segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

OS MANDARINS MILAGROSOS - ARTE E ETNOGRAFIA EM MÁRIO DE ANDRADE E BELA BARTÓK


Dois coletores de canções

Livio Tragtenberg

A princípio, um estudo que aborda conjuntamente Mário de Andrade e Bela Bartók, sob a perspectiva da estética e da etnografia, corre seriamente o risco de naufragar no lusco-fusco das coincidências e incidências comuns nas trajetórias desses artistas, sem, contudo, ao cabo do percurso, revelar nada mais que o fogo-fátuo de semelhanças de superfície. Felizmente não é o caso do livro de E. Travassos (originalmente uma tese universitária), que não se deixa seduzir por tais facilidades, posicionando o seu foco central na "relação entre o ideário estético e os trabalhos etnográficos de dois coletores de canções populares".
Não fosse a área da pesquisa musical tão pouco desenvolvida no Brasil, e mesmo ainda meio engessada por falsas questões como nacional/universal, popular/erudito etc., além de um culto idólatra à figura de Mário de Andrade, poderia fornecer um material importante na formação e criação musical dos dias de hoje, uma vez que, na grande maioria, os músicos encontram-se finalmente libertos de antagonismos do tipo música nacionalista versus internacionalista, que dominaram o nosso ambiente de idéias musicais desde os anos 50.
Nesse sentido, "Os Mandarins Milagrosos" analisa, de forma diagonal, a ação positiva empreendida pelo musicólogo paulista e pelo compositor húngaro em busca do estabelecimento de uma técnica de pesquisa musical, de uma tradição musical e também na perspectiva antropológica do estudo da dinâmica dos grupos sociais envolvidos na sua prática: "Para Mário de Andrade, a reflexão sobre música popular vinculou-se ao problema mais amplo da oposição entre indivíduo e sociedade. Para Bartók, o mesmo tema de pesquisa não podia ser pensado fora da grande antítese entre natureza e civilização".
As diferenças -que são muitas-, ao invés de afastar, antes aproximam os dois artistas. Enquanto a cultura brasileira é o resultado da mistura de um "caldeirão de raças", portanto ainda em formação, a cultura magiar é a confluência de etnias bastante diferenciadas e que se estabeleceram ao longo do tempo em diferentes estados nacionais: croatas, romenos, eslovenos etc. e ainda os ciganos. O livro dedica a esse respeito um capítulo, "Cartografias", onde expõe com clareza a dimensão ideológica do trabalho de Bartók, de afirmação cultural e nacional.
"Seria inútil ler estudos de música como se fossem trabalhos de ciência social ou programas de governo, mas sua dimensão política é clara", esclarece a autora. O trabalho artístico, para Mário de Andrade, deveria pautar-se por "uma organização moral do artista"; por outro lado, Bela Bartók não "pensava a criação artística individualizada como um problema moral". Ele procurava, com seu trabalho de coleta de canções, estabelecer uma fisionomia musical da tradição magiar, livrando-a de deformações, segundo ele caricaturais, como as empreendidas pelo romantismo exacerbado de um Liszt, que por sua vez identificava nos ciganos a medula da expressão musical húngara.
Essa vocação para a "correção" histórica é comum a ambos. Bartók achava que ela deveria basear-se primariamente em documentos recolhidos por intermédio de um processo científico de registro sonoro, classificação, codificação e impressão do material. Preocupava-se com a confiabilidade e a integridade de seu material, textos e música. Para tanto, criou categorias de classificação dos diferentes gêneros musicais e um sistema de notação o mais preciso possível, seja no aspecto melódico, seja no rítmico. Mário de Andrade, no entanto, era mais ambicioso. Buscava, a partir do dado lítero-musical recolhido, penetrar nos universos simbólicos, lógicos e sociais do povo, a fim de identificar o que chamava de "tradições móveis".
Mário pesquisava o brasileiro por meio das canções populares, das danças dramáticas, da chamada "música de feitiçaria" e ainda das modinhas, estas pertencentes à esfera do "popularesco". Pretendia "fornecer documentação para músico". Mas, como notou a autora, "sua arqueologia descobria primitivismos genéricos, humanos, mais fáceis de encontrar num povo embrionário, que ainda não adquirira caráter étnico", ou seja, em "fazimento", como escreveu Darcy Ribeiro. Sem dúvida, matéria-prima para "Macunaíma", onde esse não-caráter é rapsodiado de forma ampla.
Ambos guardavam um espírito de desbravamento e amadorismo. Eles próprios estabeleciam os seus parâmetros e os meios de obtenção dos dados. É uma pena que a descrição cotidiana dessas viagens e seus procedimentos aparecem apenas ocasionalmente em seus relatos particulares ou ainda de forma lateral, marginal. Deixam apenas antever as estratégias com que se precaviam e mesmo detectavam possíveis distorções na apresentação do material, seja na forma do canto, no texto ou no ritmo empregados por seus fornecedores, camponeses e sertanejos sem instrução musical. Esse era um ponto importante para Mário, que chegou a afirmar: "Quase toda a documentação folclórica não presta, não foi selecionada: um documento folclórico colhido da memória de um advogado tem o mesmo valor de outro colhido da boca de um vaqueiro(...) o folclore é o paraíso da "sensação' democrática, tudo é igual".
Elizabeth Travassos destaca ainda que, para Bartók, "a prática da coleta não se orienta pelos padrões estabelecidos na antropologia pelo menos desde Malinowski. Rituais que davam ensejo a canto e dança não ocupam mais do que algumas linhas em seus livros, pois ele achava que estes eram fenômenos da alçada do etnógrafo, e não do folclorista musical".
Atualmente, o trabalho de documentação das diferentes tradições musicais populares tem fornecido de um lado matéria-prima "fresca" para a indústria fonográfica que, numa época de internacionalização, explora os particularismos; e, de outro, relativizado de forma irrefutável a pretensão de superioridade ou mesmo exclusividade de qualquer sistema musical totalizante e logocêntrico. A exposição a esse "velho" material retoma de certa forma uma idéia de circularidade entre tradição inculta e culta, primitivo e técnico. Isso também se reflete na ênfase no elemento timbrístico do som na música de hoje. Essa circularidade é expressa de forma própria por Béla Balázs, numa epígrafe presente no livro: "Acreditávamos que o absolutamente novo só poderia ser transplantado do absolutamente velho".
Ao final da leitura, envolvidos por uma narrativa fluente e clara, percebemos o quão difícil é o objeto "Brasil", ora porque se encontra em mutação constante, ora porque se camufla, não se revela.
Livio Tragtenberg é compositor e professor no departamento de música da Universidade de Campinas (Unicamp).

Folha de São Paulo

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