sábado, 8 de agosto de 2009

DE VOLTA AOS TEXTOS DE FREUD


O processo criativo de Freud

PAULO CÉSAR DE SOUZA

Este livro é o mais completo estudo até hoje realizado sobre a gênese das obras de Freud. A psicanalista e editora Ilse Grubrich-Simitis fez algo inédito: ocupou-se dos manuscritos de Freud que se acham na Biblioteca do Congresso, em Washington _manuscritos de textos e anotações, não documentos pessoais, como fez a maioria dos pesquisadores.
Nisso ela teve a sorte de encontrar bem mais do que esperava: não só os originais das obras publicadas a partir de 1913 (quando ele passou a guardar seus manuscritos), mas versões anteriores das mesmas, variantes de textos fundamentais e uma espécie de "diário científico", de registros de observações clínicas e de hipóteses que ocorriam ao criador da psicanálise. Isso lhe permitiu lançar uma nova luz sobre o processo criativo de Freud, questionar seriamente a versão impressa de determinados textos e estabelecer prolegômenos para toda futura edição de Freud.
Claro que a mera sorte não bastou para esse trabalho: a autora é excepcionalmente qualificada, reunindo talentos de pesquisadora, historiadora, psicóloga e crítica literária.
Esta breve resenha não pode dar idéia da riqueza do conteúdo desse livro (já procurei fazê-lo aqui mesmo no "Mais!", em 12.fev.95). Mas um passar de olhos por alguns cabeçalhos de páginas talvez ajude neste sentido: "Contra o Furor Biographicus", "O Projeto de uma Edição Crítica Completa, "A Lenda da Facilidade" (de Freud) Para Escrever, "Letra e Modo de Escrever", "Semântica dos Sintomas, "Impressões do Mundo Interior", "Rascunho de 'O Ego e o Id' , "Variantes da História do 'Homem dos Lobos' , "Primeira Versão de 'Moisés e o Monoteísmo'" , "Dimensão Autobiográfica Latente", "Intervenções de Editores", "Modernidade do Pensamento Freudiano".
Estes são cabeçalhos de páginas ímpares, que indicam o tema abordado naquela página específica. Os cabeçalhos pares correspondem aos títulos dos capítulos. Trata-se de uma ordenação pouco usada, mas que auxilia o leitor na busca de uma informação. Foi adotada na edição original do livro e também na brasileira (por exigência da autora, suponho; também a capa e as ilustrações são as mesmas). Ocorre que a editora Imago preferiu um formato maior que o original, de modo que o número de páginas resultou menor (são 399 no volume em alemão).
Foi preciso, então, suprimir um bom número de cabeçalhos ímpares e atentar para a correspondência entre os cabeçalhos mantidos e os conteúdos de suas páginas. Algo que nem sempre se fez devidamente, pois, dos títulos acima, o primeiro foi omitido (e esse livro se opõe resolutamente ao interesse injustificado pela pessoa de Freud), e aquele sobre o "Homem dos Lobos" não corresponde à página na qual está.
Isso nos leva ao eterno problema do grau de fidelidade da edição brasileira. A impressão inicial é de uma tradução correta, o que surpreende, devido à rapidez com que foi realizada (esta parece ser a primeira edição estrangeira do livro, lançado na Alemanha em 93). Mas a leitura atenta de certos trechos, comparando-os com o original, mostra alguns deslizes. À pág. 104, na transcrição do manuscrito intitulado "Idéias e Descobertas", a frase que diz "O surgimento da consciência de culpa, análogo à angústia orgânica" deve ter uma vírgula depois da palavra "angústia", ou seja, o adjetivo se refere à gênese da consciência de culpa, não à angústia (pág. 128 do original).
No parágrafo reproduzido na contracapa se lê: "Talvez isso dê aos psicanalistas da atualidade uma visão do futuro de sua ciência". Mais correto seria: "Talvez isso inspire os psicanalistas da atualidade (...) no tocante ao futuro de sua ciência".
Outras versões questionáveis seriam as de "culpa paterna" para Vaterbeschuldigung ("incriminação do pai", pág. 104), "ruptura" para Abbrechen ("interrupção", 109), "fontes inesgotáveis" para unversiegten Quellen ("fontes não esgotadas", 176), "também" para gleichsam ("como que", 108). Uma ou outra omissão também se faz notar: sozusagen ("por assim dizer", pág. 15, linha 27), enttaueschter ("decepcionado", pág.176, linha 25).
No entanto, estes exemplos não chegam a caracterizar o conjunto da tradução, que em geral pode ser lida sem maiores sobressaltos, provavelmente graças ao trabalho da revisora.
É certo que estilisticamente o texto não "ombreia" com o original. A sra. Grubrich-Simitis é uma prosadora notável, e na versão há coisas como "rigor irritantemente rígido" (pág.12), que ofendem qualquer ouvido, não apenas os de psicanalistas. Em suma, esta é uma edição cuja leitura será proveitosa para todos os que se interessam por Freud, mas que requer alguma cautela dos que dele se ocupam profissionalmente.

PAULO CÉSAR DE SOUZA é autor de "A Sabinada - A Revolta Separatista da Bahia" e "Freud, Nietzsche e Outros Alemães" (Imago) e tradutor de obras de Nietzsche e Brecht

Folha de São Paulo

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