segunda-feira, 8 de junho de 2009

Deus, assunto de história


por Marcos José Diniz Silva

LE GOFF, Jacques. O Deus da Idade Média. Conversas com Jean-Luc Pouthier. Tradução Marcos de Castro. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 2007, 126p. ISBN 978-85-200-0697-9

Sobre o autor[*]

No contexto mundial em que vivemos, marcado por uma presença cada vez mais ostensiva das religiões e religiosidades, deitando por terra as profecias da modernidade secularizadora; uma obra de historiador versando sobre Deus parece mais que oportuna. E é ninguém menos que o erudito e respeitado Jacques Le Goff, que nos apresenta singulares e instrutivas interpretações sobre o Deus dos cristãos da Idade Média ocidental.

Inova em sua proposição, este trabalho, tendo em vista que a preocupação dos estudos de religião e de religiosidades, levados a efeito por historiadores, sociólogos, antropólogos, ocupam-se com variadas temáticas, deixando aos teólogos e exegetas a discussão sobre Deus. Le Goff se propõe, então, a pensar o Deus dos cristãos medievais em sua historicidade, seu lugar na sociedade, na política, entre camponeses, entre senhores, na vida rural, na vida urbana, no recinto dos templos, nas universidades, nas escrituras e na iconografia.

A obra estrutura-se numa entrevista concedida ao historiador das religiões, Jean-Luc Pouthier. O conjunto da entrevista acha-se organizado em quatro capítulos, precedidos por uma introdução de Le Goff que, sintetizando algumas idéias, anuncia o espírito do livro:

A imagem de Deus numa sociedade depende sem dúvida da natureza e do lugar de quem imagina Deus. Existe um Deus dos clérigos, e um Deus dos leigos; um deus dos monges e um Deus dos seculares; um Deus dos poderosos e um Deus dos humildes; um Deus dos pobres e um Deus dos ricos. Tentamos apreender esses diferentes “Deus” em torno de alguns dados essenciais: o Deus da Igreja, Deus da religião oficial; o Deus das práticas, que na Idade Média são fundamentalmente religiosas, antes que emerjam aspectos profanos. São os dogmas, as crenças, as práticas que nos interessam, na medida em que definem e deixam entrever a atitude dos homens e das mulheres da Idade Média em relação a Deus. (p.11)

Assim, o primeiro capítulo, “De que Deus se trata”, aborda, dentre outras coisas, a transformação do Deus dos cristãos em Deus único do Império romano. “Esse Deus é um Deus oriental que consegue se impor ao Ocidente”. Entre as perseguições, a tolerância e a oficialização do cristianismo e de seu Deus, Le Goff apresenta o processo de orientalização religiosa da cultura romana e sua busca de nova hegemonia política, na crise moral e religiosa resultante do expansionismo.

Interrogado sobre as permanências dos cultos pagãos, o autor confirma uma resistência limitada às elites, restando, na verdade, numerosas práticas mágicas entre as populações camponesas, como culto das árvores, culto das fontes; que o cristianismo chamará e combaterá como superstições. A própria presença dos invasores bárbaros, com sua estrutura tribal fortemente hierárquica, favoreceu a conversão das populações. E, ao tratar dos sintomas e condições em que ocorreu a passagem das práticas religiosas do início da Idade Média, para o monoteísmo, Le Goff é categórico:

Vemos essa distinção de um modo privilegiado a partir dos lugares de culto. É a passagem do templo pagão para a igreja. Os casos em que o Deus dos cristãos se instalou na casa de um deus pagão são pouco freqüentes. O fenômeno mais comum foi a destruição dos templos. O novo Deus chegou em meio a uma grande atividade de demolição, que também atingiu os objetos naturais aos quais se rendia culto quase divino – essencialmente as árvores sagradas. Os grandes santos do início da Idade Média são destruidores de templos e de Idade Média. (p. 23)

Ergue-se uma crença fundada numa rede de lugares de culto, com destaque para os santos que, sob a forma de relíquias, apossam-se de local para render-lhe homenagem. Aquilo que o autor denomina uma “ocupação estreita e estruturada da topografia”. Nela se espraiam redes de estradas, de ordens religiosas, de peregrinações...

Mas, em que Deus acreditavam nesse momento? O Deus da Idade Média é um Deus oficial. Além dele não existem mais que falsos deuses. Porém, esse monoteísmo enfrentava fortes tradições de homens e mulheres com “o hábito de se rodear de personagens sobrenaturais. O mundo antigo era cheio de demônios. De “dáimon”, palavra grega designativa de gênio, bom ou mau; reclassificados pelo cristianismo como anjos e demônios, numa tentativa formal de eliminação do maniqueísmo. O “Bom Deus”, entretanto, suscitava heróis, santos, intermediários seus junto aos fiéis; auxiliares, primeiro carnais e materiais, depois, com suas relíquias, demarcadores da onipresença de Deus na multiplicidade dos lugares de culto.

“Duas figuras maiores, o Espírito Santo e a Virgem Maria”, é o título do segundo capítulo. O lugar do Espírito Santo na teologia, nas práticas e instituições religiosas medievais, torna-se fundamental no século XIII, como uma espécie de “Deus ex machina”, responsável por intervenções excepcionais, numa sociedade que se urbanizava, sendo fortemente cultuado em certas atividades coletivas, confrarias, hospitais, nos sermões sobre os “sete dons” do Espírito Santo. Portanto, o santo espírito não descia mais - simbolizado num pássaro - apenas sobre reis convertidos.

Santo Agostinho inverte a ordem dos dons, apresentados por Isaías, colocando o temor, que era o último, em primeiro lugar. Assim, a popularização do Espírito Santo condiz, na opinião de Le Goff, com uma relativa quebra do monopólio intelectual do clero, com o advento das escolas urbanas, das universidades, da escolástica. Esta última servindo de meio ao Espírito Santo, para dirigir a Deus o setor da ciência.

Deus permanece, é claro, o mestre único do saber e da difusão do saber para o homem, mas de algum modo delega seus poderes, no que concerne precisamente ao saber, a uma das pessoas de que é composto. (p. 50)

No vácuo aberto por essa “flexibilidade do monoteísmo medieval”, Le Goff fala da obra escatológica, meio ortodoxa, meio herética, de Gioacchino de Fiore (c. 1135-1202), como também da iconografia (“iconoclastia” e “iconodulia”) da Trindade e do Espírito Santo, no final da Idade Média.

Outro assunto de destaque, e simultâneo ao culto do Espírito Santo, é a promoção da Virgem. O autor considera a desprendimento da condição feminina em direção ao “status” divino, como parte, também, da crise geral do século XIV, onde:

Todas as infelicidades fazem com que os homens e as mulheres cada vez se tornem mais sensíveis ao deus sofredor, ao cristo da paixão. E, ao mesmo tempo, procurem uma proteção. Daí o desenvolvimento do papel do Espírito Santo e a promoção da Virgem. (p. 58)

Contudo, lembra Le Goff, não foi a mulher com isso beneficiada, numa possível libertação do estigma demoníaco, nela impresso desde o Éden, diríamos. A criança foi a grande beneficiada, fazendo evoluir “o lugar simbólico da criança”, sobretudo através do Menino Jesus, a “Criança por excelência”.

O terceiro capítulo, intitulado “A sociedade medieval e Deus”, destacamos duas importantes reflexões. A primeira diz respeito ao caráter original do Deus dos cristãos medievais, que é sua representação física; contrariamente aos judeus e muçulmanos, que proibiam reproduzi-lo em imagens, embora tenham lhe dado os nomes de Javé e Alá. Podemos acrescentar que proliferação de imagens antropomórficas de Deus, na sociedade feudal cristã ocidental, está relacionada ao caráter do uso das escrituras sagradas, que eram exclusivas a certa parte do clero, resultando (ou sendo resultado) no elevadíssimo analfabetismo.

A outra questão diz respeito à construção da imagem do rei como “majestas”, ou seja, “a atribuição de um caráter sagrado ao cabeça da hierarquia política”. No plano teológico, essa representação será atribuída a Deus, “Deus Pai”, cabendo ao Cristo “Filho”, também uma postura de majestade; pois ele presidiria ao juízo final.

Assim, conclui Le Goff, embora a partir do século XI o Cristo seja representado e invocado pelo aspecto da humildade e do sofrimento; no século XIII e, especialmente, no XIV, apresenta-se um monoteísmo ambivalente: o Cristo é “Deus na majestade do juízo final, e também o Deus crucificado da Paixão”.

O quarto e último capítulo, “Deus na cultura medieval” se inicia com uma colocação de Pouthier sobre o lugar ocupado pela Igreja no coração da vida cotidiana dos homens e mulheres da idade Média. Le Goff, por sua vez, ressalta o que considera uma característica profunda da sociedade e civilização medievais: a tensão. Ou seja, uma tensão “entre relações diretas e relações indiretas com Deus”, onde a Igreja aparece como ator fundamental. O ponto fucral é o trabalho intensivo para assegurar seu lugar de intermediária entre o homem e Deus, que se consolida com a teologia e a prática dos sacramentos. Contudo, lutava a Igreja contra fortes aspirações dos leigos, e de clérigos, por uma relação mais direta e individual com Deus; daí os eremitas, anacoretas, as heresias... Como antídoto, a Igreja estimulava o cenobitismo, ou seja, a vida coletiva nos conventos; além da repressão, acrescente-se.

Esse quadro conflituoso no interior da crença cristã e da instituição Igreja, demarcado por aspirações à devoção coletiva ou devoção individual, é exemplificado pelo autor através das vidas e obras de São Martino, fim do século IV; e São Francisco de Assis, entre os séculos XII e XIII.

Além disso, respondendo à indagação sobre “outros meios de conhecer Deus”, Le Goff lembra que a “ciência de Deus” foi tardia no Ocidente, se comparado ao cristianismo bizantino. Somente no século XII apareceria a teologia, com Abelardo, tornando-se “ciência” apenas no século XIII, no quadro universitário, desdobrando-se na fundação da escolástica, abrindo flancos ao aristotelismo. Destaca Anselmo de Cantuária e sua definição de fé como “aspiração a Deus pela inteligência”, bem como a racionalização de Deus pelo árabe Averroés.

Le Goff se estende ainda pelas tensões em torno da Bíblia na reflexão teológica medieval, a perspectiva do Judaísmo sobre Deus, a dinâmica dos sacramentos, os milagres, o lugar do homem na sociedade teocêntrica e certo humanismo medieval.

Fugindo ao lugar comum historiográfico de um suposto teocentrismo quase absoluto e de um monoteísmo triunfante e definitivo, no ocidente medieval, Le Goff apresenta ponderações muito apropriadas ao estudo das religiões, como ao entendimento das religiosidades em nossas sociedades modernas.

[*] Professor de História da Faculdade de Educação, Ciências e Letras do Sertão Central (FECLESC), da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará / bolsista FUNCAP.

Publicação Historia e Historia - UNICAMP

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