terça-feira, 28 de abril de 2009

Em busca de seu duplo


Andrea Lombardi

O ensaio "O Humorismo", publicado originalmente em 1908, reúne palestras que Luigi Pirandello ministrou na Universidade de Roma no início do século. Mais tarde, após uma polêmica com Benedetto Croce, Pirandello acrescentará outros capítulos para uma nova edição, em 1920. Como observa Aurora Benardini na introdução à edição brasileira, este longo ensaio pode ser considerado o produto de uma vida. Pirandello -e não poderia ser diferente- procura criar uma genealogia para sua própria concepção da arte, esboçando uma interpretação da tradição literária italiana, a partir de sua visão do humorismo.
De fato, é contra a herança romântica e naturalista que Pirandello luta, para se desvencilhar da tradição e conquistar um espaço próprio.
Estabelece parentescos ilustres com sua concepção do humorismo, cujos motivos nem sempre ficam claros. Estão dentro desta tradição Maquiavel, Luigi Pulci, os escritores anticlassicistas da Renascença, Giordano Bruno, Alessandro Manzoni e Giacomo Leopardi.
É a partir deste último que ele critica os românticos alemães e que se contrapõe a F. Schlegel, segundo quem "a ironia consiste em não se fundir nunca completamente com a própria obra, em não perder, nem mesmo no momento do patético, a consciência da irrealidade das suas criações (...), em sorrir do leitor que se deixará prender ao jogo, e também de si mesmo, que consagra a própria vida a jogar".
Nesta releitura da tradição literária italiana ele exclui, porém, escritores como Boccaccio, por defender uma visão unilateral do cômico, e Ariosto, autor do hilariante "Orlando Furioso", por afirmar uma visão demasiado distanciada, reflexiva, sem a participação do sentimento.
A época da publicação do ensaio de Pirandello está marcada por dois ensaios de peso sobre o tema, diametralmente opostos entre si: o de Bergson ("Le Rire - Essai sur la Signification du Comique", escrito em 1899) e o de Freud ("O Chiste e sua Relação com o Inconsciente", de 1905). Se, para Freud, a ênfase está na liberação, por efeito do chiste, de mecanismos inconscientes, de forma semelhante ao efeito do sonho, para Bergson é o mecanismo social do riso que tem uma função terapêutica -revelar um comportamento mecânico, uma rigidez no fluxo da vida.
Como enfatiza A. Bernardini, Pirandello está próximo de Bergson, embora nada prove que ele conhecesse esse texto do filósofo francês. A afirmação de Bergson -"Não há nenhum inimigo do riso maior do que a emoção"- parece, na verdade, apontar para uma possível influência, "às avessas", sobre Pirandello: o humorismo, afirma este, acrescenta a um mecanismo de distanciamento (próprio do cômico e da ironia) uma participação emocional ("o pranto, a indulgência, a simpatia"), de forma a alcançar como efeito final um estado de "perplexidade entre o pranto e o riso".
A consciência tem um papel fundamental, na medida em que representa um "espelho interior no qual o pensamento se mira", mas o humorismo é o "sentimento do contrário", ou seja uma complexa mistura entre cômico e trágico, uma ambivalência irreconciliável destinada a representar o mundo atual em sua duplicidade.
Desta forma, segundo Pirandello, a obra de arte se apresenta aberta a múltiplas interpretações futuras. "Nas obras-primas do gênio humano -afirma ele- vive escondida uma mais-valia futura que se desenvolve apenas por si mesma, independente dos próprios autores". O humorismo torna-se, assim, mais do que um conceito; é postura artística e existencial, apta a caracterizar uma época inteira, quase uma continuação do romantismo e do naturalismo.
Efeito dos temas paradoxais de Pirandello é uma polaridade constante entre o conceito de realidade, herança de sua formação naturalista, e a reflexão ou auto-reflexão, caminho da consciência (ou de suas personagens) em via de se tornar completamente independente, mostrando sempre que o limiar entre os dois mundos é muito precário. Será justamente no teatro que o "sentimento del contrario" encontrará sua realização e, particularmente em "Seis Personagens à Procura de um Autor", de 1921. Os protagonistas desta peça foram produzidos pela mente do escritor, mas já não lhe pertencem mais. No prefácio, de 1925, Pirandello identifica o parto da fantasia do escritor com um parto natural: "O mistério da criação artística é idêntico ao do nascimento natural". Os personagens estarão na frente de seu criador "tão reais que os podia tocar, tão vivos que lhes ouvia a respiração... Nascidos vivos, queriam viver".
A duplicidade das personagens é não apenas uma declaração da poética de Pirandello, mas também de sua visão existencial. A relação entre cômico e trágico é subvertida, na medida em que um está no outro e aquilo que os seis personagens percebem como trágico (a relação incestuosa entre o pai e sua enteada) torna-se algo de cômico ou absurdo para a companhia teatral que deve representar seu drama, pois diferentes níveis se superpõem, tornando impossível uma visão unitária da realidade.
Neste mesmo prefácio Pirandello divide os escritores em duas categorias: os escritores cuja natureza é "histórica", cujo objetivo é representar personagens "pelo simples prazer de representá-los" e escritores "cuja natureza é mais propriamente filosófica". Estes últimos, aos quais Pirandello afirma pertencer, "não aceitam representar figuras, casos e paisagens que não estejam embevecidos por um sentido particular da vida".
A ambiguidade, esta luta contínua entre dois lados da natureza dos personagens, representantes da vida real e, ao mesmo tempo, figuras completamente autônomas, pura espiritualidade, criação, fantasia, impõe ao leitor aquele "sentimento del contrario". Uma participação, um "pathos", que permite ver os dois lados do cômico, ou seja, a duplicidade que ele define enquanto essência do "humorismo".
Nas linhas finais do ensaio, porém, Pirandello deixa transparecer sua relação contraditória com o romantismo alemão e sua concepção da ironia: "Nas representações cômicas medievais do diabo, encontramos um escolar que, para escarnecer dele, lhe pede para agarrar a própria sombra no muro. Quem representou este diabo não era, certamente, um humorista. Quanto valha uma sombra o humorista sabe bem: o 'Peter Schlemihl' de Chamisso o diz".
Peter Schlemihl, protagonista da história maravilhosa do escritor romântico Adalbert von Chamisso, vende a própria sombra ao diabo, um senhor vestido de terno cinza, em troca de uma inesgotável bolsa de ouro, por meio da qual ele se torna riquíssimo.
A ausência de sombra, porém, sua "anomalia", o torna socialmente marginalizado. Entretanto, Schlemihl consegue, inesperadamente, reconquistar a sombra e evita perder a alma, recuperando a identidade plena, pois sua existência permanece confinada ao mundo da ficção literária. Os personagens de Pirandello, ao contrário, estão condenados a viver entre realidade e fantasia, num mundo irremediavelmente cindido.
Andrea Lombardi é professor de literatura italiana na USP.

Folha de São Paulo

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