segunda-feira, 8 de junho de 2009

Armadilhas visuais


Luiz Renato Martins

Antônio Dias
Vários Autores
Edição trilíngue: português, alemão, inglês
Cantz Verlag, 176 págs.
"A arte deve intervir lá onde falta algo" (1) "Minha idéia era representar um estado que fosse de ser e de não-ser ao mesmo tempo; o que não pode ser descrito por um outro sistema de comunicação" (2)
Uma obra que não tem estilo, que unidade terá? Que método ou coerência une linguagens como as figurativas e as analíticas, trabalhos heterogêneos como pintura, cinema, instalação, performance, livro, disco, jornal, vídeo, artesanato etc, e fortes iconográficas tão díspares quanto a pop, a arte conceitual, o artesanato do papel (aprendido no Nepal), o suprematismo, a arte matérica, o neo-expressionismo etc?
O conjunto da obra de Antônio Dias -reunida no livro-catálogo de duas retrospectivas do artista, no Institut Mathildenhohe Darmstadt e no Paço das Artes (S. Paulo, dez. 1994)-, põe um tal desafio. Paulo Sérgio Duarte, autor do mais abrangente estudo existente, no Brasil e no exterior, sobre a obra de Dias (3), enfrenta o enigma da variedade desta obra, realçando o processo de trabalho diante dos produtos, ou seja, do valor positivo dos objetos em si.
Em suma, valeria mais a unidade sintética da obra, o método do que os artefatos. Temos, pois, a arte como "cosa mentale", como queria Leonardo, ou uma obra efetivamente reflexiva, que Duarte examina via três eixos de questões: 'o desencontro entre arte e sociedade, entre o sujeito e seu corpo em jogo com um processo que o fragmenta e dilacera', e ainda, a crítica da arte como modo semântico e cognitivo. Mas como se unificam tais pontos na obra?
Duarte aponta as etapas do processo. "The Illustration of Art", série de trabalhos do início dos 70, apropria-se com ironia de modelos do minimalismo e da arte conceitual, para subverter a sua orientação. Dias minimiza assim a questão ontológica do espaço e o programa minimalista em geral, para priorizar a crítica da instituição ou do modo social da arte.
A rebeldia e a combatividade da obra de Dias foram notadas em 67 por Mario Pedrosa (4). Duarte aponta, numa peça de 85, Nota sobre a morte imprevista -já com 'um elenco de estruturas sintáticas e elementos léxicos' próprios 'a obra atual- como os dados da pop são questionados pelos valores do construtivismo russo, na composição e na redução cromática ao branco-vermelho-preto. E como a iconografia apologética do mundo do consumo e/ou do espetáculo, própria à pop, cede à mescla de ícones religiosos e imagens de crime (a crítica substitui a reiteração).
Dias, para Duarte, nega ainda o fetiche autoral e, antes, o da anterioridade da consciência do ato ou da origem metafísica do Eu. As imagens do corpo, na obra, "não transferem dados oníricos para a tela, não representam fantasmas", mas desvendam o corpo como "construção psicológica". E, pela "arqueologia do presente", a obra propõe a autonomia do olhar.
A ida de Dias ao Nepal, em 77, para aprender a fazer papel, segundo Duarte, não significa nem adesão à cultura oriental, nem reiteração de um novo suporte, mas um diálogo em novo grau (afetivo, inclusive) com o fazer; diálogo que renova a "astúcia do sujeito consciente de seu objeto". Os "papéis do Nepal" conduziram assim à fase atual, marcada por uma reflexão "sóbria" e ao revés do neoexpressionismo recente que "funde a imagem a um simulacro de cena do ato pictórico", enquanto a obra de Dias, "separando a emoção da visibilidade" e "o conhecimento dos afetos da memória", leva "ao rigor de uma estrutura cujos elementos não se encontram mascarados". Pois, neste processo, resume Duarte, "separar, em vez de fundir, para não iludir (...) é o núcleo do potencial crítico".
Interpelado pelo crítico, o leitor/espectador tem o que julgar, visto que o livro -que é primoroso-, além de trazer as palavras de Dias, em diálogo com N. Tilinsky, da equipe do Mathildenhohe, contém nos quase 2/3 restantes um apanhado fotográfico excelente da obra de Dias de 87 a 94 -mesmo até de peças bem recentes como a série "Brazilian Painting/Bosnia's Jungle" de 1994, posterior ao texto de Duarte.
Salta à vista, à luz do conjunto da obra, a sua gênese polemizante. Assim, a evolução das mudanças de suporte e de linguagem na obra segue a lógica da paródia e do antagonismo; Dias vai se contrapondo, passo a passo, aos códigos dominantes na ordem mundial das artes. Dos entrechoques com a pop à fase atual, a obra apropria-se de modelos e os reutiliza (exemplo, rarefaz o driping de Pollock), através de união rara de domínio técnico e ironia, para produzir distanciamento.
Dias atua, pois, roubando as armas do oponente e intervindo no foro dos condicionamentos da arte: o estilo em voga, o mercado simbólico, o poder sócio-econômico, cujo caráter global é destacado desde 68 pelas legendas em inglês adotadas por Dias. No ato de legendar -aliás, constante ao longo da obra- nota-se a marca brecht-benjaminiana, conforme à idéia de recorrer à legenda como modo de limitar o valor de imediatez da imagem.
A ironia, o cálculo e o distanciamento são assim centrais à estratégia da obra -reflexiva e combativa; a reflexão sobre o fazer e aquela sobre a percepção (muitas vezes, desde os "papéis", designada pelo uso do ouro evocativo das auréolas da iconografia cristã) implicam-se mutuamente -em vez da dissociação vigente entre produção e consumo no regime da mercadoria. As legendas (ou signos: cifrões, ossos, ferramentas, bandeiras, planta da galeria... representados nas telas, desde 81) delimitam o sentido das obras, pondo um teatro de operações e guiando a reflexão para alvos precisos: a produção e o consumo da arte; ou temas de maior alcance semântico, extraídos da mídia como índices da ordem global (Lin Piao-68, vitória de Nixon-72, Watergate-73, Bósnia e Brasil-94).
Os conflitos endógenos do fazer da arte vêm, porém, antes, atestando a radicalidade de sua reflexão. Desse modo, não há peça da obra que apresente superfície ou técnica homogênea. Seja nas mais abstratas como nas mais "pictóricas", a recepção é instada a se dar aos saltos, isto é, a ganhar graus de reflexão ou pontos de vista diferentes.
É exemplar o que sucede na obra desde 80. Frente à voga dos símbolos orgânicos e de materiais similares, ligados ao neoexpressionismo, e com a restauração da subjetividade, nos termos da era neoliberal, Dias reage fazendo pinturas que trazem uma face à primeira vista ilimitada e que excita infinitamente a fantasia (o ouro, aqui, tem a dupla valia de excitar e ironizar), só que logo esfriada pela percepção do uso de pigmentos industriais, e estranhada pelo apuro impessoal da técnica e outros sinais. É face, de repente, interceptada por outras formas. O que realça a idéia de incompletude ou a raiz imanente do olhar.
Nesta via antiexpressionista ou materialista, a idéia do artesanato pictórico surge para ser negada, e a cor nada simboliza; é só um resíduo da matéria empregada (vide os papéis impregnados por elementos como chá, terra, cinzas etc e, nas telas de agora, o preto do grafite, o amarelo do ouro e do cobre etc). Tais imagens se polarizam entre um apelo ao devaneio ilimitado e outro inverso à abstração; a condição da recepção se evidencia aí: recusa ou aceitação do jogo dialético da reflexão.
Um exemplo é a série "Brazilian Painting/Bosnia's Jungle", de cujo conjunto, ademais, é significativamente extraída a capa do livro. A regra da série é trazer -ao modo de um rebatimento geométrico- uma simetria nos desenhos das manchas das duas telas retangulares, que sempre compõem as obras da série. As manchas são de ouro composto com cobre, e o fundo ora de malaquita verde, ora de acrílico vermelho. A imagem pode evocar uma pele de onça, uma camuflagem de roupa militar, ouro e sangue, ouro e selva -ao gosto do freguês. Como a estrutura é igual nos dois campos e destaca a simetria das projeções em detrimento das diferenças de cores entre os retângulos, o que sobressai é algo fora das telas, ou seja, a ordem comum ou a mesma estrutura que gerou os rebatimentos como as duas faces de uma mesma moeda -na Bósnia e no "Brazil" (para, segundo Dias, "... mostrar esta totalidade, que existe fora do quadro, e que de lá o invade", pág. 54).
(1) Bertolt Brecht, "Escritos sobre Literatura e Arte-1", "Gesammelte Werke", 18, Frankfurt-am-Main, Suhrkamp Verlag, 1967, pág. 124
(2) Antônio Dias, "Em Conversação", in Antônio Dias, pág. 54
(3) Antônio Dias, in "Antônio Dias", RJ, Funarte, 1979
(4) "Este (Dias)... na linha de frente internacional tem seu posto de combate" Cf. Mário Pedrosa, "Do Pop Americano ao Sertanejo Dias", "Correio da Manhã", 29-10-67, republicano in "Dos Murais de Portinari aos Espaços de Brasília", S. Paulo, Perspectiva, 1981

LUIZ RENATO MARTINS é autor de "Conflito e interpretação em Fellini" e doutorando em estética no departamento de filosofia da USP

Folha de São Paulo

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