segunda-feira, 6 de abril de 2009

A REDESCOBERTA DA MENTE


A estrutura da consciência

Armando Mora De Oliveira

JOHN R. SEARLE

o vigor deste livro de Searle deriva do fato de servir a um objetivo terapêutico: denunciar o modo como a filosofia contemporânea da mente ainda está prisioneira da linguagem da metafísica clássica. Nesse sentido, continua fiel à lição de Austin e Wittgenstein: analisar a nossa utilização da linguagem é quase decisivo para pôr em pratos limpos o lugar onde os problemas filosóficos residem.
Como ele próprio diz, "sempre que se tem um problema filosófico que parece impossível resolver, isso acontece porque em algum ponto está havendo uma suposição errônea". E, de fato, os padecimentos da filosofia da mente "dos últimos 50 anos" derivam, por um lado, de seu "comprometimento com o vocabulário tradicional". E o outro lado originador do consenso filosófico cegante que Searle se propõe combater é que a visão "científica", "materialista", da mente tem necessariamente que eliminar ou excluir ou reduzir a "consciência" como fenômeno da psicologia humana.
O discurso searleano é dissidente (se se considerar o paradigma filosófico hegemônico) por apresentar um "blend" conceitual surpreendente. Senão vejamos. Searle coloca a teoria da evolução e a teoria atômica da matéria entre os tijolos básicos da sua visão de mundo. (Como ele mesmo confessa, o seu mundo não tem alternativa; coloca de lado qualquer resquício religioso ou metafísico tradicional. A propósito de uma discussão filosófica ocorrida na Índia, diz-nos que não saberia como dialogar com uma pessoa que lhe alegou ter "experiências mentais" de vidas passadas.) Tudo isso para salientar o seu endosso ao mundo descrito pela ciência moderna. Mas, ao mesmo tempo, Searle defende uma ontologia que inclui a "consciência" como fenômeno objetivo. Sua doutrina tanto pode ser descrita como "realismo intencional" (a intencionalidade da consciência existe realmente) quanto como "naturalismo biológico" (a intencionalidade ancora evolutivamente na biologia dos organismos).
Searle não acha correto que às vezes o descrevam como neocartesiano ou como defensor de um dualismo de propriedades. A decisão ontológica de incluir a consciência "no" mundo físico não revela opção por qualquer tipo de dualismo, nem por causa disso Searle compromete-se com algum tipo suspeito de não-materialismo. Essa rede de velhos pares opositivos -monismo/dualismo, materialismo/idealismo etc.- é que alimenta a discussão filosófica, infestando a categorização herdada pela linguagem.
A admissão da consciência como real só é escandalosa para aqueles que, além de não ter consciência de sua prisão linguística, se recusam a levar em conta os mais comezinhos fatos da vida corrente. Como é que hei-de provar a consciência a um homem que me diz não ter consciência de sentir o desejo que experimenta, de fato, de ir à Copa de 98? Como introduzir prova naquilo cujo modo de manifestação é ser-me evidente? Todavia, não se pense que a filosofia de Searle se reduza aos seus aspectos de defesa do senso comum britânico. As suas teses são sobretudo "fortes": "Os fenômenos mentais são causados por processos neurofisiológicos no cérebro e são eles próprios características do cérebro"; "os estados mentais são supervenientes aos estados neurofisiológicos no seguinte sentido: causas neurofisiológicas de idêntico-tipo teriam efeitos mentalísticos de idêntico-tipo"; e, assim, "o estado mental da consciência é apenas uma característica biológica, quer dizer, física do cérebro"; "o que quero dizer é que a consciência 'qua' consciência, 'qua' mental, 'qua' subjetiva, 'qua' qualitativa, é física porque mental".
Em suma, Searle pretenderia capturar o melhor de dois mundos: mostrar algo como a "emergência" naturalista da consciência, realizada no cérebro, a partir de níveis de organização mais baixos (se considerados sob descrições de nível diferente; portanto, sem apelo a qualquer dualismo) e, ao mesmo tempo, fazer jus a todas as características ditas fenomenológicas (qualia, subjetividade, intencionalidade intrínseca). Se essa ambição se realiza de modo convincente em todos os aspectos abordados (e são muitos) é algo a ver. Sentem-se zonas problemáticas, por exemplo, na crítica da causalidade humeana, à qual Searle pretende desde sempre subtrair a causalidade mental. Por outro lado, o capítulo bastante extenso sobre o inconsciente e a existência de estados mentais inconscientes constitui uma crítica poderosa do modelo freudiano, mas provavelmente nenhum pesquisador atual em ciência cognitiva estará disposto a aceitar que "todos os estados intencionais inconscientes são em princípio acessíveis à consciência".
Originado em "Literal Meaning", e retomado em 83, o tema do "Background" é talvez a pesquisa mais original de Searle -o recente livro sobre instituições sociais e intencionalidade coletiva amplia a pesquisa ora apresentada. Ficamos fascinados ao ver como no limite os temas da vertente heideggeriana da fenomenologia (que provavelmente chegam a Searle na óptica de Dreyfus) cruzam-se com a tradição wittgensteniana, e é de se esperar que alguns estudiosos dos vários estágios da fenomenologia venham a reconhecer, no entrelace entre o intencional representativo e as capacidades básicas não-representacionais, um eco dos impasses husserlianos entre o hilético e a intencionalidade originária.
A maneira desenvolta e desassombrada como Searle cava a sua trincheira realista no interior do campo analítico contra ventos e marés, resistindo ao ceticismo pós-moderno, ao relativismo exangue, desviando-se do interpretativismo intencionalista, polemizando com o funcionalismo, o cognitivismo e o eliminativismo, constitui um motivo muito forte para lê-lo, agora.
Armando Mora de Oliveira é professor de filosofia da linguagem no departamento de filosofia da USP.

Folha de São Paulo

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