sábado, 18 de julho de 2009

Contra o absolutismo crítico


Contra o absolutismo crítico
LUIS RONCARI
A publicação do conjunto dos estudos e da crítica literária de Sérgio Buarque de Holanda tem uma importância que levará um tempo ainda para ser precisada. Pode-se adiantar que poucos fatos nessa área, nos últimos anos, foram tão significativos, entre outras coisas, pelo seu poder de orientação. Quer dizer, esses escritos, além de preocuparem-se com a revelação do valor da obra literária e o aguçamento do olhar para a sua boa apreciação, apontam também caminhos para a crítica e a investigação e, por isso, interessam particularmente ao pesquisador e ao estudante de letras.
Com os inéditos de ''Capítulos de Literatura Colonial'' (Brasiliense, 1991), organizado por Antonio Candido; com a reunião das várias introduções feitas pelo autor no ''Livro dos Prefácios'' (Companhia das Letras, 1996), que resgata escritos importantes; com o precioso trabalho feito por Antonio Arnoni Prado, que coligiu, preparou, organizou e anotou _com o cuidado e a competência de quem tinha inteira consciência do valor do material que preparava_ quase toda sua colaboração de crítica literária para jornais e revistas, de 1920 a 1959; e com o que já havia sido publicado, ''Cobra de Vidro'' (Perspectiva, 1978) e ''Tentativas de Mitologia'' (Perspectiva, 1979), temos facilmente acessível o mais importante dos escritos de Sérgio Buarque sobre literatura.
Os ''Capítulos de Literatura Colonial'', seguidos da ''Dialética da Colonização'' (Companhia das Letras, 1992), de Alfredo Bosi, vieram complementar e complexificar o quadro apresentado por Antonio Candido na ''Formação da Literatura Brasileira'' (Martins, 1959). Trazem, ao mesmo tempo, concordâncias e discordâncias, mas variam sobretudo no modo de apreciar a aclimatação dos cânones da literatura ocidental num contexto novo e colonial e na forma de explorar a relação entre a literatura e a história. Eles compõem três leituras fortes, apoiadas em pressupostos teóricos perfeitamente assimilados e pesquisa de fontes primárias, o que permite investigar e interpretar as difíceis relações entre o processo histórico colonial e a constituição de uma literatura brasileira.
Apreciados agora os escritos literários de Sérgio Buarque no seu conjunto, a primeira coisa a notar é que, se ele não tivesse escrito uma só linha do seu trabalho historiográfico, com o qual foi sempre identificado, ainda assim estaria entre os grandes estudiosos da literatura no Brasil. O mais notável é que os seus estudos e críticas não são só os de um historiador tratando da literatura, mas também trabalhos típicos de um estudioso dela, que domina as bibliografias, as teorias e os métodos.
Assim, ele parece ter realizado algo raro nas ''ciências humanas'' do século 20: dominava e acompanhava, com extrema acuidade, tudo o que se publicava nos campos distintos, no da história e no da literatura. Não é difícil encontrar quem se desdobra em múltiplas atividades e em diferentes campos, principalmente no Brasil, país de cultura desorganizada e exuberância amazônica. Mas geralmente o faz um tanto descompromissadamente, quando não sectariamente, como forma de suprir os vazios da formação, sem se sentir na obrigação da sistematicidade do estudioso, postura que sempre assumiu Sérgio, para quem nada que fosse de sua esfera do saber deveria passar despercebido. Se dar conta de uma só é cada vez mais difícil, de duas, então, parece humanamente impossível. Mas não o foi para ele.
Se Sérgio Buarque não pode ser visto como um historiador falando da literatura, e sim como um estudioso com formação específica, não quer dizer que a história estivesse ausente das suas apreciações literárias, ao contrário. Também esta não se fazia presente no modo como a referência literária, estilística ou temática estava nos seus trabalhos historiográficos, como ciência auxiliar, socorro e apoio a que se recorria, como às demais ciências, para o entendimento dos fatos históricos, segundo os bons exemplos da escola dos ''Annales''.
A história parece ocupar uma dimensão maior que a de simples ciência auxiliar na sua abordagem da literatura. Ela fornece-lhe também algo da perspectiva e da concepção geral de como tratar do fenômeno literário. Assim, mesmo ausente, ela parece sempre presente. Sérgio Buarque apreciava no fenômeno literário fundamentalmente dois aspectos. Um, o que lhe permitisse sua identificação e conceituação, no sentido de vinculá-lo a uma família e a um gênero ou então a um ''tipo ideal'', correspondendo à sua formação também weberiana. E outro, que o particularizasse e especificasse, buscando a apreensão do singular que o individualizava, seguindo sua adesão ao historismo (termo que considerava mais adequado que historicismo) moderno, expresso, entre outros, por Meinecke.
São esses dois grandes movimentos de tendências antagônicas, que pareciam impossíveis de se reunir, que aqui se compõem nas críticas e nos estudos do autor. São dois tipos de considerações que parecem advir da experiência do trabalho com fatos distintos. Uma, de que nada é inteiramente singular, guarda sempre fontes genéricas e matrizes arcaicas ou pode fornecer elementos de identificação com grupos de fenômenos; e outra, de que os casos individuais não são também simples reprodução ou imitação de modelos _se sobreviveram ao tempo, é porque contribuíram também para a sua formulação ou alteração.
A primeira consideração está mais próxima do ofício do historiador, acostumado a enfrentar o inusitado e concreto dos fatos históricos, que à primeira vista não lembram nada a não ser eles mesmos, mas que, com a distância, ao serem estudados, revelam repetições que permitem agrupá-los num conjunto de eventos semelhantes. A segunda está mais próxima do trato do fato literário, que logo de início nos lembra seu gênero ou família: como poesia, soneto, conto, romance histórico etc., e só depois desvela-se no que não o fará sucumbir na vala comum. Tanto num como noutro, defronta-se o estudioso com a questão da importância da ação do sujeito, a forma e grau da sua contribuição, seja como herói seja como autor.
A maior parte das suas críticas segue esse método: começa com uma conceituação geral _do romance, do romance histórico, do romantismo, da épica, do simbolismo, do expressionismo, da literatura do mal etc. Só depois de um exórdio, que conceitua as fontes genéricas às quais se filia a obra de que vai tratar, é que ele parte para a apreciação do fenômeno em questão.
Seguindo esse duplo movimento de orientações opostas, ele não se perde nem nas apreciações genéricas, que tendem a nivelar e tornar tudo indistinto e homogêneo, como costuma fazer a crítica retórica, nem na multiplicidade de fatos individuais e singulares, que nada devem à história e à tradição, como pretendiam os românticos. Ele também não transformava essa orientação eclética numa fórmula que deveria se repetir na apreciação de qualquer fato. A amplitude da formação e visão de Sérgio Buarque não permitiria isso. O exercício da dúvida, o espírito de pesquisa, a vontade de discernimento e o senso de objetividade impediam que qualquer formulação ou adesão teórica sobrepujasse a riqueza e singularidade do próprio fenômeno, o que fazia com que, em última instância, o que mais importasse fosse a especificação, o que singularizava determinada obra e a distinguia de todas as demais.
E para isso todo tipo de informação devia ser mobilizado; dependendo da obra e do autor, era tão importante distinguir os traços estilísticos como conhecer os dados da sua vida. Veja-se, por exemplo, o ensaio modelar, quanto ao uso de traços biográficos na análise literária, sobre um romance de Lima Barreto, ''Clara dos Anjos'', no qual examina o livro a partir de informações da vida atribulada do autor. O que não significa também que não errasse e tivesse sempre a medida certa em todas as avaliações.
Entre os muitos fios que percorrem e ligam o conjunto dos estudos, um dos mais fortes e recorrentes, e também atual, é a sua crítica ao que ele chama de ''absolutismo'' da crítica literária. Embora constante e formulado em muitos momentos, vale lembrar como ele aparece no primeiro de uma série de artigos que escreve sobre ''Poesia e Positivismo'', e que se constitui num verdadeiro núcleo conceitual dos volumes agora publicados: ''Um dos riscos a que andam mais constantemente expostos os críticos de livros e de idéias associa-se à crença na falibilidade insuperável e por isso na vaidade de seus julgamentos; estes podem dispensar, assim, qualquer prova objetiva e hão de valer, em realidade, como simples expressões de um temperamento. Outro risco provém, ao contrário, da surda confiança nos critérios usados pelo juiz. Os quais só poderiam verdadeiramente levar a alguma sentença cabal e inapelável.
Não parece difícil notar que nos achamos, aqui, em face de duas formas alternativas de absolutismo: uma vem da superestimação dos próprios juízes, outra da superestimação dos juízos; numa, o crítico faz-se valente por si só, tão valente que chega a despreocupar-se da valia dos argumentos de que se serve, pois sua só presença é argumento capaz. Na outra, tem a cautela de escudar-se por trás de certezas peremptórias e implacáveis''.
Tanto o relativismo quanto o dogmatismo, no fundo, aparecem como formas distintas de ''absolutismo'', conceito que, para o historiador, tem fortes consonâncias com o de autoritarismo. O primeiro, pelo reconhecimento da impossibilidade de superação do impressionismo, que acaba se transformando na exaltação dos próprios críticos, que raras vezes se conformam ''com o ofício de guias e intérpretes''. E o segundo, pela confiabilidade quase religiosa em princípios rígidos, aplicáveis em todas as situações. Tanto num como noutro caso não há mais o que discutir: para um, porque nunca se chega a nada; para o outro, porque já se chegou à verdade. A postura crítica de Sérgio Buarque é a de equidistância tanto de uma como de outra posição. Sabe olhar o fato literário sem posturas previamente tomadas, enxergá-lo nas suas relações internas e externas e reúne erudição bastante para apreciá-lo das suas ligações mais próximas e diretas às mais distantes e mediatas. É o que caracteriza a sua visão, que transpira inteligência e grandeza.

Luiz Roncari é professor de literatura brasileira na USP e autor de ''Literatura Brasileira - Dos Primeiros Cronistas aos Últimos Românticos'' (Edusp).

Folha de São Paulo

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