segunda-feira, 9 de março de 2009

OBRAS LITERÁRIAS, FILOSÓFICOS E MORAIS


A face noturna do Renascimento

Carlos Antonio Brandão
LEONARDO DA VINCI

o que o leitor encontrará nessas "Obras" de Leonardo (1452-1519) é, sobretudo, a paisagem ao fundo dos personagens de suas pinturas. Quase nunca observados atentamente, esses "fundos" retratam o mundo mental de Leonardo. Há mais na "Adoração dos Magos" (1481-1482) do que a luz que emana de Maria e seu filho. Há mais na "Virgem das Rochas" (1483-1486) do que a graça do seu rosto. Há mais na "Gioconda" (1503-1506) do que a sedução do seu sorriso. Atrás de tais protagonistas assistimos o movimento e furor de um universo em ebulição.
As ruínas da arquitetura clássica e as grutas aí pintadas nos reconduzem a um arcabouço pré-histórico, enigmático e metamórfico. É justamente esse arcabouço que vem ao primeiro plano nessas "Obras" de Leonardo, deixando-nos ver não só a filosofia e o mundo em que trafega a sua imaginação como também a face noturna do Renascimento, geralmente esquecida diante da radiosa definição do período como "descoberta do homem e do mundo". Esses escritos ajudam a desmontar tal idéia e a revelar as tensões, dinamismo e componentes trágicos presentes no século 15 e sem os quais a própria dimensão apolínea de sua arte permanece inexplicável. Neles se revela o alicerce de concepções e dúvidas que sustenta a densidade lunar do espírito de Leonardo. Boa epígrafe ao livro seria o último dos "Pensamentos" que o abrem: "A lua, densa e pesada, densa e pesada, como se sustenta a lua?".
Na "Adoração dos Magos", por exemplo, uma claridade difusa abriga o redemoinho de pessoas, cavalos e ruínas turbilhonados ao redor da Virgem (composição similar à da "Batalha de Anghiari", de 1504). Nenhum posto privilegiado é assinalado ao homem, criatura que "padece da máxima loucura" e que, "a não ser pela voz e pela silhueta, são menos que animais" ("Pensamentos", 107 e 125). Rostos fantasmagóricos povoam uma atmosfera surrealista e anticlássica. Nenhuma feição ou gesto individual é bem delineado: tudo é absorvido na espiral vertiginosa da incessante transformação da realidade.
Essa polimorfia do real exige uma visão poliédrica capaz de descrever as suas várias faces: "O movimento é causa de toda vida", diz ele no terceiro dos "Pensamentos". E a vida exige a morte para se alimentar e se regenerar, como se lê em algumas das "Fábulas", na maioria das "Profecias e Adivinhações" e se demonstra na "Disputa 'Pró' e 'Contra' a Lei da Natureza": o desejo da "quinta-essência" que comanda a alma é liberá-la do encarceramento do corpo e reconduzi-la ao caos primitivo, "al suo mandatario". A evidência desse desejo no homem o faz "modelo do mundo", sua vida se mantém "graças às coisas que ele come, e estas levam consigo a parte do homem que está morta" ("Profecias e Adivinhações", 124).
Na "Virgem das Rochas", a Madonna também ocupa o centro. Contudo, ela se desmaterializa no "sfumato" e se funde às rochas da gruta e sua atmosfera uterina, úmida e densa. Essa "subnatura" abriga dimensões ocultas que fascinam o olhar do pintor mais do que a própria descrição da cena bíblica. Nesse olhar, arte e ciência não se separam. E é por meio da arte que Leonardo indica os caminhos a serem percorridos por Galileu e Descartes. A caverna é um mundo que precisa ser adentrado para ser conhecido: sem essa "experiência" todo conhecimento é ilusão e de pouco adianta retornar à Antiguidade ou aplicar-se às especulações metafísicas.
Por isso, Leonardo abandona o meio neoplatônico florentino e segue para Milão. Por isso, ele é mais próximo de seu antecessor, Alberti (1404-1472), do que de seu contemporâneo, Michelangelo (1475-1564). Por isso, o aristotelismo lhe parece mais adequado para o exame de uma natureza cujas razões imanentes devem ser encontradas nela própria, mediante "experiências" e estudos matemáticos, e não a partir dos procedimentos dos "metafísicos" ou dos "escolásticos", "gente que tem pouca obrigação para com a natureza, porque somente é dotada de virtudes acidentais e sem elas poderia figurar entre os rebanhos de animais" ("Proêmios", 3). Esse é um tema privilegiado também nos "Pensamentos", no "Discurso Contra os Compendiadores" e no "Contra o Necromante e o Alquimista", tão ávidos de substituírem os deuses e manipularem os espíritos da natureza que esquecem de sua condição humana.
Nas reflexões de Leonardo, o Renascimento debruça-se sobre si próprio e recolhe as forças necessárias para penetrar a "caverna da modernidade". Eis a raiz da solidão de Da Vinci: sua insatisfação com o presente o leva a habitar o futuro e "salvar-se" nele. Afinal de contas, ele justifica no "Pensamento 98", "quem se salva é o solitário". Para seus projetos, bastava-lhe indicar as trilhas desse futuro que ele esboça. Por essa razão, quase todas as suas pinturas permanecem abertas e sem conclusão. Da mesma forma, o leitor é convidado a se portar diante dos enigmas das "Fábulas, Alegorias, Profecias e Adivinhações, Facécias e Proêmios": "Os homens jogarão fora seus próprios víveres: isto é, semeando"; "as penas elevarão os homens, como fazem com os pássaros, em direção ao céu: pelas palavras escritas com essas penas"; "qual é a coisa que muito se deseja e quando se possui não se pode conhecê-la? É o sono".
Os escritos leonardianos demonstram como que o olhar do cientista não se opõe a uma visão mágica do universo, pleno de relações secretas e seres fantásticos que habitam a imaginação do autor e servem, com seus hábitos, à educação dos próprios homens: dragões, gigantes, serpentes e monstros marinhos, dentre outros, convivem com hipopótamos, panteras, camelos, crocodilos e golfinhos na "paideia" natural observada nas "Alegorias".
Ao fundo da "Gioconda", a mesma "subnatura" comparece, contrapondo-se à intelectualidade leonardiana figurada na face de Mona Lisa. Atrás das rochas decompostas pela luminosidade filtrada de vapores parece esconder-se uma usina em que a morte se transforma em vida e vice-versa. Metabolizando-se entre os estados sólido, líquido e gasoso, os elementos sofrem a mesma pulsão cósmica entrevista no sorriso da mulher ou no calor do seu sangue latejando nas veias sob a pele. Diante da natureza, Leonardo não confere transcendência à existência humana. Ao contrário de Michelangelo, ele a dota do mesmo estatuto e submete-a a uma lei única e inescapável cujos efeitos sobre o nosso mundo cumpre descrever, seja no pincel da usina que se assiste atrás da Mona Lisa, seja na pena que descreve "O Dilúvio" ou a "Caverna".
Nestes, uma natureza indômita aparece constituída por uma potência e atividade vital que a tudo envolve em sua ordem implacável, desejosa de confrontar corpos e matérias numa escala cósmica diante da qual se revela a fragilidade humana e sua impotência diante da ira divina. Frente ao dilúvio ou à caverna que seduzem o seu olhar e movem seu pincel e sua pena, Leonardo experimenta o sentimento ambíguo que atravessa essas "Obras": por um lado, ele pretende vê-los de forma puramente objetiva, encorajado pelo desejo de conhecer o extraordinário que aí se esconde; por outro, ele teme o desconhecido e sabe que tal objetividade só é possível unida à melancolia de um universo desprovido de toda e qualquer dimensão mágica, enigmática e misteriosa.
Além de oportuna do ponto de vista do conteúdo, essa edição brasileira das "Obras Literárias, Filosóficas e Morais" contém uma precisa apresentação da vida do autor e do contexto histórico e espiritual em que ela se move. A boa tradução esforça-se por compreender a pluralidade de significados contidos no texto. Merece elogios, portanto, a presença do original ao lado do texto traduzido: além de permitir a conferência do trabalho da tradutora, ele nos convida a procurar outros sentidos porventura abrigados num texto tão fecundo quanto as paisagens das pinturas acima descritas.
Carlos Antonio Brandão é arquiteto e professor de história da arte na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Folha de São Paulo

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