Diversidadede um profeta
Stephen Jay Gould resenha "Diversidade da Vida"
STEPHEN JAY GOULD
Encontramos a qualidade de liderança –e precisamos dela– sob muitas formas. Às vezes ansiamos por estadistas e generais, mas há outros momentos que exigem profetas.
Se o inimigo somos nós, então somos os caçadores, os destruidores do habitat, a praga que corrói a plenitude anterior. Todos sabemos da existência dos dodôs como abstrações ou espécimes empalhados em museus. Mas, para a maioria, a onda de extinções desencadeada pela depredação humana de nosso meio ambiente terreno é percebida como algo distante.
Por isso precisamos de profetas para exigir a atenção e despertar o temor daqueles que têm olhos mas que não enxergam. "Diversidade da Vida" (de Edward O. Wilson, Companhia das Letras, tradução de Carlos Afonso Malferrari) é um misto hábil e inteiramente bem-sucedido de informação e profecia.
Wilson compôs seu texto em três partes: a primeira, sobre extinções (e recuperações) naturais, em escalas ascendentes partindo do local e histórico (Krakatoa em 1883) até o geológico e global (as cinco grandes mortandades maciças de nosso registro paleontológico); a segunda, sobre a construção evolucional e a riqueza da biodiversidade; e a terceira, sobre as rupturas, os malefícios e (se tivermos sorte e formos inteligentes) as potenciais reversões e soluções humanas.
O fio que interliga tudo isso é a já familiar tese de que nosso atual micromomento geológico de carnificina antropogênica pode ser qualificado como um sexto episódio de extinção em massa, e não como um daqueles incidentes abrangentes que marcam o transcorrer da evolução normal do planeta –em outras palavras, uma pontuação rara e assombrosa, não uma parte da continuidade normal.
Mas qual é a combinação de influências capaz de alocar a um célebre acadêmico o papel pouco familiar (em nossa igreja) de profeta efetivo?
É claro que é preciso ter uma causa –e que causa poderia ser mais nobre do que falar em nome de uma multidão de seres cujas vozes não são difundidas em comprimentos de ondas humanos –o cerca de 1,5 milhão de espécies que representam um tesouro desconhecido, que pode chegar a 100 milhões ou mais?
Os profetas devem falar em nome de princípios não transigíveis, embora todos nós saibamos que as soluções práticas não responderão a todas as necessidades. O credo de Wilson é simples e forte: lutar para salvar todas as espécies.
Ele escreve: "Nas sociedades democráticas as pessoas podem imaginar que seu governo é obrigado, por uma versão ecológica do juramento hipocrático, a não iniciar qualquer ação que sabidamente coloque em perigo a biodiversidade. Mas isso não basta. O compromisso precisa ser mais profundo –um compromisso de não deixar qualquer espécie morrer, de implementar todas as ações razoáveis para proteger todas as espécies e raças à perpetuidade".
Para colocar tal credo em ação é necessário possuir grandes poderes de persuasão, em duas esferas. Primeiro, a do conhecimento: poucas pessoas não especializadas apreciam a riqueza taxonômica da natureza ou a magnitude da perda taxonômica atual. (Wilson estima que "um quinto ou mais das espécies de plantas e animais podem desaparecer ou estar fadadas à extinção precoce até o ano 2020, a não ser que sejam feitos esforços maiores para salvá-las".)
Ademais, nós que estudamos a biodiversidade enfrentamos o problema correlato do insuficiente respeito por nossos esforços. Somos frequentemente vistos como contadores supérfluos –nada mais do que compiladores de listas, escribas de um catálogo de especificidades que não contém qualquer mensagem relativa às teorias gerais da ordem natural.
No entanto, os dados históricos relativos aos ítens únicos de sequências contínuas contêm tanto valor intrínseco e são tão carregados de teoria quanto o mais rigidamente previsível e repetido comportamento de moléculas ou planetas em sistemas deterministas.
Afinal, foram dados de nosso tipo que motivaram a documentação darwiniana de uma das grandes generalidades de nossa história intelectual: a evolução através da seleção natural.
O número de taxonomistas treinados diminuiu tanto que sequer é possível estudar a diversidade de vários grupos de grande importância econômica. Existiriam meios para isso, entretanto, se tivéssemos a vontade de fazê-lo; a riqueza da natureza não constitui obstáculo intransponível.
Wilson informa que, ao "ritmo cauteloso" de 10 espécies por ano, 25 mil cientistas dedicando 40 anos de sua vida profissional poderiam descrever 10 milhões de espécies (uma estimativa baixa, porém muito difundida, da biodiversidade global). Esse número ainda representaria "menos de 10% da população de cientistas ativos apenas nos EUA".
Além da vontade, é preciso empatia (alvo principal da profecia): Jesus disse que a verdade nos libertará, mas como podemos transferir para nossos sentimentos mais profundos (e transformar em desejo de entrar em ação) aquilo do qual temos conhecimento com nossas mentes?
Este problema é especialmente difícil na medida em que a maioria das vítimas não são seres humanos à beira da morte pela fome (ou pelo menos ainda não), nem mesmo pandas peludos e simpáticos, e sim baratas, nematóides e ácaros.
As razões práticas para preservar espécies desconhecidas são bem documentadas e Wilson as discute exaustivamente. Mas eu sempre achei que o movimento pela salvação não pode dar certo se não estiver bem fundamentado em argumentos mais amplos: éticos (que direito tem um minúsculo galhinho de expungir grandes galhos da árvore que o alimenta?) e estéticos (o simples prazer de dispor de uma variedade irrestrita, versus uma paisagem empobrecida).
Mas esses argumentos morais e emocionais exigem o conhecimento e o amor pela natureza, e como podemos promover este último numa sociedade urbana que oferece à maioria dos cidadãos tão pouco contato com a natureza?
Podemos levar pessoas à selva (o chamado ecoturismo), embora essa estratégia basicamente elitista não possa resultar em nenhuma solução geral. Podemos recorrer a filmes e outras mídias emergentes de nossa revolução eletrônica, mas essas estratégias frequentemente fomentam a passividade.
Sou suficientemente antiquado para acreditar na primazia e eficácia dos grandes textos (bem ilustrados, evidentemente), e agradeço todos nossos predecessores por seu legado de eloquente apoio.
Já argumentei frequentemente que os melhores textos populares sobre ciências se dividem entre duas tradições: a galileana ou racionalista, que localiza o encanto da natureza em seus quebra-cabeças intelectuais e a franciscana, ou lírica, que capta a beleza visceral da natureza –a "poesia da natureza", praticada desde São Francisco de Assis.
Wilson é um professor de renome numa instituição intelectual do mais alto nível, mas quando ele realmente se solta (como faz neste livro, e como eu gostaria que fizesse com mais frequência), é o melhor naturalista franciscano de nossos tempos.
Ele escreve maravilhosamente. Digo isto com certa dose de inveja, na condição do mais comprometido dos galileanos que, por limites pessoais, não pode fazer outra coisa.
Resenhas tão elogiosas quanto esta não podem deixar de conter alguma crítica também, e eu não me isento de fazê-lo.
Não é segredo algum que Wilson e eu vemos a evolução sob enfoques bem diferentes (desde nossa residência comum dentro de um lar darwiniano tão amplo), e eu deploro alguma afirmação cruel ou injusta que possa haver feito sobre equilíbrio pontuado.
Mas se alguma vez já houve um tema capaz de transformar divergências profissionais em trabalho concreto conjunto, então a preservação da biodiversidade é nossa força e nosso escudo comum.
Mesmo assim, eu gostaria de poder dissuadir meu colega de seu comprometimento com a adaptação e o progresso difusos (mostrando a ele a incrível porém compreensível estranheza do registro fóssil visto de modo detalhado).
Confesso que me irrito –pois ele sabe tão bem quanto eu que vivemos na Era das Bactérias (que foi no início, é hoje e será para todo o sempre, até o mundo acabar)– quando leio em seu livro o velho refrão dos livros didáticos superados: "Eles (os primeiros invertebrados terrestres) foram seguidos por anfíbios... e uma sequência de vertebrados terrestres... para inaugurar a Era dos Répteis. Depois veio a Era dos Mamíferos e, finalmente, a Era do Homem".
Trata-se, afinal, de exatamente aquela santificação da arrogância e da auto-importância exagerada que devemos evitar se quisermos levar a sério nosso estado de pertinência à natureza –e assim evitarmos a crise da biodiversidade.
Tampouco posso aceitar o argumento excessivamente superficial de que vamos provavelmente prevalecer graças a uma "biofilia inata, as conexões que os seres humanos subconscientemente buscam com o restante da vida. À biofilia pode ser acrescentada a idéia da vastidão selvagem.... A vastidão selvagem é uma metáfora que representa as oportunidades ilimitadas, que emerge da memória tribal de uma época em que a humanidade se espalhou pelo mundo".
Como isto pode ser verdade? Por que essas características valorizadas devem necessariamente ser mais profundas, mais inatas, mais definidoras de nossa natureza do que nossa voracidade? Será que foi menos natural matar todas as moas da Nova Zelândia, todos os mamutes da América do Norte?
Para cada biófilo existente nos EUA, certamente há dez pessoas que prefeririam matar um veado por simples esporte, em lugar de abatê-lo para que sirva de alimento necessário; dez pessoas que construiriam um shopping center suburbano para cada um que gritaria "lenhador, poupe essa árvore".
Não podemos vencer apelando para um instinto inato mais forte do que o instinto da competição. Será que Wilson realmente enxerga essas forças que competem entre si como mera superposição cultural, com a biofilia e o amor pela vastidão selvagem como um anseio biológico primário prestes a emergir?
Sinto muito, mas para mim tal visão não passa de "nonsense" romântico (utilizo a palavra em seu sentido literal, "algo que não faz sentido", não em sua acepção pejorativa).
Neste ponto, afirmo minha preferência por soluções galileanas racionalistas, em detrimento do puro lirismo franciscano. O melhor caminho precisa ser aprendido e estudado, não simplesmente libertado de um reservatório interior.
Somos um amontoado de potencial biológico para o bem e para o mal, para a preservação da biodiversidade ou para o desmatamento global. As tendências para tomar resoluções boas e corretas existem dentro de nós, mas também as propensões para o mal e por soluções míopes. Que a fonte de En Gedi seja símbolo da fonte de bondade existente dentro de nós.
Wilson narra a história de sua visita a este maravilhoso oásis de verde e biodiversidade em meio ao áspero deserto da Judéia (e eu poderia contar uma história semelhante).
En Gedi é o paraíso franciscano do cântico de Salomão: "Meu amado é para mim como um cacho de uvas nas vinhas de En Gedi" (Cântico dos Cânticos). E En Gedi é também o grande símbolo galileano de restrição moral ao assassinato, pois foi ali que Davi poderia haver emboscado o indefeso Saul, mas se absteve de fazê-lo (Samuel 1, 23-24).
Ele cita o maravilhoso lema do conservacionista senegalês Baba Dioum –e que melhor união de amor e conhecimento poderíamos procurar desencadear, para trazer à tona o lado certo de nosso imenso potencial biológico: "No fim das contas, conservaremos apenas aquilo que amamos, amaremos apenas aquilo que compreendemos, compreenderemos apenas aquilo que nos é ensinado".
Esta união do amor com o conhecimento se chama sabedoria, e a sabedoria, assim como a natureza, é verdadeiramente "árvore da vida para aqueles que lançarem mão dela"(Provérbios 3:18).
Com uma fusão adequada de inteligência galileana e amor franciscano, talvez possamos honrar E.O. Wilson, na condição de profeta em seu próprio país.
STEPHEN JAY GOULD, do Museu de Zoologia Comparada da Universidade Harvard (EUA), é especialista em evolução e autor de diversos livros de divulgação científica.
Impresso com permissão da revista }Nature (361, 311-312)
Copyright 1993 Macmillan Magazines Limited
Tradução de Clara Allain
Folha de São Paulo
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