segunda-feira, 8 de junho de 2009

Medicina Teológica



Os males da paixão
Mary Del Priore

MARY DEL PRIORE
Medicina Teológica
Atribuída a Francisco de Melo Franco
Ed. Giordano, 154 págs.


Em 1757, nascia na vila de Paracatu, em Minas, um personagem tão apaixonante quanto mal conhecido: Francisco de Melo Franco. Do pouco que se sabe, consta que iniciou seu aprendizado no Rio de Janeiro, partindo, a seguir, para Coimbra, disposto a realizar estudos de medicina. Quintanista em 1779, foi então acusado de "herege, naturalista e de negar o sacramento do matrimônio", sendo preso, com um grupo de barulhentos estudantes, nos cárceres da Inquisição. Cumpriu pena de um ano no palácio de Rilhafoles; bacharel em 1785, passou então, a escrever e, entre outras obras, publica um dos primeiros manuais de puericultura de que temos notícia para o período: o "Tratado da Educação Física dos Meninos para Uso da Nação Portuguesa", no qual pacientemente explicava às leitoras como alimentar, banhar, vestir e proteger de superstições os seus pequenos rebentos.
Em 1794, cioso dos humores do Santo Ofício, fez editar, sem o nome do autor, esta "Medicina Teológica".
O que terá levado o médico miniero a esta incursão em território da teologia? Simples: estes são tempos em que tanto a Igreja Católica quanto a ciência médica estão empenhadas em elaborar idéias sobre a natureza humana e suas instáveis paixões. Médicos fisiologistas e sábios moralistas estudavam anatomia e patologia, curiosos, sim, em suprir as lacunas de seus conhecimentos, mas, também, em capturar a natureza humana e entender os princípios aos quais ela obedeceria. Neste cenário, diferentes correntes do pensamento científico debatiam-se em questões do tipo: "Qual a razão metafísica da cópula?"
Em certos autores do século 18, a liberdade era considerada uma faculdade orgânica de regulação dos corpos. Assim, as modificações sofridas pelo corpo, em virtude das influências do mundo exterior, modificavam, elas também, o espírito humano. As funções espirituais eram irredutíveis àquelas corporais. Os órgãos, por sua vez, respondiam a uma força interna que os controlava, tendo em vista a missão que lhe era imputada pela economia geral do corpo.
Nesta perspectiva, as temidas paixões, estudadas tanto por estrangeiros quanto por nosso Melo Franco, eram forças orgânicas que haviam perdido a sua regularidade. Tais paixões introduziam na máquina do corpo modificações incessantes que aumentavam infinitamente as dificuldades de qualquer diagnóstico: "São as paixões humanas um produto da sensibilidade e movimento de seus nervos... um grande amor, uma grande saudade, uma grande cólera e uma grande bebedice ocasionarão sempre sintomas nervosos os mais funestos e horríveis", escrevia o médico de Paracatu.
Mas por que, então, escrutar as paixões por meio de uma medicina teológica? Pois os modelos fisiológicos, adotados na época, atribuíam à alma, ao mesmo tempo, uma concepção animista (na alma, achava-se a finalidade do corpo) e um sentido cartesiano residual (a absoluta autonomia do corpo é condição necessária para a autonomia da alma): o termo designava, ao mesmo tempo, o bom estado do corpo, uma justa hierarquia de todos os órgãos e a sabedoria de uma conduta afinada com um objetivo espiritual. Introduziam-se, assim, categorias morais naquelas fisiológicas. Acreditava-se na idéia de uma correlação entre o corpo são, a bondade dos atos e a retidão de espírito. Ao médico cabia restabelecer o equilibrio interno do corpo, incentivar o espírito ao bem e torná-lo capaz da verdade. Inversamente, as idéias de uma moral sadia teriam um efeito benéfico sobre o corpo, estimulando uma espécie de medicina moral, ou seja, uma medicação do homem pelo ensinamento de valores.
Ora, o pensamento médico do século 18 desautorizava, a homens e mulheres, a reivindicação de uma liberdade que contradissesse os princípios da fisiologia moral. Qualquer mal-estar do corpo era interpretado como signo e sanção de um desvio de conduta. Quando Melo Franco afirma, peremptório, que "o amor é enfermidade", causando loucura, está apenas incorporando noções médicas que circulavam em toda a Europa. Na interpretação mecanicista, por ele adotada, o amor resultava de fenômenos puramente orgânicos e era rapidamente reconhecido por sintomas imediatos: olhos fundos, tristes e abatidos, ranger de dentes etc.
Nas mulheres, tal infecção mostrava-se claramente quando perdiam "a vontade de comer e dormir, degenerando num furor amoroso de que elas não se podem deter e as fazem entregar-se a toda sorte de indecências". A mulher era considerada um ser disposto a provar todas as paixões que resultassem da mudança de curso dos fluidos internos. Ao mesmo tempo, as paixões eram, elas mesmas, causa de novos problemas. A mulher histérica, doente de amor, tornava-se prisioneira de uma espécie de causalidade recíproca que se articulava entre a paixão e o corpo. A apaixonada era considerada uma doente. Suas convulsões não representavam mais que a incapacidade de seu corpo e espírito em assumir a paixão. O mesmo se dava entre os casados que se excediam nos prazeres do amor e que por isto, tornavam-se enfermos. Para curá-los, Melo Franco não hesitava em recomendar remédios refrigerantes que aplacassem seus ardores: mascar losna (conhecida por seu amargor), dormir em tábua dura e banhar-se em água fria.
A erotomania, bem como a satiríase, indicavam a irritação geral da máquina. Para sanar suas vítimas, dariam conta do recado purgantes de tamarindo, eleutérios à base de sementes de urtiga e aplicações de vitríolo. Como outros tantos médicos alienistas e moralistas da segunda metade do século 18, Melo Franco procurava definir as leis fundamentais da natureza biológica a fim de propor aos homens e mulheres doentes fórmulas infalíveis de reabilitação. Só que, para ele, o estatuto da saúde estava associado a um modelo de retidão moral.
Vale sublinhar que medicina teológica não é a única expressão, em Portugal, desta corrente de idéias. Autores como Francisco da Fonseca Henriques ou Bernardo Pereira debruçaram-se, eles também, sobre esse fascinante cardápio de males físicos e morais, de doenças da alma e do corpo. A diferença é que eles eram debitários da tradição agostiniana que via nos desvios da sexualidade, ou nas paixões, da forma por excelência do pecado. Esta doutrina teológica colocava sob suspeita o uso dos corpos e dos prazeres, predispondo-se a reconhecer, nas mais miúdas alterações, as manobras do demônio. Por isto mesmo, a união de médicos e exorcistas para combater diagnósticos muito semelhantes aos de Melo Franco, só que vencidos à base de defumadouros de dente de defunto e pós de asa de morcego.
A singularidade do médico de Paracatu está na sua identificação com um discurso racionalista (independentemente da concepção que ele fazia da natureza e das funções da razão) no interior do qual afirmava-se a certeza de uma perfeita adequação entre o humano e o racional. Eis o motivo da grita que se levantou contra a publicação do livro, qualificado de perigoso e heterodoxo por parte de gente pia e zelosa, para quem Deus justificava tudo.
No mais, ler a "Medicina Teológica" é simplesmente delicioso; com apresentações de Antonio Candido e Alberto Dines, o livro é um passeio pela história do amor, das paixões e do esforço que sempre fizeram os homens para compreender o que todos, hoje, sabemos ser inexplicável.


MARY DEL PRIORE é professora de história do Brasil colonial na USP e autora de "A Mulher na História do Brasil

Folha de São Paulo

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