terça-feira, 28 de abril de 2009

DAVID BOHM


Limite e conhecimento
Olival Freire Jr.

O físico David Bohm (1917-1992) influenciou significativamente a cultura do nosso século. Uma carta de condolências do Dalai Lama e uma homenagem da American Physical Society, quando do seu desaparecimento, testemunham a diversidade dessa influência. David Peat tem credenciais para escrever esta biografia. Dotado de formação em física, foi amigo e colaborador de David Bohm. Esta última qualificação pode sugerir que o autor não tinha a independência necessária a tal empreendimento. O receio não se confirma, pois, apesar da manifesta simpatia diante da obra de Bohm, diversos são os temas incômodos tratados. Não se trata de biografia semi-oficial. Outras são, contudo, as suas limitações.
Os cinco primeiros capítulos acompanham Bohm de seu nascimento à afirmação como físico, na Universidade de Princeton. Uma infância traumatizada pelos conflitos entre os pais e pela doença mental da mãe. A adolescência despertou vocações que definiriam a sua vida: a física, na qual o encontro com Oppenheimer abriu grandes perspectivas; e a política, expressa no início dos anos 40 por uma adesão ao Partido Comunista. Com pouco mais de 30 anos, Bohm era um físico reconhecido, com trabalhos fundamentais em física do plasma e com um livro, "Quantum Theory", bem recebido nas universidades americanas. Os capítulos seis e sete são dedicados aos desdobramentos daquelas vocações. Alvo da "caça às bruxas" desencadeada pela campanha anticomunista nos EUA, Bohm, mesmo absolvido pela Justiça, perdeu o emprego em Princeton e não conseguiu obter outro posto acadêmico nos EUA. Nesta mesma época, elaborou uma proposta de reinterpretação da teoria quântica, denominada inicialmente pelo termo técnico de "variáveis escondidas" e em seguida pela expressão mais epistemológica de "interpretação causal", em que se recupera um tipo de determinismo análogo àquele da física clássica. Os quatro capítulos seguintes são dedicados à peregrinação que levou Bohm ao Brasil, onde trabalhou na USP, a Israel, a Bristol e finalmente a Londres.
Do período brasileiro Peat realça dois aspectos. Bohm decididamente não gostou da estada no Brasil; reclamava do clima, do barulho, da alimentação, de sua saúde e da universidade. Da narrativa de Peat podemos inferir também que dificilmente ele se sentiria bem em qualquer outro lugar, primeiro porque saiu dos EUA forçado pelas circunstâncias políticas (o que leva Peat a denominar o capítulo de "Brazil: Into Exile") e segundo porque ele vivia uma situação desconfortável com a acolhida, em geral desfavorável, que a comunidade dos físicos reservou à sua interpretação causal. A expressão "exílio" não é exagerada. Quando chegou a São Paulo, o consulado norte-americano confiscou seu passaporte, informando que ele o teria de volta apenas para retornar aos EUA. Temendo mais perseguições e necessitando viajar para intercâmbios relativos ao seu trabalho científico, Bohm optou pela cidadania brasileira. Em seguida, com a cidadania norte-americana cassada, lutou durante quase 30 anos para recuperá-la.
Peat realçou também as relações entre Bohm e o físico brasileiro Mario Schõnberg, e a sua influência na obra de Bohm. Apesar dos laços de proximidade, ambos comunistas e de origem judaica, discordavam profundamente sobre questões científicas, como aquela da interpretação da teoria quântica. Schõnberg insistiu na necessidade de se adotarem formas mais flexíveis para a causalidade, sugerindo a leitura de Hegel. Ele tinha um bom argumento para convencer Bohm, "dizendo que Lenin havia sugerido que todos os bons comunistas deveriam ler o filósofo alemão". Como apontado por Peat, esta influência está presente no livro "Causality and Chance in Modern Physics", que teve "a maior parte do texto escrito no Brasil". Desde então, Bohm, mantendo-se crítico da interpretação da complementaridade, nunca voltou à ênfase inicial na recuperação de um determinismo semelhante ao da mecânica clássica. Outros aspectos da estada de Bohm no Brasil são tratados superficialmente, como a criação do Instituto de Física Teórica, em São Paulo, e a posição de Bohm, conflitante com esta iniciativa. Peat não registra que esta instituição se afirmou, ainda nos anos 50, como um centro de excelência em física teórica.
Os cinco últimos capítulos cobrem um período cronológico maior. No final dos anos 50, sob o impacto do relatório Khruschov sobre o stalinismo e da invasão da Hungria pelas tropas soviéticas, ele se afasta do marxismo. Ainda nesta época, Bohm deixa uma marca permanente na história da física, com a descoberta do efeito Aharonov-Bohm. Pouco depois ele estabeleceu uma ligação duradoura com o indiano Krishnamurti, tendo sido de tal ordem esta ligação -participou de experiências educacionais, praticou meditação e aderiu à dieta vegetariana-, que Bohm cogitou mesmo de abandonar a física. Peat sugere que a relação entre Bohm e Krishnamurti foi tão acrítica, e marcada por uma certa ingenuidade, quanto foi sua relação anterior com o marxismo.
No terreno da física, Bohm abandonou o programa da interpretação causal, evoluindo para um conjunto de sugestões, menos desenvolvidas nos aspectos físicos e matemáticos que o programa anterior, que ele englobou sob o título do livro "Wholeness and the Implicate Order". Nesta fase, ele buscou estruturas algébricas capazes de reproduzir, em determinadas condições, o contínuo espaço-tempo das atuais teorias físicas. No final dos anos 80, ele voltou a trabalhar no programa original dos anos 50, sem retornar, contudo, à ênfase epistemológica no determinismo. O livro "The Undivided Universe", publicado postumamente, condensa esta fase. Neste período, Bohm dedicou também grande atenção a temas como linguagem, criatividade, percepção, educação, consciência e diálogo, atraindo a atenção de um público diversificado.
Aparentemente nada escapou da "lente de aumento" de Peat, incluídas as paixões, a personalidade complexa e as dificuldades do casamento. O ponto forte da biografia é evidenciar o homem que produziu obra tão significativa. Uma vida marcada por adversidades, entre as quais se incluem rupturas dolorosas, com Oppenheimer, com o marxismo e com Krishnamurti, e sucessivas depressões (a última, em 1991, é descrita em detalhes no livro), foi também de intensa criatividade. Significativamente uma de suas últimas frases foi "sinto que estou no limite de algo...".
A fraqueza do livro é a forma superficial com que os aspectos científicos, epistemológicos e históricos da obra de Bohm são tratados. Não que existam equívocos na informação apresentada, mas a análise é pobre e muita informação importante é desconsiderada. Exemplifico: narrando a recepção da interpretação causal entre os físicos dos anos 50, Peat sugere que tenha havido uma "conspiração de silêncio" contra aquela interpretação. Na literatura científica especializada há, entretanto, diversos trabalhos publicados, como os de Einstein, Pauli, Rosenfeld, Heisenberg, Halpern, Takabayasi e Fock, que expressam, de forma diferenciada, críticas àquela interpretação.
Do mesmo modo, há um leque de publicações de Louis de Broglie e Vigier, por exemplo, que aderiram ao programa proposto por Bohm. Contudo, os argumentos científicos, epistemológicos, filosóficos e mesmo ideológicos presentes nestes debates não são objeto da análise de Peat; aliás, nem mesmo referência é feita a tais artigos. Curiosamente, um dos poucos artigos científicos citados (pág. 128, nota 27) tem a referência truncada. Embora Peat use largamente a correspondência com amigos, em que aspectos científicos estão presentes, ele usou escassamente, por exemplo, a correspondência científica com Pauli, Einstein e Rosenfeld. Sugestões interessantes, como a de que o livro "Quantum Theory" aproxima-se mais do ponto de vista de Pauli que do de Bohr, são simplesmente enunciadas, sem argumentações. Outras teses, como a que "o marxismo de Bohm também jogou um papel na sua física", e que um trabalho feito por Bohm, no final dos anos 40, e não aceito para publicação em revista especializada, "continha a essência da teoria da renormalização, que mais tarde veio a dominar a física teórica", embora acompanhadas de certa argumentação, carecem completamente de referências a quaisquer fontes.
A biografia feita por Peat levanta uma ponta do véu sobre a vida e a obra de Bohm, mas o que ela deixa entrever é tão, ou mais, interessante que o revelado.

OLIVAL FREIRE JR. é professor do Instituto de Física da Universidade Federal da Bahia e doutor em história pela USP.

Folha de São Paulo

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