terça-feira, 28 de abril de 2009

CENAS DA VIDA PÓS-MODERNA


Pós-modernidade no Cone Sul

Adrián Gurza Lavalle
PAISAGENS IMAGINÁRIAS

Se você ficou surpreso, não apenas com a vinda de Monet aos museus brasileiros, mas também com o desplante de uma difusão espetacular, incluindo cartazes e ainda um outdoor, só comparável àqueles que os shopping centers usam para comemorar os grandes eventos; e se você, aos poucos, foi se desiludindo ao deparar-se com uma reduzida mostra de quadros, enquanto a verdadeira exposição estava acontecendo -virtualmente- nas telas dos computadores e nas lojinhas de "souvenirs"; então você assistiu, além da exposição, a uma das inúmeras manifestações culturais da nossa forma de viver a ultramodernidade no subdesenvolvimento. É óbvio que os exemplos poderiam ser terríveis, se procurássemos fora do âmbito da cultura e olhássemos a política ou a economia, em que misérias de todo tipo vêm acompanhadas de excessos de riqueza, de consumo, de autoritarismo que em nada lembram os ideais democráticos, humanistas e igualitários da modernidade.
"Cenas da Vida Pós-moderna", diria Beatriz Sarlo citando o título do seu best seller, publicado na Argentina em 1994, onde faz uma análise crítica da pós-modernidade como clima cultural de nosso tempo. É neste esquisito clima que ela mergulha para oferecer uma leitura de fenômenos tão aparentemente diversos como os shopping centers, a estrutura excludente do desenho urbano, os hábitos culturais dos jovens e suas noitadas, o auge dos videogames e dos videofãs, o marketing e a crise da política, o verdadeiro "surf" sobre imagens, que é o uso compulsivo do controle remoto -chamado de "zapping"-, a programação televisiva e sua estrutura de repetição sem fim, a mercantilização da arte e o resgate da suas funções sociais, os intelectuais e seu papel frente ao mundo de hoje.
Todos estes fenômenos estão vazados por lógicas cruzadas, que arruínam a estrutura discursiva e narrativa do que foi nossa forma de representar o mundo e agir nele. A imagem não se produz mais por analogia com a linguagem escrita, como naqueles filmes em branco e preto, que eram -pelo ritmo e pela estrutura- autênticos romances transpostos para a tela. Ela mudou definitivamente, e não aceita ditames de quem não esteja disposto a adequar-se à sua estrutura comunicativa feita de retalhos.
Porém, não é esse o único livro da autora a chegar ao Brasil. O outro, "Paisagens Imaginárias", é uma coletânea de artigos que, no seu equilíbrio interno, reflete bem as obsessões dos seis livros por ela publicados na última década. "Política" é o nome da primeira obsessão, o que na Argentina quer dizer defesa contra o esquecimento ou desejo de um futuro com memória -e sem rancor- e, claro está, crítica dos velhos e novos dogmatismos.
"Cultura", e mais especificamente a reconfiguração cultural do mundo sob o império da imagem e dos poderes midiáticos, é outro eixo do livro. Como nos casos anteriores, a terceira obsessão tem um registro autobiográfico: qual o papel dos intelectuais atravessados pelas tensões do mundos da política, da cultura e do próprio fazer do intelectual? Como encontrar caminhos de saída para esta inquietação, quando a função e o lugar da voz do intelectual foram já devorados pela lógica da mídia? E, por último, a paixão por "mi Buenos Aires querido", que tem um peso significativo no livro.
Apesar das diferenças entre as obras, ambas têm como continuidade algo essencial no perfil de B. Sarlo: a crítica. Mas comecemos pelas dessemelhanças. "Cenas" soma-se à fileira de uma extensa bibliografia que dialoga com o diagnóstico pós-moderno da vida nas sociedades contemporâneas. Paradoxalmente, o sucesso deste livro na Argentina parece dever-se precisamente àquilo que é identificado criticamente pela autora. Dentro desse clima cultural pós-moderno, o livro se adequa ao império fugaz da moda na indústria cultural, a uma estrutura narrativa análoga aos pulos do videoclipe e à repetição de conteúdos de comprovado sucesso junto a um certo público intelectual.
"Paisagens" nos diz muito mais sobre a autora e a Argentina. Numa linguagem mais pessoal, B. Sarlo lança mão do mundo da cultura e invoca seus poetas, literatos, pensadores e diretores prediletos para falar de suas obsessões. A palavra é o melhor antídoto contra o esquecimento, e Beatriz faz uso da sua para colher, hospitaleira, as palavras de muitos outros que alguma coisa de importante tinham a preservar. Apesar da descontinuidade das coisas tratadas, o livro produz uma imagem bastante articulada e abrangente do temperamento e estilo do pensamento da autora.
A crítica é, sem dúvida, o elemento comum que permite transitar sem dificuldades entre ambos os textos. Não se trata de uma crítica de denúncia, que assinala erros e propõe interpretações ou soluções corretas, mais sim de um ofício meticuloso de interrogação sem ponto estável. Dentro desta lógica -de crítica da crítica-, desenvolve-se o que poderia ser chamado de crítica cultural do mundo, que é o registro onde operam as análises da autora, baseadas nos diagnósticos culturais da contemporaneidade -fundamentalmente no papel da imagem e da mídia. A imagem não apenas ganhou a autonomia de uma linguagem própria, mas impôs seu reinado às outras formas de comunicação e ação, submetendo estas ao império da velocidade e da superposição instantânea de fatos que não são acontecimentos, de anedotas ("anekdotos": inédito) que nunca chegam a ser história, porque carecem, precisamente, de uma estrutura narrativa que vincule o passado e o futuro com o fugaz e inócuo presente. Esta lógica se reproduz e invade as diferentes esferas da vida social, mas é na política que suas manifestações são particularmente doentias, resultando impossível construir uma narrativa verossímil sobre os compromissos do passado, as promessas do presente e os atos do futuro. Enfim, políticos que mudam de passado e de personalidade como atores, meios de comunicação que constroem identidades gerais como outrora o fez a política, intelectuais que esqueceram a política e especialistas acadêmicos que fazem política investidos de neutralidade: é de tudo isto que tratam "Cenas da Vida Pós-Moderna" e "Paisagens Imaginárias".
Qual a proposta ou o que fazer perante tal estado de coisas? O segundo livro contém algumas amostras daquilo que se encontra apresentado de forma mais sistemática no primeiro. Só os neopopulistas de mercado, como Beatriz gosta de dizer, podem acreditar que tal estado de coisas é vivificante para a democracia e o fortalecimento do social.
Frente aos pregadores do fim das ideologias, da explosão do particular, do resgate da diferença e do descobrimento do micro como o único e autêntico terreno para a construção de sentidos no seio das sociedades pluralistas, é preciso reparar que nem todos renunciaram às pretensões de uma razão universal. Enquanto o pensamento crítico se encanta com o reconhecimento da diferença e se policia para não cair na tentação da razão universalizadora, nossas sociedades estão sendo transformadas profundamente sob a antiga e bem conhecida lógica da aplicação do "esquemão" -hoje em versão neoliberal.
Convicta de que particularismo sem universalismo é suspeito de pulverização do social, a autora não aposta numa solução, mas apenas na possibilidade de uma outra perspectiva, que terá de contemplar três elementos: a intervenção do Estado no mundo da cultura, o surgimento de outro tipo de intelectual e os potenciais radicais da experiência estética.
Adrián Gurza Lavalle é co-autor de "A Quem Pertence o Amanhã" (Loyola).

Folha de São Paulo

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