a sua face privada. Poder do Estado para uns, eficiência empresarial para os outros. A segunda tinha a ver com uma condição política muito particular, que desempenha papel muito importante na explicação que a autora oferece dos êxitos da estratégia da Petrobrás.
Trata-se de operar em cenários em que na prática só havia dois outros atores relevantes, ambos bem definidos e identificados: as instituições do Estado e os grupos empresariais privados, em seus diversos níveis de organização. Ou seja, em cenários marcados por um regime político autoritário, propício às práticas ``tecnocráticas". E as elites dirigentes desse ator-padrão do ``Leviatã produtivo" caracterizam-se justamente pelo incremento da sua competência técnica mais do que política. Sobretudo se entendermos política num sentido específico do termo: o de saber manter a iniciativa em confrontos de interesses naquilo que a autora denomina ``cenários abertos".
A autora optou por concentrar a análise no período de auge da presença da Petrobrás nos jogos de poder em que se decidiam questões cruciais para o que denomina, no subtítulo, ``construção do Brasil industrial". Isso acaba deixando na penumbra o período anterior a 1964, em que, aliás, a empresa enquanto ator político encontrava-se num ``cenário aberto", só que diferente do cenário da transição democrática. É uma pena, porque o confronto entre o pré e o pós-64 lançaria mais luz sobre a comparação entre o período autoritário e o que se abre no final dos anos 80.
Antes de 64, a Petrobrás não atuava somente na figura dos seus quadros dirigentes mas projetava-se na praça pública (literalmente) por intermédio de seus quadros técnicos intermediários e de seus trabalhadores, ambos em crescente grau de organização. Mobilizavam-se na manifestação política e na busca de influência na formulação de estratégias os seus segmentos mais radicais na defesa corporativa da empresa, conforme sua concepção mais nacionalista: sua ``guarda pretoriana", como dizia na época o jornalista Hermano Alves. Foi a ``assepsia" desses quadros pelo regime militar que abriu internamente o espaço para a centralidade de quadros dirigentes tecnocráticos-empresariais, habilitados ao uso eficaz da tática das ``duas caras" na interação com o setor público (que inclui os outros segmentos do Setor Produtivo Estatal) e o setor privado. É de se suspeitar que, antes de ser bifronte, o Leviatã produtivo era proteiforme, e tinha tantas caras quantas o regime político de inspiração populista lhe permitia.
É sempre desleal exigir, numa resenha, que a autora fizesse mais do que já fez; sobretudo quando já fez tanto como neste caso. Mas as questões que suas análises suscitam são fascinantes, especialmente quando incidem sobre as relações entre o desempenho dos atores de ponta do Setor Produtivo Estatal e o regime político. A Petrobrás organizou-se no período pós-64 para tirar o máximo proveito da sua condição de ator de peso em cenários políticos ``fechados" e parece ter dificuldades para adaptar-se a cenários ``abertos". Isso é significativo, mas é preciso cautela no seu exame relativamente ao tema da democracia.
Claramente os complexos empresariais privados também se dão muito bem em ambientes políticos protegidos de injunções externas e propícios aos ``jogos cooperativos", em que todos os parceiros se beneficiam (como foi claramente o caso das relações Petrobrás-setor privado no auge da atuação do Leviatã produtivo bifronte). Mas quando o ator público vê esmaecerem-se os traços da sua face estatal, o seu poder de fogo diminui, e ele é levado a jogar com a mesma cara que a do parceiro: a cara da lógica empresarial, que se foi impondo à Petrobrás após os anos 70. E aqui há o risco de se exigir do ator estatal o que não se exige do ator privado: a democratização das formas de atuação, a sua efetiva condição pública. Com isso, o ator estatal, no caso a Petrobrás, paga pelo que fez e pelo que não fez, e seus parceiros se beneficiam sempre, sem ônus.
Há muito para discutir nessa área, como há estímulos de sobra para debates interessantes neste livro, que tem tudo para ser por longo tempo uma referência sobre o tema.

GABRIEL COHN é professor do departamento de ciência política da USP e editor da revista ``Lua Nova", do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec)

Folha de São Paulo

Nenhum comentário:

Postar um comentário