segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Imagens da Colonização. A Representação do Índio de Caminha a Vieira

A invenção do índio
JOHN MANUEL MONTEIRO
no primeiro volume de sua ''História Geral do Brasil'', de 1854, o Visconde de Porto Seguro afirmou que, com referência aos índios, ''não há história, há apenas etnografia''. Ao longo dos últimos 150 anos, apesar das notáveis incursões pelo tema por parte de historiadores como Capistrano de Abreu e Sérgio Buarque de Holanda _que aliás buscaram apoio na etnologia alemã_, tem permanecido um artigo de fé a noção de que estudar as sociedades indígenas é mesmo coisa de antropólogo. Este quadro, no entanto, começa a se reverter no Brasil, ainda que de modo tímido, porém muito mais em função da revalorização da história por parte dos etnólogos do que pela iniciativa dos historiadores, que, a despeito do enorme avanço da história antropológica no país, ainda evitam enfrentar o tabu da história indígena.
Neste sentido, o livro do historiador Ronald Raminelli, professor da Universidade Federal do Paraná, preenche desde logo uma enorme lacuna e, portanto, merece as nossas boas vindas. Não tanto pelo material inédito que a pesquisa introduz, mas antes pela abordagem criativa e inovadora de textos e imagens já bastante conhecidos. De fato, ao longo dos cinco capítulos que compõem o corpo principal do livro, o autor realiza uma minuciosa crítica historiográfica dos relatos escritos e uma criteriosa análise iconológica das representações pictóricas dos primeiros dois séculos da colonização européia em terras hoje brasileiras. O objetivo, declarado com elegância e simplicidade, ''é compreender a polissemia da representação do índio e sua relação com os projetos coloniais''. Mais adiante, já na conclusão, arremata o mesmo argumento em outros termos: ''A imagem do índio foi construída a partir da realidade americana e da cultura européia''.
Ao confrontar os textos com as imagens, o autor identifica um claro ''descompasso'', o que se explica a partir de uma leitura fascinante das mediações de ordem cultural _e editorial, diga-se de passagem_ presentes na construção da imagem do índio, tornando-o acessível ao universo simbólico europeu. Daí a bestialização dos embates bélicos, a demonização dos rituais e, ponto central da análise, a hipervalorização das mulheres nos festins canibais. Lançando mão da idéia da ''pseudometamorfose'', introduzida por Erwin Panofsky para explorar a ressignificação de imagens clássicas empregadas na iconografia renascentista, Raminelli busca demonstrar como o conceito de ''bárbaro'' elaborado nas representações tiveram desdobramentos práticos e políticos no âmbito colonial. Trocando em miúdos, as representações do índio, segundo ele, ''sustentaram moralmente a conquista, a catequese, a guerra justa e a escravidão''.
No entanto, esta ligação entre a representação muitas vezes negativa e preconceituosa do índio e o processo de dominação colonial não se revelava tão simples e direta. As imagens retratando as guerras, o canibalismo e os rituais satânicos dos tupinambás circulavam, conforme mostra o autor, sobretudo pela Alemanha, França e Holanda, ao passo que se verificava, na metrópole lusitana, um certo menosprezo pelo Novo Mundo. É preciso lembrar, ademais, que as grandes coleções de narrativas de viagem, acompanhadas da iconografia aqui em questão, como da ''America Tertia Pars'', de Theodor de Bry, foram ao prelo num momento em que os tupinambás do litoral brasileiro (porém não no Maranhão) já estavam praticamente liquidados e a política indigenista portuguesa já firmemente esboçada. Uma leitura mais sistemática da manipulação da imagem do índio na legislação indigenista esclareceria mais pontualmente o laço e o descompasso entre a representação e a realidade colonial.
Se a qualidade da narrativa e a densidade das descrições garantem uma leitura agradável, pode-se cobrar do autor uma conclusão mais contundente. Na verdade, em vez de amarrar e valorizar a contribuição original que o livro traz, Raminelli desvia a discussão para um terreno onde se mostra pouco seguro. No afã de demonstrar a utilidade de uma perspectiva diacrônica para o estudo dos povos indígenas, ponto com o qual concordo plenamente, o autor deixa de destacar a bibliografia significativa já existente sobre o assunto. Ao mesmo tempo, a crítica aos ''tupinólogos'' carece de fundamentos: embora seja verdade que os tupinambás de Florestan Fernandes foram retratados num presente etnográfico abstrato, próprio do método funcionalista, não se pode dizer que as leituras de Alfred Métraux e Eduardo Viveiros de Castro são ''completamente alheias aos princípios da colonização''. Ainda nesta chave da relação entre a antropologia e a história, o apelo a Marshall Sahlins parece-me deslocado, uma vez que não é esta a abordagem que predomina nos capítulos anteriores. O livro de Ronald Raminelli não é, afinal de contas, um estudo sobre os povos indígenas enquanto protagonistas da história. Antes é uma reflexão original sobre a imagem do índio no início da história do Brasil, tema em si da maior relevância para a historiografia do país.
Finalmente, levando em conta o entusiasmo e a perspicácia com que o autor se debruçou longas horas sobre uma iconografia tão expressiva, é pena que a edição traga reproduções cuja qualidade permanece aquém do padrão do mercado.

John Manuel Monteiro é professor da Universidade de Campinas, pesquisador do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e autor de ''Negros da Terra'' (Cia. das Letras).

Folha de São Paulo

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