quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

O QUE É VIDA?


Uma questão de ordem

Maurício De Carvalho Ramos

O universo mecânico de Descartes foi recebido com entusiasmo no século 17, mas a vida que emergia desse mundo de partículas inertes que se chocam não agradou tanto. O que o filósofo disse sobre a formação mecânica dos organismos chegou a ser tomado como pura fantasia.
Parecia ser impossível explicar, com as leis da mecânica, como um embrião é gerado.
Passados três séculos, Erwin Schrõdinger, um dos maiores físicos contemporâneos, afirma que "não devemos nos sentir desencorajados pela dificuldade de interpretar a vida a partir das leis comuns da física". Na busca de uma tal explicação reducionista da vida, os organismos podem ser considerados como conjuntos de moléculas que obedecem às leis da física, ainda que não conheçamos todas as suas leis. Não é a "vida" que está em foco, mas sistemas biológicos materiais.
Schrõdinger aborda duas ordens de eventos: a manutenção e a modificação de padrões biológicos ao longo de várias gerações de organismos (fenômenos ligados à hereditariedade) e a manutenção dos organismos individuais no período de uma vida (fenômenos metabólicos).
Uma explicação bem simples é sugerida para o primeiro grupo de eventos: os genes garantem a estabilidade e a mudança dos padrões biológicos e a física explica a manutenção e a mutação dos genes. Articulando os princípios da mecânica quântica com os resultados que Delbruk obteve sobre o efeito mutagênico das radiações, Schrõdinger prevê que a herança biológica necessita da ação de um tipo especial de molécula, um "cristal aperiódico".
Esse cristal seria um polímero cujas unidades básicas deveriam variar o bastante para dar conta da assombrosa quantidade de efeitos exigida para a existência dos organismos. Os princípios quânticos poderiam explicar tanto a permanência (estabilidade das ligações químicas) quanto as mudanças (mutações descontínuas) que ocorreriam na molécula. Esse cristal veio a ser o DNA e seu caráter aperiódico transformou-se no código genético.
A outra questão refere-se à vida no nível macroscópico e ao efeito da entropia nos organismos. A segunda lei da termodinâmica prevê para os sistemas materiais um aumento progressivo de entropia, ou seja, uma tendência espontânea para um estado cada vez mais desordenado. Mas os seres vivos apresentam a peculiar característica de resistirem tanto quanto podem a essa tendência. Como isso é possível? Schrõdinger sugere que os seres vivos compensam a desordem natural a que estão sujeitos absorvendo do ambiente "entropia negativa". Por meio do metabolismo, incorporam moléculas organizadas e eliminam as que são degradadas. Com isso, conseguem reduzir e retardar o aumento de sua entropia interna.
Na base desses processos, também estariam os cristais aperiódicos produzindo e controlando o metabolismo em cada célula. Para Schrõdinger, essa propriedade da substância hereditária revela a profunda singularidade dos seres vivos: apenas eles conseguem produzir um espetacular efeito organizador a partir de estruturas compostas por um reduzido número de átomos: os genes. Para compreender como isso ocorre, seriam necessárias leis ainda não conhecidas pela física, mas que, descobertas, certamente serão leis físicas.
Em resumo, a "ordem a partir da ordem" aparece como princípio básico da vida. Um precursor molecular já organizado deve preexistir para que exista um organismo. Disso se segue praticamente toda a biologia molecular.
Foi nessa trilha que a biologia obteve suas conquistas teóricas e práticas de maior impacto. O projeto reducionista pode ser entendido como a aposta de que esse é o melhor ou o único caminho capaz de levar-nos até a "vida". Mas o que pensam atualmente os pesquisadores que herdaram os problemas para os quais Schrõdinger apresentou suas reflexões em 1943?
Em quase todas as conferências reunidas em "O Que É Vida?", os cientistas mantêm-se fiéis ao modelo reducionista. Mas "a que" a vida deve ser reduzida? Pesquisadores afinados com a genética e a biologia molecular seguem essa via da "ordem a partir da ordem". Sempre necessitam postular moléculas complexas no início dos processos vitais para poder explicá-los. Outros apresentam uma base alternativa de explicação, sugerindo que a natureza conta com processos de auto-organização capazes de originar estruturas complexas independentemente da existência anterior de moléculas pré-organizadas.
Por outro lado, Gould ataca diretamente o reducionismo, que considera como resultado de uma contingência histórica ligada ao empirismo lógico e ao ideal de unificação do conhecimento científico. A influência exercida por "O Que É Vida?" seria então explicada muito mais pela autoridade que esse movimento e seus representantes exerceram na época do que por seu valor intrínseco.
A leitura dessas obras proporciona uma visão ampla e atualizada das dificuldades e perspectivas da biologia, talvez a mais promissora (e polêmica) das ciências contemporâneas, embora a multiplicidade de temas e questões técnicas possa talvez desencorajar a leitura.
Maurício de Carvalho Ramos é mestre em ciências biológicas e doutorando em filosofia na USP.

Folha de São Paulo

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