segunda-feira, 9 de março de 2009

CARNE E PEDRA - O CORPO E A CIDADE NA CIVILIZAÇÃO OCIDENTAL


Uma história das cidades
Emir Sader

Se originalmente a cidade estava identificada com a democracia -daí a origem etimológica comum de "cidade" e "cidadania"-, hoje nada espelha melhor a crise da democracia do que as cidades. A tal ponto que, quanto maiores, menos democráticas.
A "pólis" grega havia assumido a forma ideal das democracias, "em carne e em sangue"; nas palavras de Lewis Munford, em "Cidade na História": "Os gregos acrescentaram à cidade um novo componente (...): suscitaram o aparecimento do cidadão livre".
Nada estranho então que Richard Sennet, que se dedicara ao tema da crise da esfera pública, tenha dado continuidade às suas análises com um livro que se volta para a cidade. Em "A Decadência do Homem Público", analisava a aparição da vida pública em Paris e Londres, durante a década de 1750, num momento de florescimento da burguesia, quando as delimitações entre as esferas pública e privada vão ganhando contornos mais definidos. A primeira grande crise dessas relações é estudada por ele nas décadas de 1840 e 1890, quando se transformam as imagens do corpo, as pautas da linguagem, o homem-como-ator, as teorias da expressão em público e as condições materiais da cidade.
Entre um momento e outro está a Revolução Industrial, mas também a Comuna de Paris e as revoluções urbanas que ela acelera, que, por sua vez, propõem uma reformulação radical na relação entre o público e o privado.
Ao concluir "A Decadência", Sennet falava do sonho de que a cidade deveria ser o foro no qual se tornasse significativo reunir-se com as demais pessoas "sem a compulsão de conhecê-las como pessoas". Em "Carne e Pedra" pretende reescrever a história da cidade mediante a experiência corporal.
Isto o levou a estudar como as questões do corpo foram expressas na arquitetura, no urbanismo e na vida cotidiana. Das pequenas cidades medievais, nas quais as dimensões reduzidas das vielas obrigavam os passantes a se tocar com o cotovelo, impedindo-os de se desconhecer, passamos a cidades em que o espaço público se tornou lugar de passagem e de risco, se tornou obstáculo para que nos translademos o mais velozmente possível de um lugar a outro. "Em alta velocidade é difícil prestar atenção à paisagem."
Sennet estudou algumas cidades em momentos específicos de sua evolução, que tenham marcado as experiências corporais e os espaços em que as pessoas viviam ou transitavam. Sua primeira parada é Atenas, onde analisa o que a nudez representava para os antigos habitantes da cidade, no tempo da Guerra do Peloponeso. A expressão mais clara da autoconfiança de um povo vitorioso eram os corpos nus e expostos, num movimento que identificava os ideais cívicos e estéticos.
Na Roma de Adriano, Sennet explora a credulidade de seus habitantes quanto às imagens, especialmente a crença na geometria do corpo. Na Alta Idade Média e no início do Renascimento, analisa a forma como as crenças cristãs sobre o corpo encontraram sua expressão na arquitetura urbana. Aqui os cristãos sentiram que seus ideais de comunidade estavam ameaçados, conforme os povos não-europeus de outras crenças se integravam à economia urbana do continente, de que a criação do gueto de Veneza, no começo do século 16, é um momento privilegiado.
Em seguida, passa à história moderna das cidades e dos corpos, momento em que as descobertas científicas começam a informar e a moldar aquelas relações. As descobertas sobre o sistema circulatório passaram a condicionar a formulação do que deveria ser a livre locomoção nas cidades.
Na sua conclusão, Sennet se volta inevitavelmente -como Marshal Bermann- para Nova York, a primeira grande metrópole especificamente capitalista. "Nova York nasceu em uma vastidão de terras desocupadas, isto é, seu desenho antecedeu à povoação; em vez de olhar as estrelas, seus construtores consultaram os bancos."
Esse caráter fica mais evidente com a revolução de Robert Moses sobre a cidade, especialmente depois da Segunda Guerra Mundial. "Seu propósito consistia em desfazer a diversidade. A massa impactante da população parecia-lhe uma pedra a ser esfacelada." Moses agiu de modo seletivo, segundo Sennet: apenas os bem-sucedidos dispunham dos meios de escapar dos mendigos, dos desempregados, do barulho.
A valorização da cidade ateniense vem precisamente do fato de que não se fazia diferença entre "humano" e "pólis". Se as cidades se tornaram um "locus" de poder, foram também nelas que as promessas de identificação entre a carne e a pedra se estilhaçaram, no estranhamento das relações cotidianas, no esvaziamento dos espaços públicos. É na sua qualidade de "marxista em reconstrução" -como ele se autoclassifica-, que Sennet nos convida a esta reflexão, cujos contornos deixa claro: "O capitalismo não oferece soluções e está cada vez mais clara sua decadência. Quero fundamentalmente fazer as pessoas pensarem em si mesmas como cidadãos em movimento dentro da sociedade, cidadãos que podem fazer qualquer coisa, se organizados".
Emir Sader é professor no departamento de sociologia da USP.

Folha de São Paulo

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