segunda-feira, 9 de março de 2009

PODER E DINHEIRO - UMA ECONOMIA POLÍTICA DA GLOBALIZAÇÃO


Contra a globalização

João Sayad

Os economistas acadêmicos brasileiros podem ser classificados em escolas, embora se saiba que tais conceitos não captam a riqueza e a complexidade de cada um. Na Fundação Getúlio Vargas (FGV) do Rio de Janeiro estão os monetaristas, em geral doutores pela Universidade de Chicago. Na Faculdade de Economia e Administração (FEA) da USP temos neoclássicos e monetaristas. A Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro reúne ótimos economistas com formação mais recente nos EUA, congregando a maior parte dos que podem ser chamados neoliberais, elaboradores do Plano Real e membros do atual governo.
Na Universidade de Campinas e na Federal do Rio de Janeiro estão os economistas que se denominam "estruturalistas", em homenagem às teorias da Cepal, onde muitos deles estudaram. De formação marxista, keynesiana, são também chamados de heterodoxos. Esta é a origem da maioria dos autores reunidos em "Poder e Dinheiro", um livro de artigos sobre aquilo que os neoliberais chamam de globalização. Os autores rejeitam esse conceito, pois acreditam que reflete apenas uma proposta ideológica e não a nova realidade do capitalismo. As imagens apresentadas pelos neoliberais sobre este período são muito diferentes dos acontecimentos observados com números e dados das contas nacionais.
Os ensaios de "Poder e Dinheiro" partem de dados reais. Não há controle de déficit, principalmente nos EUA, e sobretudo depois que o governo Reagan anunciou o combate ao déficit público; os cortes de gastos sociais foram substituídos por elevadas despesas com juros que resultaram em déficit ainda maior. A estatística e os dados da contabilidade nacional são incompatíveis com o discurso apologético dos neoliberais.
A coletânea começa com um artigo de 1985 da professora Maria da Conceição Tavares. Na época em que se falava da perda de hegemonia da economia americana, decorrente do aparecimento de novas potências mundiais como a Europa e o Japão, Conceição previu que a política de fortalecimento do dólar acabaria por recuperar a hegemonia dos EUA.
A hegemonia do dólar foi recuperada pelo sucesso do plano antiinflacionário do governo Reagan, com estratégia semelhante às adotadas pelos planos de combate à inflação da América Latina, incluindo o Plano Real. O governo Reagan reduziu impostos e aumentou o déficit público. O Federal Reserve comandado por Paul Volcker manteve uma política monetária rígida, elevando as taxas de juros a dois dígitos. Com mobilidade de capital e taxas de câmbio flexíveis, as taxas de juros altas nos EUA causaram imensa sobrevalorização cambial, importações mais baratas, concorrência dos produtos importados com os americanos e desemprego. A inflação começou a cair. Essas medidas foram complementadas por política dura e severa com os sindicatos, iniciada com a imposição de uma derrota à greve dos controladores de vôos, e por medidas fiscais destinadas a atrair capitais para os EUA. Uma das consequências desta política é bem conhecida por nós: a crise da dívida externa da América Latina.
Sobrevalorização do dólar e taxas de juros altas acabaram por reduzir a inflação, criando imenso déficit comercial e desemprego na economia americana. Situação parecida com a da economia brasileira hoje, com a diferença importante de que o dólar é a moeda-chave da economia mundial.
O artigo de Maria da Conceição Tavares, publicado em 1985, e aquele que ela escreveu com Luiz Eduardo Melin analisam as mudanças na política cambial americana e episódios onde aparecem com clareza os objetivos das negociações do governo americano.
Luiz Gonzaga Belluzzo discute o novo padrão de financiamento internacional e de crescimento, enfatizando a relação entre poder e dinheiro na definição das regras monetárias. Na realidade, a época em que estamos vivendo é um período de baixas taxas de inflação, ou mesmo de tendência à deflação, porque foram definidas regras financeiras a favor dos credores. O credor é quem tem a última palavra e a regra coercitiva -"quero meu dinheiro de volta", enunciada por Aglietta- é a que tem prevalecido nos últimos 20 anos. Segundo Belluzzo, neste tipo de situação, a economia tende à deflação e os ciclos de depressão são mais longos e profundos.
Os artigos de "Poder e Dinheiro" enfocam a instabilidade financeira internacional, chamada de globalização financeira, a partir da conceituação da moeda como uma instituição imanentemente ligada a questões políticas, nacionais e internacionais. Não há dinheiro sem poder e vice-versa.
José Luís Fiori aborda as relações entre poder, hegemonia e moeda, tema controverso, já que os neoliberais imaginam que nos tempos atuais Estado e governo são instituições irrelevantes ou inócuas para os novos mercados globais. É possível haver estabilidade na economia internacional sem que haja uma potência hegemônica? Kindleberger explica a gênese da crise de 1930 a partir da substituição da Inglaterra pelos EUA como nação hegemônica desde o final da Primeira Guerra Mundial. Fiori analisa esta tese e a contrapõe ao ponto de vista dos neoliberais que sugerem o fim do Estado Nacional. É possível haver capitalismo sem Estado como afirmam os apologetas da globalização financeira?
Será que, onde os autores apontam problemas e crises como regra, os neoclássicos apresentariam o mesmo problema como exceção e o debate continuaria sem conclusão, como afirmam os defensores da retórica econômica? Tenho dúvidas.
A política econômica, que se pratica no mundo hoje, começou a ser formulada nos anos 60, a partir dos trabalhos mais importantes de Milton Friedman, que propunham taxas de câmbio flexíveis como remédio para estabilizar o câmbio, longe das decisões sempre incorretas, segundo ele, dos burocratas do Banco Central e de forma a poder liberar a política monetária norte-americana dos encargos de nação hegemônica e, logo, de responsável pela estabilidade das finanças internacionais.
Friedman argumentou que, se o câmbio fosse determinado pelo mercado, seria mais estável do que se fosse determinado pelas autoridades monetárias. A aplicação de tais regras gerou um câmbio mais volátil do que antes, como sustenta Paul Krugman ( "Exchange Rate Instability", The MIT Press, 1993). A previsão não vingou.
Por incrível que pareça, os neoliberais de hoje defendem a rigidez das taxas de câmbio para a América Latina como regra de controle monetário. Para eles, as taxas de câmbio são apenas preços entre moedas. Tanto faz que R$ 1,00 compre US$ 1.00, ou cem centavos de real comprem US$ 1.00. Temos que ter preços fixos nominalmente para evitar que volte o problema inflacionário.
As evidências de Paul Krugman, do Massachusetts Institute of Technology (MIT), muito citado pelas autoridades brasileiras, é que os salários nominais nos EUA, França e Inglaterra são insensíveis às taxas cambiais. Por conseguinte, taxas de câmbio fixam preços reais. Nessa lógica, economistas neoclássicos não teriam como defender a política cambial brasileira.
Permanece intacta a crença segundo a qual os mercados financeiros são eficientes, conceito importante para as expectativas otimistas sobre a globalização financeira, embora se argumente, com Krugman, que os mercados funcionam mal. Ele calcula que os japoneses que investiram em títulos públicos americanos, nos anos 80, perderam aproximadamente US$ 84 bilhões, apesar da proteção e dos seguros comprados nos mercados de derivativos. Nessa direção, o artigo de Ernani Teixeira Torres Filho, sobre a economia japonesa, lembra do prejuízo dos investidores japoneses que compraram e depois revenderam os edifícios do Rockfeller Center.
Há 20 anos atrás, Mundell, um monetarista da Universidade de Chicago, argumentava que, com mobilidade de capital, as taxas de câmbio deveriam ser fixas, isto é, não deveriam oscilar quando houvesse déficit ou superávit comercial. Caso contrário, teríamos instabilidade: se um país com déficit nas contas externas e desemprego, baixa as taxas de juros e desvaloriza o câmbio, acaba tendo mais déficit externo e menos emprego. Portanto, monetaristas também seriam capazes de prever que o arranjo financeiro internacional dos anos 80 e 90 gera instabilidade.
São resultados neoclássicos ou monetaristas, que poderiam ser utilizados para analisar, criticar e propor soluções para os difíceis momentos de crise que estamos vivendo. Entretanto, continuamos propondo e implementando, sem nenhuma preocupação contábil de registrar erros, acertos e correções.
O caso do Sudeste Asiático, ainda que seja cedo para concluir, continua sendo tomado como paradigmático pelos neoliberais. Neoclássicos e monetaristas poderiam concordar com muitos resultados apontados pela professora Conceição, por Belluzzo e outros autores deste livro. Entretanto, a maior parte dos neoclássicos e monetaristas contemporâneos acaba por concluir que temos que fazer os ajustes estruturais do Consenso de Washington, que não decorrem das suas proposições.
A leitura do livro permite várias reflexões. Primeiro, o ciclo da economia capitalista que estamos vivendo gera pouco crescimento e ciclos de recessão mais longos por causa de seu caráter financeiro. A globalização financeira gera instabilidade, concentração de riqueza no Primeiro Mundo e exclusão de trabalhadores e países. Em segundo lugar, neoclássicos poderiam ter feito análises semelhantes. Existem fatos, estatísticas e números que compõe uma única realidade, que pode ser "descoberta" pelos economistas. O relativismo não acabou com a verdade.
Consolado, fico com apenas uma dúvida que não consigo resolver. Por que não convergimos para uma conclusão? Será por que estamos tratando de poder e dinheiro?
João Sayad é professor da Faculdade de Economia e Administração (FEA) da USP e ex-ministro do Planejamento do governo Sarney.

Folha de São Paulo

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