terça-feira, 28 de abril de 2009

MODERNISMO - TARSILA ANOS 20


Bonita sinhá cubista
Sergio Miceli

Vou fazer um apanhado sumário do trabalho de Léger entre 1919 e 1923, para que o leitor possa ajuizar a modalidade de impacto e influência a que esteve exposta Tarsila de Amaral durante suas estadias em Paris na década de 20. Léger fizera anotações minuciosas do que vira na frente de batalha durante a Primeira Guerra, continuando esses estudos no hospital onde levou tempo para curar seus ferimentos. Tais vivências se tornaram seu principal assunto, levando-o a sublinhar o anonimato dos combatentes e os efeitos devastadores do conflito. "O Jogo de Cartas" (1919) mostra soldados mecânicos, sem rosto, convertidos plasticamente em cilindros metálicos em choque com planos chapados coloridos, imersos numa ação destruidora irresistível. Logo essa matriz deu lugar a telas em que um tema ocupava outra vez o núcleo da imagem. "A Cidade" (1919) acentua elementos figurativos -homens, escadas mecânicas, rolos de fumaça, janelas etc.- em meio aos planos de cor, buscando criar equivalências em termos estritamente pictóricos.
A etapa subsequente são os conhecidos grupos de nus femininos expostos em 1921, com figuras estruturadas a partir de volumes cilíndricos metálicos, numa fatura reminiscente da forma clássica idealizada, talvez o momento de seu trabalho que mais se aproxima de uma restauração da ordem pictórica tradicional. Essas representações continuavam ligadas à vida moderna, sem o mesmo impacto de velocidade e energia de fases anteriores. Os nus dessa fase de Léger e mais as estatuetas e máscaras de arte negra, acessíveis no circuito parisiense, constituem algumas das referências de Tarsila para compor "A Negra".
Léger passou daí a explorar a representação de espaços abertos em que a figura humana se encaixava em paisagens demarcadas por edifícios modernos e anúncios publicitários. O ímpeto simultaneísta parecia bastante mitigado nessas "paisagens animadas" de subúrbios, praticamente cancelando o recurso ao espaço cubista planimétrico. Foram exatamente essas obras, acionando linguagens tradicionais de representação, as que melhor se amoldaram às necessidades construtivas de Tarsila. Elas haviam ressuscitado a ordenação visual fundada na perspectiva, sugerindo uma sucessão de planos envolvendo objetos, figuras e repartições do ambiente. Sem chegar ao extremo de restaurar uma linha de fuga exclusiva, por conta de algumas ambiguidades e bruscas mudanças de foco que embaralhavam a continuidade do espaço, essas "paisagens animadas" forneceram o abc compositivo de toda a fase "pau-brasil", bastando confrontar "Morro da Favela" (1924) de Tarsila a "Homem com Cachorro" (1921) de Léger. Não por acaso esta era, das telas de Tarsila, a favorita de Blaise Cendrars, cujos olhos tarimbados aí conseguiam discernir uma força de resolução plástica original em relação ao modelo em pauta.
Por conseguinte, a situação das vanguardas européias com que Tarsila e os demais artistas brasileiros tiveram de se defrontar ao longo da década de 20 tinha muito pouco a ver com sua própria experiência de vida, enquanto integrantes dessa nata esclarecida procedente da periferia. As modalidades de incorporação, por parte de nossos modernistas, das linguagens e procedimentos plásticos das correntes de vanguarda, não estavam de modo algum imunes aos condicionantes extra-artísticos que acabavam interferindo nessas trocas. Tarsila frequentou as aulas de Lhote, Léger e Gleizes, nessa ordem, mas o fulcro da sua linguagem plástica na fase "pau-brasil" derivou sobretudo das "paisagens animadas" de Léger.
A sinhá pintora
Tarsila do Amaral (1886, Capivari, São Paulo) era neta e filha de grandes proprietários de terra na frente cafeeira de Itupeva, a segunda numa prole de sete rebentos. Toda sua infância, adolescência e início da vida adulta foram se desenvolvendo, sem grandes atropelos, nos marcos do cotidiano confortável da aristocracia rural. O tempo se dividia entre longas estadias nas fazendas e na residência da capital, entremeado por viagens do clã à Europa. Dois acontecimentos devem ter chacoalhado essa leseira que durou até os 20 anos de uma jovem bonita e habilitada a mobilizar um dote invejável. Tarsila não tinha como se furtar às núpcias com herdeiro, ou então, à hipótese de consolação, contentar-se com uma parcela módica da fortuna familiar, que não pusesse em risco o patrimônio do primogênito e dos três outros filhos homens.
Aos 20 anos de idade, Tarsila se casou com um primo de sua mãe, passando a residir numa fazenda onde nasce sua única filha, Dulce. O casamento logo se desfez, deixando Tarsila numa situação material e familiar difícil em meio aos constrangimentos daquele ambiente social. Após quase uma década de hesitações entre diversas atividades, ela iniciou tardiamente seu aprendizado artístico em 1916: estudos de modelagem, aulas de desenho, pintura e a montagem de um ateliê. Outros dois anos de cursos acadêmicos em Paris precederam sua adesão ao grupo modernista em 1922; neste momento, vai cedendo aos poucos à corte que lhe faz Oswald de Andrade. Tarsila tinha então 36 anos, quatro a mais que seu namorado, e uma filha de 16 anos.
Tarsila e Oswald iniciam uma parceria amorosa e de trabalho que repercutiria sobre a produção de ambos. Em função da disponibilidade de recursos ao seu alcance, foram assentando um projeto artístico-literário semi-empresarial, tendo, pelo menos num primeiro momento, Paris como sede de suas operações, os mestres literários e plásticos franceses como seus modelos e o mercado metropolitano como interlocutor privilegiado. A "griffe" do casal Tarsiwald se estendia a todos os domínios do consumo de bens culturais: vestuário, locais de residência, jantares e recepções, espetáculos de vanguarda, corridas de cavalos e de automóveis, livros e obras de arte. A ambição de brilho social se misturava às pretensões de supremacia intelectual, num amálgama de práticas de consumo de luxo e investimentos culturais. Tinham condições excepcionalmente favoráveis para uma caminhada de vida e trabalho, possuidores de cacifes sociais e materiais comparáveis, de uma idêntica situação conjugal e de especializações complementares em matéria de produção cultural.
Ao longo da década de 20, o casal viaja (Europa, cidades históricas mineiras), expõe, publica e agita. Muitos dos temas, assuntos, enfoques, paisagens, personagens e títulos das telas da fase "pau-brasil" encontram-se reprocessados em poemas do livro com título homônimo de Oswald. Ora os poemas tematizam lugares, festas, personagens e eventos dos itinerários de viagem cumpridos pelo casal, inclusive reciclando frases pinçadas de cartas de Tarsila e dos filhos, ora as telas sintetizam flagrantes dessas mesmas vivências. Tarsila se mostrou sensível aos anseios formulados pelos modernistas de seu círculo íntimo, calibrando seu repertório de imagens em função das prioridades temáticas e simbólicas que logrou identificar, valendo-se dos recursos expressivos acumulados ao longo daqueles anos de treinamento, em sua condição de sinhá bonita e bem-nascida, empolgada pelo arrastão de felicidade e descoberta que vinha lhe proporcionando o grande amor de sua vida.
Do convívio mais íntimo no interior do chamado "grupo dos cinco" resultaram os retratos de Mário e Oswald, de autoria de Tarsila e Anita Malfatti, os auto-retratos de Tarsila e de Anita, obras motivadas pela competição entre elas, pelo quão se sentiam enrabichadas pelos retratados, impulso energizador que se reflete na diferença de tratamento conferido às suas respectivas "Margaridas de Mário" (Anita, 1922; Tarsila, 1922), ausentes desta exposição.
Enquanto Anita preenche a composição com um arranjo de flores numa tela pequena, Tarsila evidencia a aceitação do presente ao distribuí-las no espaço de seu ateliê, onde também aparecem uma cadeira com uma peça de roupa pendurada, uma paleta sobre uma toalha, num auto-retrato de planta baixa. Dentre os óleos e desenhos a lápis de seu companheiro, um nu de 1923 esboça com certa crueza Oswald em posição de Buda, sentado com as pernas cruzadas, ligeiramente inclinado para a frente, a cabeça pendendo para a direita, os traços do rosto sem muita definição, dando um tratamento carinhoso, hilário e meio caricato, a esse rabisco íntimo do poeta: a gordura, bem distribuída pelos braços e pernas, se avoluma nas mamas e na barriga do Serafim "ponte grande".
A Tarsila que retorna à Europa em 1923, apaixonada por Oswald, justamente aquela cujas obras foram incluídas nesta exposição, é uma mulher bonita, atraente, sofisticada, repaginada com toaletes de alta costura, decidida a alterar os rumos de seu aprendizado artístico, dando agora preferência a mestres ligados às vanguardas. Da sua fase de estudos com André Lhote, duas obras merecem destaque pelas marcas dos desafios que começava a enfrentar em sua vida pessoal e artística.
O casacão púrpura com que ela se auto-retratou ("Manteau Rouge", 1923), estreado no megajantar de homenagem a Santos Dumont oferecido pelo embaixador brasileiro em Paris, emoldura, com a imensa gola bufante e os dois florões de arremate, a imagem luminosa de uma Tarsila deslumbrante, mirando o espectador com olhos sombreados em azul, lábios desenhados, o colo, o pescoço e o rosto compondo um triângulo de pele macia. Um retrato sob medida para atender às exigências de representação reiteradas pelo companheiro, poeta e herdeiro-especulador.
O "Retrato Azul" (1923) apresenta o jovem poeta Serge Milliet, de 25 anos, que então assinava seu prenome em francês, de paletó cintado e gravata, com o cotovelo direito apoiado e a mão esquerda espalmada, em pose sugerindo uma leve rotação do corpo. Os cabelos chapados em desenho análogo ao do auto-retrato, o rosto e a mão em tonalidades ocres, dirigem nossa atenção para os olhos, molhados e ambíguos, para o nariz e os dedos que parecem possuir uma rigidez de madeira. Ao contrário do auto-retrato marcado pela disjunção entre figura e fundo, o "retrato azul" deriva sua pulsação dessa bem-sucedida fusão entre figura e fundo, bastante próximo de retratos de Lhote dessa época e de outros do período cubista de Rivera.
O auto-retrato de 1924, efígie enigmática da artista, incluído nesta exposição, feito na cola ovóide das musas adormecidas de Brancusi, transmite a imagem de uma Tarsila sedutora, plenamente aclimatada ao estilo metropolitano, sobrancelhas finas riscadas a lápis, olhos amendoados pelo delineador, brincos de pingente, expressão silente e misteriosa, à la Josephine Baker.
As duas "Composições Cubistas" de 1923 demonstram a impregnação pelo receituário do cubismo delirantemente cerebrino e idiomático de Gleizes. Pelo que se sabe, Tarsila ficou fascinada pelos ideais que ele infundia à pintura, sem, no entanto, dispor dos recursos que lhe permitissem apropriar-se desse manancial teórico e prático. Os trabalhos que melhor evidenciam o primeiro momento de aprendizagem com Léger -os pequenos óleos "Academia (La Tasse)" e "O Modelo", ambos de 1923- revelam suas dificuldades para lidar com os desafios suscitados pelo mestre. O que nele não passa de uma sugestão de coerência espacial, interrompida por quebras, desníveis e fraturas, é transformado por Tarsila num ambiente interior de feitio tradicional, com sucessivos pontos de fuga, e mesmo a mulher de perfil perdeu quaisquer articulações dos nus femininos já mencionados.
A invenção pictórica de Tarsila não reside no fato de haver incorporado à sua linguagem soluções geometrizadas de elementos da cultura nativa -folhagens, palmeiras, edifícios ou bombas de gasolina-, mas sobretudo no esforço de amoldar os procedimentos básicos do mestre a uma representação engenhosa da paisagem natural e social brasileira.
Assim como "Morro da Favela", "São Paulo", "O Mamoeiro" e "Carnaval em Madureira" se enquadram no receituário plástico mínimo das "paisagens animadas" de Léger, "Anjos", "Romance", "Manacá" e "Religião Brasileira", telas concluídas entre 1924 e 1927, numa série de transição para a fase "antropofágica", convertem elementos representativos do universo de práticas religiosas domésticas e populares -figuras de procissão, arranjos decorativos de nichos e altares etc.- em composições cultas estilizadas, de cunho fortemente decorativo e que deviam muitíssimo, em termos conceituais, à onda preservacionista que vinha atraindo a intelectualidade nativa por meio de uma revalorização do barroco.
Essas telas se enquadram bem na atitude tipicamente modernista de recriação de emblemas arcaicos e nostálgicos de uma idade de apogeu econômico e artístico. Por último, a exemplo do que se esboçou aqui com vistas a recuperar a trama de conexões histórico-artísticas envolvendo Tarsila e Léger em relação à fase "pau-brasil", conviria fazer esforço idêntico ao se explorar as fontes visuais da fase "antropofágica", a começar pelas mediações do encantamento de Tarsila por Rousseau e pelos surrealistas.
A exposição
A seleção de trabalhos para a presente exposição se ateve às fases "pau-brasil" e "antropofágica", chegando até as telas com temática social, posteriores à viagem à União Soviética, na primeira metade da década de 30. Sem dúvida, a escolha recaiu sobre os pontos altos da produção plástica de Tarsila, quer em termos de sua trajetória pessoal, quer no tocante ao cerne de sua contribuição para o modernismo brasileiro. Todavia os visitantes mais argutos hão de se perguntar por que esta bonita sinhá pintora, após uma década de trabalho inovador, deixou fenecer sua força criativa, passando os 40 anos restantes de sua vida a produzir réplicas quase decalcadas de seus próprios originais entronizados. Infelizmente, esse espectador não encontrará muitos subsídios visuais capazes de aplacar sua curiosidade, em ampla medida por conta da ausência de uma seção voltada para o esclarecimento do período de seu aprendizado aqui e no exterior.
Até mesmo para que se pudesse ajuizar a validade dos critérios estéticos adotados nesta exposição seria indispensável uma seção abrangente de contextualização, capaz de proporcionar balizas ao posicionamento da artista na história da arte naquela conjuntura crítica do pós-guerra. No estado atual da competência museológica no país, teria sido possível organizar uma sala dos mestres, colegas e contemporâneos de Tarsila. Mesmo que não se conseguisse o empréstimo de telas, esse enquadramento permitiria uma avaliação técnica menos adjetiva dos avanços e recuos do modernismo brasileiro.
A estreita associação de seu período mais produtivo com a presença de Oswald, a sua relativamente pequena produção artística em relação à longevidade de sua carreira, o repentino esvaimento de seu vigor de invenção plástica, são algumas outras questões que continuam sem resposta. Quem sabe tais indagações encontrariam alguma pista caso a exposição tivesse incluído as telas do gigantismo onírico dos anos 40, mais desenhos das viagens, de seus estudos com Lhote e Gleizes, e também, por que não, mais retratos de Oswald e de seus dois outros companheiros, o médico Osório César e o crítico de arte Luís Martins. Obras documentais desse gênero teriam contribuído para costurar a presença de Tarsila em diferentes momentos do nosso modernismo possível: sinhá bonita, grande artista brasileira, cubista nem tanto.
Sergio Miceli é professor de sociologia na USP e autor de, entre outros, "Imagens Negociadas/Retratos da Elite Brasileira, 1920-40" (Cia. das Letras).

Folha de São Paulo

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