segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

SENTIDO DA FORMAÇÃO


A hipertrofia da palavra
Paulo Venancio Filho

OTILIA BEATRIZ FIORI ARANTES
PAULO EDUARDO ARANTES

Um "Sentido da Formação", três esferas do nosso desequilibrado e irregular sistema das artes -literatura, pintura e arquitetura- são analisadas sob o prisma da Formação: a "penosa construção de nós mesmos", como escreveu Paulo Emilio Salles Gomes. Digamos que o livro, a partir de textos de Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza e Lúcio Costa, investigue, em segundo grau, o desejo -desigual- dos brasileiros de ter uma literatura, uma pintura e uma arquitetura.
O ensaio sobre Antonio Candido, o primeiro -pois a literatura tem tradicionalmente precedência na ordem da cultura brasileira-, é aquele que orienta os outros dois. Aí surge o problema. Esse livro toma as providências corretas relativas à nossa formação, a literatura em primeiro lugar. Ocorre que, quando se estende à pintura e à arquitetura, gira em falso no eixo da moderna autonomia das esferas artísticas, embora corretamente do ponto de vista da dependência literária da vida e dos fatos culturais brasileiros. Donde sua interessante dialética, bem nossa: os dois últimos ensaios, sobre pintura e arquitetura, são verdadeiros sem deixar de ser falsos ou falsos sem deixar de ser verdadeiros.
Logo no início de "Providências de um Crítico Literário na Periferia do Capitalismo", Paulo Arantes é bem claro a respeito de parte do que está dito acima: "Ao distinguir entre manifestações literárias avulsas -a cifra mesma da tenuidade brasileira- e literatura propriamente dita, encarada no livro como um sistema de obras ligadas por denominadores comuns que fazem dela um aspecto orgânico da civilização, um fato da cultura que não surge pronto e acabado, antes se configura ao longo de um processo cumulativo de articulação com a sociedade e adensamento artístico, ao rever nesses termos a constituição de uma continuidade literária no Brasil, Antonio Candido dava enfim forma metódica ao conteúdo básico da experiência intelectual brasileira".
E continua mais adiante: "Noutros termos, cuidando apenas da literatura, Antonio Candido deu com a equação geral do problema da formação, um apenas que entre nós, durante muito tempo, foi tudo, ilustrando além do mais com matéria local o vínculo moderno entre Formação e Representação". Ou seja: entre nós, o apenas que é a literatura, foi tudo. Indo adiante: só se ocupando da literatura que se constituiu como sistema -que foi tudo-, Antonio Candido pode escrever a "equação geral do problema da formação".
A noção fundamental de sistema que Antonio Candido formula na "Formação da Literatura Brasileira", ao analisar o desejo dos brasileiros de ter uma literatura, é decisiva e intransferível. Salvo engano, ele substitui uma precedência tradicional por outra, metodológica e explicativa, ao se dar conta da única esfera da cultura brasileira que se constitui como sistema. Exagerando se poderia então afirmar: a cultura brasileira se constitui como e enquanto literatura, unicamente -não há sistema nas artes plásticas, não há sistema na arquitetura, não há sistema na música. Nenhuma dessas outras esferas forma sistema, nem enquanto realidades incipientes e inorgânicas que são, nem como matéria historicamente refletida.
A "história dos brasileiros no desejo de ter uma literatura" é a única que pode ostentar a palavra "brasileiros", no plural. Nenhuma outra foi objeto de "desejo" dos "brasileiros". Portanto, na falta de sistema, não se pode falar em formação, pois nelas prevalece a "ausência de linhas evolutivas mais ou menos contínuas a que se costuma dar o nome de formação". Como as "linhas evolutivas" são o resultado de nossa vida cultural refletida, então percebe-se de saída a sua unilateralidade -a centralidade formativa das letras na nossa cultura. A nossa "patologia das comunidades culturais", para usar a expressão de Freud, é uma só: a hipertrofia da palavra.
Mal ou bem temos só um sistema: o da literatura, do qual os outros são dependentes. Curiosamente, nossa vida cultural reproduz nela mesmo um certo modelo de centro e periferia, com dinâmica similar ao desenvolvimento desigual e combinado que o capitalismo impõe aos países periféricos. A literatura é o centro, de tal modo que "Antonio Candido, identificando dinamismos específicos da vida cultural brasileira, expunha a constituição de uma tradição literária nacional relativamente estável". E essa tradição que Antonio Candido reconhecia e expunha não existia senão na nossa vida literária, no "nosso sistema literário (que) não só se formara como até funcionava razoavelmente bem", como era também "aspiração coletiva de construção nacional".
A transposição da noção de Antonio Candido para uma esfera que não constitui "sistema", que não foi nem é "aspiração coletiva de construção nacional", nem objeto de "desejo dos brasileiros", gira em falso. É o que acontece nos outros ensaios. Para quem tem alguma intimidade com as artes plásticas brasileiras, logo se revela o tom forçado de "Moda Caipira", ensaio escrito por Paulo e Otília Arantes, a despeito das interessantíssimas observações de Gilda de Mello e Souza sobre a pintura de Almeida Júnior, que lhe fornecem o ponto de partida. Visivelmente, a forma do interesse que Almeida Júnior desperta é ainda e só literário, a cujo sistema ele se reporta. E aí estaria a questão específica da pintura na vida cultural brasileira: a sua dependência intracultural à literatura, da qual "Moda Caipira", como expressão da formação, é exemplo complexo e refinado.
Bastaria notar que Otília e Paulo, ao analisar as idéias de Gilda de Mello e Souza sobre a captação de uma configuração de gestos e ritmos corporais do homem brasileiro por Almeida Júnior, vão citar uma passagem, já citada antes pela autora, de ninguém menos que... Proust. O que não invalida o argumento, muito pelo contrário. Aliás, no caso, uma associação de fineza e coerência notáveis, mas que não deixa, creio, de confirmar meu ponto de vista.
O ensaio "Lúcio Costa e a "Boa Causa' da Arquitetura Moderna", de Otília, tem como matéria o livro do arquiteto e urbanista, "Registro de uma Vivência", que, tal como as observações de Gilda de Mello e Souza, é insuficiente para constituir ou vislumbrar uma ossatura, por menos palpável que seja, para constituir formação. O livro "é de qualquer modo enigmático, não é fácil decifrá-lo", escreve Otília. E penso que daí deriva uma certa sensação, positiva até, de incompletude do ensaio cuja origem está no seu ponto de partida: o livro de Lúcio Costa é tudo, menos sistemático.
Seria idiossincrasia desse nosso grande intelectual, arquiteto e urbanista ou apenas reconhecimento de uma impossibilidade? Seria a arquitetura uma peteca?, como aquela da foto que o ensaio reproduz e que, escreve Lúcio na legenda, "ficou desde então sobre a mesa, à espera. À espera de um gesto". À espera de um gesto dos "brasileiros", diria eu. Na outra ponta, é possível formular uma hipótese para completar a dúvida anterior: a de que a arquitetura brasileira depende quase só, ainda e muito, de um lance feliz -cada vez mais raro- de Oscar Niemeyer, o que por si só invalidaria a idéia de sistema.
Dito isso, seria preciso mais tempo e espaço para analisar todas as sugestões e consequências desse livro, que são muitas e complexas. Porque ele próprio, agora, já é parte da Formação.
Paulo Venancio Filho é crítico de arte e professor da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Folha de São Paulo

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