sábado, 18 de julho de 2009

MITOS DO INDIVIDUALISMO MODERNO


Mutações do indivíduo
RAQUEL DE A. PRADO
Ian Watt já é bem conhecido entre nós, graças ao seu clássico ''The Rise of the Novel'', traduzido para o português como ''A Ascensão do Romance''. Mais do que da ascensão, trata-se aqui do surgimento do romance moderno, o que os ingleses chamam de ''novel'', caracterizado basicamente pelo seu ''realismo formal'', em oposição ao estilo romanesco do passado, no qual prevalecia o elemento fantástico.
Segundo Watt, as características formais desse novo romance, ou ''novel'', refletem a ''reorientação individualista e inovadora'' _também presente no pensamento filosófico, inaugurado por Descartes_ que resulta da transformação, iniciada no Renascimento, da velha ordem feudal. A maior autonomia concedida ao indivíduo, que se desvincula dos quadros da vida corporativa e comunitária medieval, sua maior indeterminação e, consequentemente, maior responsabilidade pessoal encontram expressão numa forma de romance que privilegia o desenvolvimento de personagens _não mais tipificados, como na tradição anterior_ no curso de um tempo e espaço determinados.
Portanto é centrado nessa questão da formação do indivíduo moderno que Watt vai analisar o surgimento do romance que lhe corresponde, e cujo marco inicial ele situa precisamente no ''Robinson Crusoe'', de Daniel Defoe, obra que ''apresenta uma demonstração única da relação entre o individualismo em suas muitas formas e o surgimento do romance''. São essas ''muitas formas'' do individualismo, econômico, religioso, moral, assim como seus conflitos ideológicos, que Watt tenta cercear na estrutura narrativa dos romances de Defoe, Richardson e Fielding.
O interesse de Watt pela questão do individualismo e de suas implicações éticas não é, pois, uma novidade. Mas enquanto na ''Ascensão'' a matéria literária se restringia a uns poucos romances de um período curto da história da literatura inglesa, nos ''Mitos'' ela se amplia tanto no tempo _do Renascimento ao século 20_ quanto no espaço _seguindo a migração do mito pelas literaturas européias. Já não se trata da análise de uma forma literária bem determinada, mas da reconstituição do processo de mitificação dos personagens do Fausto, Dom Quixote, Dom Juan e Robinson.
Watt já tratara de Robinson enquanto mito, num ensaio de 1951, no qual sua visão das figuras de Dom Quixote, Dom Juan e Fausto ''era uma forma confusa e subliminar de reinterpretação romântica de mitos criados muito antes do romantismo''. Para comprender melhor o sentido histórico das versões originais, de Cervantes, Tirso de Molina e Marlowe, assim como para estabelecer um certo distanciamento da visão romântica, Watt aplica o mesmo método histórico-comparativo da ''Ascensão do Romance''. O mesmo método, a mesma eficiência redundam, no entanto, numa investigação tão mais fascinante que deixa de interessar apenas o público especializado, para embarcar qualquer leitor de alguma sensibilidade literária numa viagem... digamos assim, fáustica, pela história da formação do indivíduo moderno.
Numa primeira parte, Watt examina as primeiras versões de Fausto, Dom Juan e Dom Quixote, que surgem durante um período de 30 a 40 anos: o ''Faustbuch'', em Frankfurt, em 1587 _''The Tragical History of the Life and Death of Doctor Faustus'', de Christopher Marlowe, teria sido escrito em 1952_; ''El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha'', de Cervantes, publicado entre 1605 e 1615; e ''El Burlador de Sevilla y el Convidado de Piedra'', o ''Dom Juan'' de Tirso de Molina, escrito entre 1612 e 1616.
Os três protagonistas caracterizam-se, diz Watt, pelas energias positivas e individuais do Renascimento, entram em conflito com as forças da Contra-Reforma e são punidos por isso. O mito de Fausto é o único que começa com uma pessoa real e histórica, ''um charlatão gabola e desagradável'' que desgosta tanto humanistas quanto as autoridades religiosas: teriam sido Lutero e seus seguidores os responsáveis pela história da relação entre Fausto e o Diabo, história que vai ser ''reinterpretada através de um longo processo coletivo'', para então ser recolhida por Johann Spies no ''Faustbuch'' _que chega, na sua tradução inglesa, às mãos de Marlowe, então no auge de sua capacidade criadora.
Em seguida, Watt retoma o seu já bem conhecido ''Robinson Crusoe'', e sua análise, aqui, não difere muito daquela em ''A Ascensão do Romance''. Dá o mesmo destaque à tensão entre o individualismo econômico e as sutilezas de interpretação no individualismo da religião calvinista e mostra que ''o aspecto punitivo de 'Robinson Crusoe', embora seja claramente intencional, é largamente contrário à moral operativa no livro''. Quer dizer, já há alguma inflexão no aspecto punitivo do individualismo, nessa sua primeira etapa setecentista.
Mas, se a mutação do mito, de alguma forma, já está em curso, a grande virada vai ser de responsabilidade dos ideólogos do romantismo. Parece exagerado o papel que Watt atribui ao autor do ''Contrato Social'' como ''profeta'' dessa transformação ideológica. Rousseau, é verdade, parece lançar um ''manifesto'' individualista, na abertura das ''Confissões'', porém ele é também o autor de ''A Nova Heloísa'', uma das expressões mais dolorosas de antiindividualismo. Watt nos convence realmente quando destaca a importância de Herder, que, ao introduzir um novo modo de pensar sobre o mito, influenciará toda uma geração de românticos alemães, aparentemente os verdadeiros responsáveis pela mudança radical de leitura dos nossos quatro personagens.
A partir daí, estes já não se definirão negativamente, mas, com o desaparecimento de todo elemento punitivo, encarnarão os valores mais positivos do individualismo. Watt conclui essa segunda parte com uma discussão sobre os conceitos de ''mito'' e de ''individualismo'', após uma análise do que chama ''apoteose romântica dos mitos renascentistas'': o Fausto de Goethe, o Dom Juan de Molière, Mozart, Byron e Zorrilla, e o Dom Quixote romântico _tanto a nova visão crítica da obra de Cervantes como a sua influência em Dostoievski.
Quanto à reflexão sobre o conceito de ''mito'', na sua comparação entre os ''mitos do individualismo'' e os mitos arcaicos, Watt conclui que é possível falar em ''origens e transformações'' da atitude individualista, nos mitos modernos. O que talvez tenha faltado a Ian Watt, na sua análise do conceito de individualismo, é o reconhecimento de alguma possibilidade de conciliação para termos aparentemente antinômicos _indivíduo e sociedade_ que é, por exemplo, o objeto da reflexão de Norbert Elias, quando este se pergunta em que condições pôde chegar a formar-se uma ''sociedade dos indivíduos''. Os nossos quatro mitos poderiam ser pensados como representação das ''origens e transformações'' não apenas de uma atitude individualista, mas dessa nova sociedade.
Nas suas ''Reflexões Sobre o Século 20'', Watt parece aliviado _após enfrentar com algum desconforto o relativismo moral das interpretações românticas_ ao reencontrar o elemento punitivo no ''Doutor Fausto'' de Thomas Mann. Parece que Fausto, ''o mito do intelectual'', é o seu predileto, pelo tom de sóbria paixão com o qual aborda as suas sucessivas versões. A beleza dos ''Mitos do Individualismo Moderno'' reside também nessa entrega que sentimos no autor, que trabalhou na obra durante 40 anos, quase tanto tempo quanto Goethe na sua. Apesar de ''não ter sido abençoado por uma 'anima naturaliter' goetheana'', Watt é tão impenitente (e saudável) elitista quanto o autor de ''Fausto''. Talvez por isso ele não reconheça, na cultura de massas sobre a qual reflete no finzinho do livro, um último e triste avatar dos seus mitos: o herói da ''modernidade'' cult, que, se ainda não encontrou expressão literária à sua altura, é, pelo menos, o rei da mídia. Após escapar das ameaças punitivas nas suas primeiras encarnações, se livrou das exigências românticas de fracasso diante da sociedade: ele hoje é um sucesso.
Caso não tenha sido possível dar uma idéia, aqui, da importância desse novo clássico de Ian Watt, gostaria de repetir o que já disse Edward Said: todos deveriam lê-lo. Se a ''Ascensão do Romance'' é obra fundamental para acadêmicos que se dediquem à história da literatura, os ''Mitos'' também o são, mas são ainda mais do que isso.

Raquel de Almeida Prado é autora de ''Perversão da Retórica, Retórica da Perversão'' (Ed. 34).

Folha de São Paulo

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