terça-feira, 28 de abril de 2009

DUAS MENINAS


Um romance, um diário
Miriam Moreira Leite

As "Duas Meninas" de Roberto Schwarz são a Capitu, de "Dom Casmurro", e Helena Morley, autora do livro "Minha Vida de Menina", que o crítico intitulou de "Outra Capitu". As duas são extraídas dos respectivos textos por um mergulho penetrante, que leva o leitor à convicção de que jamais folheara a obra-prima de Machado de Assis (1899), nem o diário de Helena Morley (de 1894, publicado em 1942). Trata-se de estudo que inclui a fortuna crítica das obras, a análise do processo criador e dos gêneros romance e diário, para examinar com lentes de aumento e filtros distanciadores a sensibilidade das duas meninas, seus inter-relacionamentos sociais e históricos e o tratamento literário que lhes deram.
É possível que a excessiva densidade do texto crítico confunda o leitor desacostumado a mergulhos nessas profundezas. É também possível que o surpreenda uma desespecialização aqui, uma experiência repertoriada ali, uns dias incompatíveis acolá, tudo isso num país onde não se pode viver. Mas é muito compensador superar o espanto e prosseguir na leitura.
Ainda que o crítico assegure que não se trata de nivelar as duas Capitus, pois o livro de Helena Morley não é um romance, nem "Dom Casmurro" uma coleção de cenas de época, situando-se portanto em chaves diferentes, a apresentação sucessiva das duas supõe uma equiparação duvidosa. Capitu é personagem criada primeiramente por Machado, mas secundariamente pelo ciúme torturante do narrador -Bento Santiago. Seus decantados olhos de cigana, oblíquos e dissimulados, não vêm fixar diretamente o leitor. São sugeridos, analisados e interpretados por um marido que se considera traído. Toda a engenhosidade de Machado, ao criar Bentinho e Capitu com ambiguidades e contradições que se desdobram, não impede que a Capitolina de Matacavalos e da Glória seja uma figura que aparece desqualificada sucessivamente em seus contornos por duas figuras masculinas.
Já a outra Capitu é a autora de um diário escrito aparentemente sem pretensões artísticas, mas com uma função explicitada de guardar lembranças para o futuro, identificar alguma coisa que esclareça ou ensine a evitar armadilhas ou ainda mostrar à juventude moderna (de 1942) como era simples a vida que se levava em Diamantina, no final do século 19. Embora a tia professora achasse corriqueira a linguagem da sobrinha, essa mesma linguagem se mostra expressiva de alguém "avessa às marcas externas de distinção social e linguística, sem figuras de linguagem nem rebuscamento sintático". O leitor entra em comunicação direta com a autora do diário.
Essa diferença essencial entre as duas Capitus talvez resulte no evidente fascínio do crítico pela menina de Diamantina, a quem dedica o dobro de páginas que à primeira.
A comparação entre as Capitus, duas meninas do século 19, de famílias empobrecidas e dependentes de outras mais ricas, inconformadas e irreverentes, não pode sugerir uma equivalência, quando uma é quem escreve (é supostamente a autora do diário), enquanto a outra é sobre quem se escreve (ainda que quem escreve seja um criador de "milagres de organização impalpável do texto"). As duas aproximam-se também pela idealização de uma psicologia feminina da época -têm uma natureza instintiva, estão confinadas a tarefas e sentimentos familiares e privadas do convívio direto com a estrutura social iníqua. As duas apresentam uma clareza mental, um gosto pelo cálculo e previsão, um senso das situações, uma constância de propósitos que, para a personagem de Bentinho, no interior da "gaiola da autoridade patriarcal", só poderia resultar em adultério, quando para a outra resultou num reconhecimento progressivo de sinceridade e capacidade criadora.
O desenvolvimento do processo do ciúme assassino de Bentinho resgata um a um os episódios que passa a ver curiosidades malsãs, falsidades e cálculos utilitários daquela cujos olhos "longos e constantes tinham tido uma força que arrastava para dentro como a vaga que envolve, puxa e traga". A estatura "apequenada" das personagens masculinas de Machado não o conscientizam, nesse resgate, de sua percepção arrastada das situações, nem das dificuldades de enfrentar condições penosas, apelando para juras e para o perjúrio sucessivamente. Nem se detém mais longamente na véspera do afogamento de Escobar, quando, num "instante de vertigem e de pecado", apalpou os braços do amigo como se fossem os de Sancha e não conseguiu mais esquecer inteiramente "a mão que teve entre os dedos, nem os olhos que trocaram".
Sem a força da construção artística de "Dom Casmurro" e sem se afastar do dia-a-dia da vida da província, Helena Morley caracteriza, com muito senso de humor, ora positiva, ora negativa e alternadamente, as condutas próprias e alheias, as rivalidades entre os dependentes, as barbaridades dos primos mais ricos, que se acreditavam melhores, a lógica do obséquio e a lógica do dinheiro.
Fascinado pelo despojamento literário da escritora mineira, o crítico traça magistralmente os componentes múltiplos da estética irreverente e belicosa de Morley. Aponta suas reações à ostentação social, à linguagem afetada, à devoção fingida e aos narizes torcidos, propondo se tal independência de espírito proviria do fato de ser uma criança, de ser uma mulher ou pertencer aos primos pobres de família poderosa. Não deixa de assinalar a situação "marginal" da menina, filha de pai inglês protestante e mãe mineira e católica. Sem serem condições determinantes, a situação subalterna e marginal pode constituir uma plataforma privilegiada de observação. O crítico liga ainda a prosa de Helena Morley a um gênero mineiro de humorismo e à "vizualização precisa e à verbalização direta da sociedade provinciana e analfabeta, com uma memória absoluta dos acontecidos, do que foi dito, e da disposição das coisas". Aí se enquadram muito bem as ruminações da autora sobre o egoísmo diante da má sorte, desdobrando-as no conflito entre atitudes individuais e o familismo paternalista, de uma região empobrecida que favorece expedientes e onde "as condições sociais são encaradas pelo ângulo do cálculo espontâneo das conveniências".
Conta que, quando os cadernos foram publicados como livro, 50 anos depois de escritos, já na ditadura do Estado Novo, uma comparação com o grosso da literatura nacional era favorável ao diário de Helena Morley. "Sua forma quase desconvencionalizada coincide com a riqueza das relações internas" em contraste com o "verbalismo prestigioso, o culto à Ciência e ao Progresso e a pirotecnia bibliográfica, científica e filosófica". Ainda que à margem da evolução literária, ao atribuir formas de ignorância e superstição que chegam a custar a vida tanto a brancos quanto a negros e fazer um encadeamento enxuto dos fatos em que parentes, vizinhos, gatos, frangos, frutas e verduras aparecem coloridos pelo desempenho de seus papéis, a outra Capitu incorpora o ponto de vista dos desvalidos, dos parentes pobres, dos ex-escravos, das mulheres, do trabalho, dos esfomeados, dos bichos e da criançada. Aproxima-se aqui da vanguarda artística dos anos 30, para a qual o "nosso acervo de relações coloniais poderia ser um trunfo positivo, ao menos estético".
O livro de Helena Morley foi publicado com o subtítulo de "Cadernos de Uma Menina Provinciana, nos Fins do Século 19", que parece ao crítico uma condescendência com escritoras juvenis, lugares atrasados e tempos idos. Neste caso, a outra Capitu assume um traço feminino já estudado em diversas autoras -a desqualificação de si mesma ou o ocultamento, com vistas a uma publicação e uma recepção menos discriminatória.
Para mostrar que "Minha Vida de Menina" integra uma linha substantiva da literatura brasileira, o crítico termina examinando os fundamentos históricos e sociais bem como o contexto teórico em que a escravidão foi examinada por Gilberto Freyre, por Joaquim Nabuco e depois, acrescentando à população pobre os imigrantes, pela reorientação "modernista e transgressiva" de Mário de Andrade.
MIRIAM LIFCHITZ MOREIRA LEITE é coordenadora científica do Núcleo Interdisciplinar do Imaginário e da Memória (Nime/USP).

Folha de São Paulo

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