domingo, 2 de agosto de 2009

O CORTESÃO


PETER BURKE

A arte do engano
LUCIA WATAGHIN
saiu recentemente a tradução de um interessante estudo de Peter Burke, ''As Fortunas d'O Cortesão''. Pouco tempo depois, publicou-se a tradução portuguesa de ''O Cortesão'' de Baldassare Castiglione, um clássico da Renascença italiana, sem o que a publicação do livro de Burke permaneceria um paradoxo para o público brasileiro.
O estudo de Burke é uma brilhante história da recepção européia ao clássico italiano. Uma história da recepção de ''O Cortesão'' é muito bem-vinda porque nós, leitores modernos, somos leitores de leitores de leitores: sabemos que um texto é modificado, nos séculos, pelos seus leitores. Parodiando Borges, pode-se dizer que ''O Cortesão'' não é exatamente ''O Cortesão'' imaginado por Castiglione: é de Carlos 5º, de Giorgio Vasari, de Torquato Tasso, do papa Júlio 2º e assim por diante.
Excelência é o conceito-chave desse livro, cujo propósito é descrever o perfeito cortesão. Como nos lembra Burke, a palavra ''excelência'' é um equivalente (imperfeito) do grego ''areté'' (do qual deriva ''aristocracia''), termo que definia as qualidades do aristocrata, daquele que excele acima de todos e, portanto, é o mais digno de governar. O objetivo de Castiglione é descrever o fidalgo ''excelente'' das cortes renascentistas, um aristocrata cuja função se limita a servir o príncipe (e não mais diretamente a governar) e é, ainda por cima, ameaçada de extinção pela formação das monarquias absolutas (em 1530, dois anos após a publicação de ''O Cortesão'', Carlos 5º era coroado imperador em Bolonha, determinando assim o fim das cortes como aquela descrita no livro de Castiglione). Se o livro descreve um mundo que está acabando, o cortesão Castiglione não tem maior sorte: ele é, por ironia do destino, embaixador do papa junto a Carlos 5º justamente quando este decide o saque de Roma (1527), evento extremamente traumático para a Itália, que vê, com o fim da invulnerabilidade da cidade do papa, uma indicação do fim da independência dos vários Estados italianos.
Nesse mundo, talvez seja natural que as reflexões apontem para o conflito realidade/aparência. De fato, o mais urgente problema filosófico do cortesão parece partir, quase de todos os lados, do reconhecimento de que a realidade social se constitui sobre uma série de enganos e ilusões, porque o comportamento de cada um baseia-se em opiniões e impressões. A solução do problema é retórica: se o mundo se funda no engano, o homem deve se tornar mestre na arte do engano, ou melhor, da persuasão. ''O Cortesão'' é um tratado sobre a arte de persuadir, sobre a arte de impressionar. Nesse sentido, é uma nova codificação de valores expressos pela tradição clássica, e particularmente de dois textos fundamentais: a ''Ciropédia'' (''A Educação de Ciro''), de Xenofonte, e o ''Orator'', de Cícero.
Para dar um exemplo, Burke trata parte do percurso do famoso conceito de ''sprezzatura'', condição indispensável à ''graça'' da qual o cortesão deve ser dotado. De acordo com o tratado de Castiglione, o homem da corte deve ''usar em cada coisa uma certa 'sprezzatura' (displicência) que oculte a arte e demonstre que o que se faz e diz é feito sem esforço e quase sem pensar''. Tal ''naturalidade artificial'', ou ''espontaneidade simulada'', tem precedentes na ''neglegentia diligens'' já proposta por Cícero e Ovídio, e é análoga também a uma qualidade do comportamento do ''homem magnânimo'' de Aristóteles. Esse conceito, que tem raízes profundas no mundo clássico, foi retomado várias vezes e é atualmente adotado como um dos modelos de comportamento na cultura ocidental.
Por outro lado, existem na história da nossa cultura, independentemente do livro de ''O Cortesão'', formulações muito parecidas com as de Castiglione. Burke relata o caso de Tolstói, que, num texto de 1857, afirmava que ''uma das principais condições de ser 'comme il faut' é o segredo em relação aos esforços por meio dos quais se atinge 'comme il faut'±''. É evidente a analogia com a idéia de ''sprezzatura'', mas com toda a probabilidade Tolstói não lera ''O Cortesão'', que ainda não tinha sido traduzido para o russo e há tempo já não era lido na França. Se Tolstói tivesse lido ''O Cortesão'', teria reconhecido naquela afirmação algo que já sabia, mesmo não o tendo lido, fato que faz pensar na famosa afirmação de Italo Calvino, segundo a qual ''toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura'': é a sensação que se sente lendo ''O Cortesão'', livro que está tão integrado na nossa cultura que nos dá a impressão de já o termos lido.
Sobretudo inicialmente, ''O Cortesão'' foi objeto de uma leitura pragmática, que o interpretou principalmente em seus aspectos relativos à estética do comportamento. Burke o demonstra, traçando uma história das edições e das anotações de uma série de leitores às margens do texto (um bom exemplo do método de pesquisa de Burke é a lista, no apêndice de seu livro, dos 328 leitores de ''O Cortesão'' de que se tem notícia antes de 1700, com a indicação da razão pela qual cada um foi inserido na lista. Constam da lista, além de leitores menos conhecidos, Francis Bacon, o imperador Carlos 5º, o papa Clemente 7º, John Locke, Miguel de Cervantes e assim por diante).
A história das edições de ''O Cortesão'' no século 16 é particularmente instrutiva a propósito de estratégias de orientação da leitura: o que procurar o leitor em edições enriquecidas por um paratexto (feito de tabelas com listas das virtudes do cortesão, notas marginais, resumos do livro, índices de ''todos os assuntos dignos de menção''), cujo objetivo era facilitar a busca, no texto, de regras de comportamento? O fato aparece ainda mais discutível quando se pensa que o tratado foi escrito em forma de diálogo, onde alternam-se personagens que afirmam um conceito e outros que o negam.
Desse modo, Castiglione define um espaço ideal em que é posto um problema, mas não chega a conclusões definitivas, e antecipa e responde a qualquer tipo de objeção direta a qualquer argumento do livro. É curioso que justamente um livro tão atento a evitar a atribuição de opiniões definitivas tenha sido lido como um verdadeiro manual de comportamento ou, como escreve Burke, ''um manual de receitas''. Por outro lado, evidentemente, um texto tão complexo e ambivalente não poderia deixar de se abrir a numerosas outras leituras: foi lido como resposta política à crise da nobreza e, mais em geral, à crise italiana; como texto humanista extremamente refinado, que constitui uma ponte entre as cortes e o humanismo e vice-versa; como evocação pessoal do mundo das cortes em agonia; e ainda foi revisitado nos aspectos ligados aos problemas específicos que enfrenta (a ''questão da língua'', questão fundamental italiana, o amor platônico, a condição da mulher porque associada à discussão sobre as virtudes necessárias à dama de palácio etc.).
A fortuna de ''O Cortesão'' foi enorme na Renascença, como atesta o número de suas traduções em várias línguas européias: é um dos cinco textos italianos mais traduzidos na Europa do século 16, época em que a cultura italiana era extremamente difundida na Europa. Em sua qualidade de livro sobre a cortesania e os cortesãos, perdeu atualidade e foi substituído por outros, já no século 16, mas sua fortuna persiste, como clássico da literatura, aberto a todas as leituras. Esta excelente tradução o devolve agora, em toda a sua ''graça'', também ao público brasileiro.

Lucia Wataghin é professora de literatura italiana na USP.


Folha de São Paulo

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