sábado, 18 de julho de 2009

Nem Estado, nem mercado


Nem Estado, nem mercado
BRASILIO SALLUM JR.
O dilema Estado/mercado tem dominado os estudos sobre o desenvolvimento capitalista desde a Segunda Guerra Mundial. Até os anos 70, tinha hegemonia a perspectiva que via no Estado o meio principal de evitar/controlar os efeitos nefastos dos dinamismos puramente mercantis, aos quais se atribuía a responsabilidade pela crise de 1929 e, indiretamente, pelo conflito mundial. Tratava-se, pois, de uma visão benfazeja do Estado e cautelosa em relação ao mercado. Quer dizer, o mercado era percebido positivamente, desde que operasse dentro de certos limites.
Da década de 70 em diante, ocorre uma inversão completa de perspectiva. A ideologia neoliberal se difunde de forma crescente, o Estado passa a ser demonizado e o mercado ganha foros de panacéia universal. Em vez de ser considerado instrumento para evitar crises produzidas pelo mercado, o Estado passa a ser apontado como causa principal de eventuais dificuldades de operação dos sistemas econômicos. Desde então, o remédio indicado para sanar as dificuldades tem sido ''menos Estado e mais mercado''_privatização, desregulamentação etc.
É claro que o domínio da perspectiva neoliberal não vem ocorrendo sem resistência. Há uma enorme literatura, acadêmica ou não, que denuncia o caráter ''antipopular'', ''antinacional'', ''socialmente excludente'' das reformas propostas e implementadas pelos liberais. Denuncia-se, além disso, a subestimação do papel desempenhado pelo Estado na estabilidade e bem-estar dos países avançados e no desenvolvimento dos países da periferia.
No entanto, quase toda esta literatura ''crítica'' ou ''de protesto'' aceita os termos do ''mainstream'' político e acadêmico _Estado versus mercado_ e combate no seu terreno, com a diferença de que vê o mundo e suas transformações com os sinais invertidos, os sinais imperantes no período pós-guerra.
Talvez a principal qualidade do livro organizado pelo sociólogo J. Rogers Hollingsworth e pelo economista Robert Boyer seja fugir a esse feitio. Não há dúvida de que é decididamente um livro de crítica à ideologia neoliberal e, mais especificamente, à perspectiva neoclássica em relação à sociedade contemporânea. Mas, ademais, muda as regras do jogo para combatê-la. Não trata, apenas de mostrar _contra a dogmatismo de mercado dos economistas neoclássicos_ que o Estado ainda tem um papel importante a desempenhar na conformação da sociedade contemporânea. Antes de tudo, o livro mostra que a velha dicotomia Estado/mercado ''tem que ser descartada, para ser substituída por um amplo conjunto de arranjos institucionais que misturam em grau variável a busca de interesse próprio e obrigação social, relações entre iguais e assimetrias de poder''.
Pode parecer estranho afirmar ''o livro mostra'' a respeito de uma publicação coletiva como é esta, que reúne textos de mais de uma dezena de autores de renome, como Benjamin Coriat, Paul Hirst, Charles Sabel, Philippe Schmitter e Wolfgang Streeck. Mas a existência de um argumento central é outra das características que distinguem a presente coletânea de outras que têm sido publicadas sobre o capitalismo atual. De fato, Hollingsworth e Boyer esforçaram-se para articular os diferentes capítulos segundo um projeto comum, o de mostrar que o mercado não pode ser considerado a forma ideal e universal de organização da atividade econômica. Pelo contrário, os vários capítulos analisam os diversos arranjos institucionais que coordenam a atividade econômica, sua interdependência, as deficiências de cada um, como surgem e como se mantêm.
Já de início os organizadores desenham o elenco de arranjos institucionais que têm importância na conformação das atividades econômicas (''governance mecanisms'') e os classificam segundo o motivo predominante da ação dos participantes e a distribuição do poder entre os agentes. Assim, por exemplo, no mercado concorrencial dominaria o interesse próprio e uma distribuição relativamente igual de poder. Nas comunidades, a obrigação social orientaria a conduta dos agentes, entre os quais não haveria desigualdades significativas de poder. Por outro lado, em arranjos hierárquicos, como empresas privadas, dominam os interesses próprios de agentes desiguais em poder. Associações, redes (''joint ventures'', alianças estratégicas) e Estado ocupam posições intermediárias nas duas dimensões de variação (motivo e distribuição de poder). Mas o processo de globalização não tenderia a submeter todos esses vários arranjos institucionais aos mecanismos homogeneizadores do mercado mundial?
Os autores respondem a isso com um claro não. Mostram, pelo contrário, que mesmo mudando os mecanismos de coordenação não deixarão de se articular em totalidades institucionais _os sistemas sociais de produção_ que podem variar de região para região, de país para país, mas não de maneira ilimitada. Assim, o antigo sistema dominante de produção, o fordismo, que produzia bens muito padronizados, em larga escala e com equipamento muito especializado, com a ajuda de operários semi-qualificados vem sendo substituído por vários tipos de sistemas flexíveis de produção, ancorados em força de trabalho qualificada e cada um tendendo a produzir um amplo leque de produtos em resposta a diferentes demandas dos consumidores.
O livro aprofunda a perspectiva de que as instituições se ''encaixam'' nas atividades econômicas conformando os atores na busca dos seus objetivos. Vários capítulos são dedicados à análise de como as formas de coordenação operam e se articulam nos vários níveis ''sócio-espaciais'' _regiões subnacionais (exemplos: Vale do Silício, a ''terza'' Itália), Estados nacionais, regiões transnacionais (exemplos: União Européia, Nafta, Mercosul) até o nível global.
Qual a tese essencial aqui? É que, apesar das instituições nacionais terem perdido parte de sua capacidade de determinação sobre as atividades econômicas, não foram substituídas pelas ''forças do mercado'', entendidas de forma abstrata e naturalizada. Outras instituições, de base supranacional e infranacional, passaram a concorrer com elas na conformação das atividades econômicas. Assim, ao contrário das crenças mais difundidas, o processo tendencial de globalização não conduz à simplificação das formas de regulação das atividades econômicas, mas a um outro tipo de complexidade, em que as instituições reguladoras se aninham nos vários níveis de organização da sociedade (do local ao global), entre os quais, segundo alguns dos autores, não é possível estabelecer hierarquia de determinação.
Entretanto não se espere dele uma nova ''teoria'' do capitalismo contemporâneo, embora suas páginas contenham novos conceitos, reconstruções brilhantes de fenômenos econômicos particulares e sugestões de teorias parciais. É claro que alguns dos conceitos _como o de sistema social de produção_ ou formas de classificação dos fenômenos podem ser questionados por imprecisão. E, por vezes, causa mal-estar deparar com velhas ''verdades'' sociológicas enunciadas como se fossem novas. Esses pequenos senões não tiram, no entanto, o mérito de um empreendimento ousado como o que se materializa no livro.
De fato, não deixa de ser uma ousadia que um grupo de sociólogos, cientistas políticos e economistas heterodoxos, em vez de submeter-se à ciência ''oficial'' ou às suas regras de discurso, tente jogar no campo do adversário, analisando os fenômenos econômicos contemporâneos com lentes diferentes das usadas pelos economistas do ''mainstream'' neoclássico. Se não for tudo o mais, por isso o livro já vale a leitura.

Brasilio Sallum Jr. é autor de ''Labirintos - Dos Generais à Nova República'' (Hucite)

Folha de São Paulo

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