terça-feira, 28 de abril de 2009

IGREJA CATÓLICA - OS ESPIRITUAIS FRANCISCANOS


História de uma rebeldia
Ana Paula Tavares Magalhães

Muito pouco se pode desvendar sobre a Idade Média no ocidente europeu, se não se levar em consideração a vigência de uma instituição tentacular, cuja esfera de abrangência ultrapassa os meros cuidados com a alma para se fazer largamente presente na vida dos indivíduos, das sociedades, dos Estados: a Igreja Católica. Suas determinações, bem como as querelas que suscitaram, acabaram por evidenciar o conceito de uma "cristandade ocidental", sobreposto a quaisquer eventuais consciências mais particulares de pertinência étnica, cultural ou nacional. As flutuações que então se operavam no conjunto desse imenso complexo arrastavam atrás de si um grande número de apaixonados, de desesperados, de crentes fervorosos e diligentes na condução de sua fé.
O trabalho de Nachman Falbel é a resposta a uma questão que lhe fora apresentada ainda nos anos 60: "Por que os franciscanos não conservaram os princípios originais de São Francisco de Assis?". O que está em jogo em "Os Espirituais Franciscanos" é uma tentativa de detectar o papel que desempenhou a Ordem -e, mais especificamente, sua facção denominada "Espirituais"- no conjunto das relações entre Igreja e Estado, entre clero secular e clero regular, entre os espirituais franciscanos e os demais membros da comunidade.
A linha mestra será o exame do percurso encetado pelos espirituais, grupo que permaneceu refratário à série de determinações ordenadas pela Sé romana por intermédio de vários sumos pontífices, e acatadas por outros elementos no interior da ordem ao longo do século 13, num momento em que se procurava consolidá-la enquanto instituição da igreja católica. O advento da burocracia e do pecúlio material representariam fatores de entrave à manutenção da pobreza em seus moldes mais absolutos, diretriz primeira da ordem e pensamento original de São Francisco de Assis quando concebera sua regra.
A crise no interior da ordem eclode num momento de tensão: no plano externo, a igreja medieval, essa verdadeira "monarquia pontifical", rivaliza com os Estados numa disputa de poder: ela pleiteia o poder temporal, utilizando como trampolim o poder espiritual. No plano interno, a disputa ocorre em dois níveis: aquele que envolve uma luta acirrada, feita de ciúmes e intrigas, entre o clero secular e o clero regular; e aquele processado no interior da própria Ordem Franciscana, envolvendo, de um lado, a comunidade, os defensores das medidas papais com vistas à burocratização e à posse comedida de bens, e, de outro, os Espirituais, aqueles que questionam a validade de tais medidas por julgarem não estarem elas em consonância com os valores primordiais pelos quais se pautava a ordem.
O autor faz o mapeamento dos antecedentes e da trajetória operada pelo grupo, mediante a análise da saga e das idéias de figuras que lograram vital importância para a emergência da crítica espiritual. É o caso, por exemplo, de Joaquim de Fiore, o monge cisterciense calabrês que viveu no século 12 e que desenvolveu uma interpretação da história da igreja e do mundo segundo uma concepção trinitária (ou seja, tomando por referencial a Santíssima Trindade); suas idéias serão retomadas no século seguinte pelos Espirituais.
Já situados no interior do movimento, podemos citar os franciscanos Ângelo Clareno, de Ancona, e Ubertino de Casale, da Toscana, cujos escritos e asserções lhes valeram sérias admoestações por parte da Sé Apostólica; o catalão Arnaldo de Vilanova, médico do papa Bonifácio 8º, posição esta que lhe garantiu uma certa proteção, apesar do teor crítico das idéias que professava; por fim, o franciscano provençal Pedro de João Olivi, cujo texto mais conhecido, a "Postilla Super Apocalypsim", continha elucubrações apocalípticas inspiradas em Joaquim de Fiore; Olivi teve alguns elementos de sua obra condenados pelo Concílio de Viena (1312).
Também se observa a reconstituição das posturas dos sucessivos papas, com seus concílios e bulas, em relação ao grupo dissidente. Discernem-se momentos de relaxamento e reprimenda, chegando-se, inclusive, a lançar mão daquele aparato supremo da coerção eclesiástica: a Inquisição.
Tentativa de restauração, como aquela que São Francisco teria uma vez empreendido, quando de seu despertar por meio de um sonho, no qual o Senhor lhe teria recomendado: "Francisco, restaura minha Igreja!". Aquele patriarca conseguira de fato realizar tal empresa, dentro dos cânones da ortodoxia, obtendo a aprovação de sua ordem por intermédio de uma habilidosa manobra política de cooptação do papa Inocêncio 3º; estes rebeldes do século seguinte, entretanto, permaneceram marginais à instituição, e a queda de braço entre a facção espiritual e o restante da comunidade acabou por não ser favorável ao grupo de críticos. Tal contraste de atitudes da Sé romana em relação a grupos minoritários e/ou à absorção de novas idéias apenas prima por reforçar a tese segundo a qual é impossível falar em heresia ou heterodoxia aprioristicamente. Uma heresia só se constitui a partir de uma doutrina que se possa infringir e, além disso, os limites entre a ortodoxia e a heterodoxia são muito flexíveis; sua linha divisória oscila conforme as situações conjunturais mais ou menos críticas, a orientação de tal ou qual política papal etc.
História de uma contestação doutrinária, aventura em defesa de um princípio: esta foi a inabalável luta dos Espirituais Franciscanos, que entendiam viver por um ideal e jamais abrir mão dele. Nachman Falbel busca reconstruir esse capítulo da vida do ocidente medieval europeu, contribuindo com mais uma pista para desvendar as intrincadas relações vigentes entre as várias instituições e entre os vários níveis desse imenso complexo da civilização.
Ana Paula Tavares Magalhães é mestranda em história social da USP.

Folha de São Paulo

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