segunda-feira, 31 de agosto de 2009

A Natureza do Espaço - Técnica e Tempo, Razão e Emoção


Nasce um clássico da geografia
PAULO CÉSAR DA COSTA GOMES
este livro já nasce com a vocação de se transformar num clássico, tanto pelo projeto a que aspira, quanto pela síntese que ele é da obra de um pensador verdadeiramente original.
De fato, o projeto que inspira esta obra é o de ir, dentro de uma teoria social crítica, às raízes epistemológicas do pensamento geográfico, buscar a essência deste conhecimento, seus fundamentos, e justificar sua importância, sua necessidade e sua oportunidade. Estabelecer a natureza de uma reflexão geográfica significa reconhecer simultaneamente sua especificidade, sua identidade e sua colaboração no seio do conjunto das outras disciplinas. Significa também construir categorias analíticas independentes, dotadas de coerência e de operacionalidade. O recurso fundamental desta busca não é a costumeira reconstituição histórica, mas a discussão a respeito da natureza do objeto sobre o qual a reflexão geográfica deve se concentrar: o espaço geográfico.
Este espaço se define como sendo ''o conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ações''. Trata-se de uma ''forma-conteúdo'', ou seja, pressupõe a inseparabilidade das formas físicas e dos sentidos a elas associados _é um híbrido. Estas formas-conteúdo se transformam continuamente, pois se constituem dentro de um processo sempre em movimento e, nesta transformação, são responsáveis pela criação e pela recriação dos lugares. Segundo Milton Santos, o motor desse movimento é a divisão do trabalho, que a cada momento atribui novos conteúdos e novas funções aos lugares.
Ainda na primeira parte do livro, Milton Santos afirma que este conjunto de objetos e ações tem como principal elemento mediador as técnicas. São elas, enquanto corpo instrumental e social, que intermediam a relação do homem com a natureza. Como o objeto técnico se insere, entretanto, num conjunto ordenado e coerente de objetos, num sistema, a própria técnica constitui um meio. Não há assim um meio técnico que se superpõe ao meio natural, mas há um meio geográfico, uma ordem espacial, que dispõe estes objetos segundo critérios de contiguidade, solidariedade e coerência espacial. Da mesma forma, o fenômeno técnico é ritmo, sucessão e, por conseguinte, é uma medida de tempo. Tempo e espaço são equivalências, quando considerados sob o ângulo dos fenômenos técnicos impressos nos objetos e nas práticas de sua realização. Através desta perspectiva, vemos ressurgir uma nova alternativa na geografia, a de dissolver as recorrentes dicotomias que marcam a história do pensamento geográfico: físico/humano, geral/local, espaço/tempo.
A segunda metade do livro se dedica a aplicar estas categorias ao presente. Desde o final da Segunda Grande Guerra, teríamos entrado em um novo momento histórico, denominado período técnico-científico, o qual se intensificou nos anos 80, ao enxertar o elemento informacional, portador de grandes transformações. Este momento se caracteriza basicamente pelo ritmo frenético da inovação tecnológica, que, uma vez acessível, se legitima como inevitável e irreversível, sob o comando de uma hegemônica racionalidade instrumental. Paralelamente, há um processo de convergência trazido por esta rápida e ubíqua difusão que se estende por áreas cada vez maiores e envolve um número crescente de pessoas, gerando, na expressão do autor, uma multiplicidade de instalações e uma pluralidade de comandos. Tudo isso submetido a uma unicidade das técnicas, dos padrões produtivos, uma unicidade de um mesmo tempo, um tempo da globalidade.
A exposição deste novo momento do mundo, de um meio técnico-científico informacional, possui também o grande mérito de problematizar o fenômeno da globalização, que tem sido frequentemente vítima de raciocínios simplistas e apocalípticos. A descrição da trama dos atores que cooperam neste sistema analítico recoloca em novos patamares a relação dialética mantida entre o local e o global, ao mesmo tempo em que define as esferas destas ordens e suas interdependências. Ou, em suas próprias palavras,''cada lugar é, à sua maneira, o mundo''.
A complexa estrutura deste espaço que funde local/global, o papel das normas, o conflito de diferentes racionalidades sediadas em diferentes espaços, as redes e sua horizontalidade fundada na vizinhança ou ainda a função reguladora da verticalidade, que articula diferentes pontos no espaço, são algumas das idéias mais importantes que animam este fértil e original relato.
Este breve e insuficiente resumo das principais idéias contidas no livro não traduz, nem palidamente, a elegância e a complexidade do sistema analítico proposto por Milton Santos. Tampouco podemos ser enfáticos o bastante a propósito da descrição, efetivamente rica e instigante, que ele nos faz dos tempos atuais, a partir das categorias derivadas desse sistema. Muitas questões surgem da leitura e, sejamos precisos, as hesitações aparecem, sobretudo pelo fato de ser proposto um novo sistema de interpretação, obrigando-nos assim a revisitar algumas recorrentes discussões do pensamento geográfico, sobre a região, a escala, o território, entre outras, vistas agora sob um novo ângulo.
Por isso mesmo, este livro se constitui num convite irrecusável à reflexão, pois reanima o debate epistemológico, atualiza velhas discussões, ao mesmo tempo em que redefine a agenda temática da geografia.
Os novos tempos talvez não nos autorizem a falar verdadeiramente de uma ''Escola Brasileira de Geografia'', mas certamente nos é permitido constatar a emergência de uma comunidade geográfica madura, produtiva, atuante nas principais questões trazidas pelo contexto atual e refletindo sobre recortes temáticos cada vez mais amplos, com grande grau de precisão e justeza. Milton Santos é, sem dúvida, o personagem central desta epifania. Muito mais do que um mandarim local, este autor, internacionalmente reconhecido, é o pioneiro plantador em novas fronteiras do pensamento geográfico. Sua obra não nos convida à consulta, como a um oráculo, mas provoca reações, desafia nossas certezas e incita a abertura de novas frentes de debate e reflexão. O pensamento geográfico tem, sem dúvida, uma dívida irresgatável com Milton Santos, e este seu último livro é mais um testemunho enfático disso.

Paulo César da Costa Gomes é professor do departamento de geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de ''Geografia e Modernidade'' (Bertrand Brasil).

Folha de São Paulo

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