terça-feira, 28 de abril de 2009

Perplexidades da esquerda


Celso Frederico

O novo livro de Emir Sader, reunindo diversos ensaios publicados nos últimos anos, é um painel vivo da atormentada política latino-americana e um convite persuasivo à reflexão e à ação. Intelectual dedicado e veterano militante, Emir Sader impõe uma coerente lógica ao que escreve, e o faz de maneira clara e elegante, própria de quem quer se dirigir ao grande público sem resvalar para o simplismo. Não é gratuita a lembrança de Russel Jacoby e de seus comentários sobre as modificações na intelligentzia norte-americana: o fim do intelectual ligado à cultura pública, seu confinamento na academia, o recurso à linguagem cifrada nas especializadas e desinteressantes monografias. Contra esse estilo, amplamente consolidado, o autor reitera sua coerência ao refletir sobre questões de interesse geral, questões com que ele próprio se debateu e continua a se debater na militância política.
A análise das sucessivas derrotas da esquerda na América Latina, nas últimas quatro décadas, as perspectivas da resistência solitária de Cuba, os impasses da esquerda após a desagregação do socialismo real, a questão democrática, a trajetória do PT etc., fazem-se acompanhar de textos sobre as referências teóricas que fascinaram o autor e toda a sua geração: Rosa Luxemburg, Ernest Mandel e Che Guevara.
"Nós Que Amávamos Tanto 'O Capital'±", originalmente publicado na revista "praga", testemunha o cruzamento da visão retrospectiva do militante com o analista político. E isso porque Emir não só participava das discussões teóricas travadas pelas organizações de esquerda, como também integrava um dos grupos de leitura, formados pelos professores da USP, para estudar "O Capital".
A interpretação de Emir sobre o "seminário de Marx" não economiza elogios à necessária busca de rigor nas ciências sociais efetuada pelo grupo: desse esforço concentrado de leitura saiu depois um conjunto significativo de obras que renovaram o pensamento acadêmico. Mas a sua militância o impedia de encerrar-se na torre de marfim e desprezar as outras vertentes de pensamento verdadeiramente afinadas com o movimento social da época.
A contraposição entre o rigor metodológico, perseguido pelos intelectuais paulistas, e o esquematismo, atribuído pelos uspianos à intelectualidade carioca agrupada em torno do Iseb, é vista numa perspectiva crítica. O ensimesmado e provinciano pensamento uspiano, encastelando-se no rigor metodológico, permaneceu imune às tempestades que se abatiam sobre a sociedade brasileira. Além disso, padecia de uma visão preconceituosa e maniqueísta, alheia à profunda renovação cultural que se processava no Rio de Janeiro em torno de Ênio Silveira e da editora Civilização Brasileira, bem como à intervenção cultural realizada por Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder, visando diversificar os registros teóricos do marxismo, as propostas educacionais de Darcy Ribeiro etc.
Analisando esse capítulo municipal da recepção de Marx, o autor polemiza com Roberto Schwarz, que afirmou que "o contexto imediato do seminário não era a esquerda e a nação, mas a Faculdade de Filosofia". O olhar militante de Emir constata que a descoberta de Marx pelos intelectuais uspianos tem a sua explicação última no rumor das ruas, no intenso movimento popular impulsionado pela frente nacionalista, cujos ecos, finalmente, fizeram-se ouvir na academia. O encontro com "O Capital" não resultou, diríamos nós, da evolução imanente da consciência filosófica uspiana que, após percorrer Kant e Hegel, debateu-se com a dissolução do hegelianismo para, enfim, chegar a Marx...
Emir polemiza ainda com Schwarz, que aponta a "ascendência intelectual e política" de Fernando Henrique Cardoso, um dos participantes do seminário, "no interior da esquerda". Emir contesta a afirmação, enumerando os autores que a esquerda lia na época. A "teoria da dependência", desenvolvida por FHC, passava ao largo das discussões travadas na esquerda, ao substituir a noção de imperialismo pelos "condicionamentos externos" do desenvolvimento econômico. Com a derrota da esquerda, FHC operou a passagem da "teoria da dependência" para a "teoria do autoritarismo", ideologia amplamente influente que presidiu a transição para a Nova República, hegemonizada pelo grande capital em oposição ao Estado. Não houve, conclui o autor, nenhuma incoerência na evolução intelectual de FHC. O presidente, sentindo a estocada, dispensou o "elogio" e criticou o texto de Emir numa entrevista à Folha (13/10/96).
Outro ponto alto é o texto que dá nome ao livro. Enfocando as perspectivas do PT, o autor faz um balanço das experiências revolucionárias do século 20 centradas na concepção de que a tomada do poder resume-se, basicamente, à tomada do aparelho de Estado. O exemplo mais dramático vem da experiência chilena: "A defesa física e simbólica do Palácio da Moneda por parte de Salvador Allende foi a cena final da concepção que levou o governo popular a ficar cercado dentro do aparelho de Estado, transformado em armadilha: a concepção de que sua tomada seria o objetivo estratégico central do novo poder. Foi subestimada a construção do poder apoiada em novas bases sociais, na articulação dos elos do aparelho estatal -recuperáveis para a estratégia popular- com os novos embriões de poder que surgiam nos bairros, nas fábricas, nas empresas, nos campos, nas escolas, nos meios de comunicação".
O poder não é uma coisa a ser tomada, mas uma relação social. O exemplo da tragédia chilena é evocado para se pensar o destino do PT. As ilusões eleitorais, transformadas em derrotas e desânimo, repõem a discussão sobre a estratégia política a ser seguida e a necessidade de formar contrapoderes no interior da sociedade. Mas aí começam os problemas, postos pela realidade, que acabam invadindo as páginas do livro e criando indecisões paralisantes:
a) afinal, qual é o caráter da revolução brasileira? Esta questão, que havia sido o divisor de águas da esquerda desde fins da década de 50, volta à cena no novo contexto. A perspectiva socialista, que sempre norteou a trajetória do autor, parece debater-se com formulações imprecisas: "revolução democrática", instauração de "democracias sociais", criação da "esfera pública", ênfase nos "direitos da cidadania" etc. Propostas vagas para um projeto ainda indefinido que pretende "inventar uma nova democracia, de caráter social", "uma democracia radical, solidária e humanista";
b) a "alternativa de poder centrada na força dos trabalhadores" convive, assim, com a extensão dos direitos civis da cidadania e um público socialmente heterogêneo. Por isso, o que sobe para primeiro plano é "a democracia na propriedade da terra, na questão habitacional, nos serviços de saúde, de educação, de seguridade social", seguida da "democracia nos meios de comunicação", "direitos das minorias de decidirem autonomamente o seu destino, começando pelo direito ao aborto pelas mulheres", terra para os indígenas, "igualdade para todas as raças" etc. Justas reivindicações, mas que poderão ser absorvidas e neutralizadas pelo capitalismo moderno;
c) sem um claro projeto a guiar a ação dos agentes sociais, o risco maior é o corporativismo selvagem. Se o drama de Allende consistiu na criação da "dualidade de poderes dentro do aparelho de Estado", o corporativismo, por sua vez, também estabelece uma dualidade entre as representações particularistas da sociedade e a representação universal pretendida pelo partido político. E esse dualismo, nos momentos em que o partido reflui, exacerba as pressões dos grupos particulares e dos "lobbies" sobre o Estado, inviabilizando a própria permanência da democracia formal;
d) finalmente, o apelo aos movimentos "de base" ocupam o lugar de uma questão maior ausente nas reflexões de Emir: a revolução técnico-científica em curso e seus efeitos devastadores sobre a classe operária. O olhar do autor volta-se para o passado para dele retirar elementos de estratégia para o presente; mas as tendências, que lenta, mas inexoravelmente, se desenham, projetam um futuro em que nada será como antes.
Sintoma das perplexidades da esquerda contemporânea, o livro de Emir Sader é um convite à reflexão sobre a história vivida e um desafio à imaginação para aqueles que sabem que a história não acabou.
Celso Frederico é professor da Escola de Comunicações e Artes da USP e autor de "O Jovem Marx" (Cortez).

Folha de São Paulo

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