sábado, 18 de julho de 2009

Fotografia e representação


Fotografia e representação
SOLANGE F. DE LIMA e VANIA C. DE CARVALHO
Desde a sua criação, em 1839, a capacidade referencial da fotografia ''empolga'' seus consumidores. Aliás, tal fato por muito tempo dificultou a sua promoção à categoria de obra de arte. Não há dúvida que, por utilizar o referencial externo como matéria-prima, a fotografia pode servir como documentação de apoio para os estudos daquilo que representa. No entanto, esta característica de maneira alguma faz da fotografia apenas uma janela para o passado, como sugere Victor Knoll em sua resenha ''Um Olho Atrás do Visor'' (Jornal de Resenhas, 8/11/97).
Para aqueles que, como nós, estão empenhados na valorização das dimensões visuais dos processos históricos, o caráter referencial da fotografia interessa somente na medida em que ele é percebido como prova, cuja legitimidade é atribuída socialmente. Desta força persuasiva resultam para a fotografia funções específicas que vão muito além de seu caráter testemunhal. Assim, no livro ''Fotografia e Cidade - Da Razão Urbana à Lógica do Consumo. Álbuns de São Paulo (1887-1954)'', a fotografia foi utilizada não para ilustrar uma história urbana ou econômica. Não se tratou, por exemplo, de mostrar que na fotografia da década de 1950 ''vemos'' uma cidade que oprime seus habitantes ou mascara a especulação imobiliária, mas como a fotografia opera no campo das representações. Suas ''implicações ideológicas'' não são fruto de uma simples aderência à realidade urbana, mas resultados de recursos formais específicos da imagem fotográfica e das circunstâncias em que foi produzida, deste modo participando ativamente da atribuição de sentidos à cidade.
A análise buscou identificar motivos, recursos formais e tipos de narrativa. Quando articulados, estes atributos transpuseram ou inverteram sentidos cristalizados em outros circuitos _como, por exemplo, do desenho técnico para os álbuns do início do século ou das experiências vanguardistas com a linguagem fotográfica para os álbuns da década de 1950.
Eles proporcionaram também migrações de valores entre imagens com temas diferenciados, mas com o mesmo tratamento formal _como aconteceu entre trabalhador e edifício de alto gabarito ou entre as diferentes categorias de trabalhadores. Constituíram noções de conjunto a partir de composições metonímicas _como aquela que transformou o retrato individual em tipologias profissionais ou pulverizou o tecido urbano em unidades imobiliárias autônomas. Neste aspecto, a fotografia contribuiu para a construção de metáforas visuais pertinentes às próprias relações sociais.
Observou-se nos álbuns a presença recorrente de características que nos permitiram falar em padrões visuais, sinalizadores de uma espécie de consenso na abordagem dos temas urbanos. Este traço de natureza social dos álbuns pode ser inferido também na sua edição final. Da produção participaram não só os fotógrafos, muitos anonimamente, mas as editoras, e, por que não, os consumidores que consagraram este tipo de publicação.
Nosso esforço concentrou-se em explicitar mecanismos mediante os quais as fotografias de São Paulo deram visibilidade a conceitos como racionalidade, disciplinamento, profissionalização, progresso, trabalho, modernidade etc. Portanto tornaram palpáveis, inteligíveis, e, mais importante, aceitáveis, noções fundamentais para o funcionamento da sociedade.
Finalmente, estes conjuntos fotográficos foram produzidos para serem comercializados ou circularem em instâncias governamentais, ou seja, fora do circuito artístico, o que não nos autoriza o uso da categoria de ''obra de arte'' para esta produção. Entretanto isso não foi impedimento para buscarmos as matrizes visuais do repertório plástico no qual se movimentaram os fotógrafos, estas sim, por vezes, oriundas de experiências artísticas.
Os álbuns propõem interpretações da cidade. Mediante um tratamento quantitativo e qualitativo sistemático, a análise de mais de 1.600 fotografias permitiu entender aspectos da construção destas interpretações.

Solange Ferraz de Lima e Vânia Carneiro de Carvalho são pesquisadoras no Museu Paulista da USP.

Folha de São Paulo

Nenhum comentário:

Postar um comentário